Um novo período começa, incerto. Uma ruptura, que lembra a de maio de 1968. Uma ruptura que ocorreu, ainda que em junho desse mesmo ano a esmagadora “vitória” eleitoral daqueles que tinham medo de tal ruptura parecesse dizer o contrário. O espírito de maio continua vivo até hoje, a tal ponto que um Presidente da República Francesa, Sarkozy, julgou ser necessário fazer campanha para “matar” esse espírito quarenta anos depois.
Existe aquilo que vemos, que é aparente, mas existem também forças subterrâneas que atuam e se mostram apenas repentinamente a luz do dia. Somente análises profundas permitem perceber o avanço dessas forças. Provavelmente, é isso que está acontecendo hoje em dia: a crise e as mortes em massa são visíveis e insuportáveis. Modificações profundas, ainda pouco visíveis, tais como uma nova configuração da inserção internacional, do papel dos Estados nas esferas econômica e social e, provavelmente, ainda que negativo, das relações mais distantes entre indivíduos, menos calor humano e mais medo.
Antes mesmo do SARS-CoV-2 passar a fazer parte da vida cotidiana das pessoas, empresas e nações; o mundo já estava se transformando de forma considerável em vários pontos importantes: 1) a globalização comercial estava recuando em relação ao que fora antes da crise financeira de 2008-2009, surgiam várias medidas protecionistas que favoreciam cada vez mais as relações bilaterais em vez das multilaterais; 2) o declínio dos sindicatos em alguns países foi se confirmando, bem como o da sua capacidade de mobilização; o mesmo acontecia com os partidos políticos tradicionais que perdiam sua influência; 3) se consolidava o aumento da desconfiança em relação às regras do jogo democrático, algo que foi facilitado pelo surgimento das redes sociais e das fake news, uma espécie de imprensa paralela que substitui cada vez mais a imprensa tradicional, parcialmente rejeitada pela população jovem; 4) mobilizações cada vez mais numerosas e massivas contra as mudanças climáticas e formas menos verticais de mobilização, como a que “organiza” a revolta dos esquecidos frente ao baixo crescimento econômico, a inadequação dos serviços públicos ou nova forma de precarização do trabalho consequência da sua “a crescente uberização”; 5) novas lutas tiraram impulso das lutas das mulheres, dos homossexuais, dos discriminados pela cor da pele ou pela religião, sem tornar claro que relações podem ser estabelecidas entre elas e as mobilizações mais tradicionais, tais como as por melhores salários, empregos e modos de organização do trabalho.
É nesse contexto, ao mesmo tempo favorável e desfavorável, que se manifesta a crise atual, a mais importante nos países avançados desde a segunda guerra mundial. A pandemia revela as fragilidades do sistema. Será que tal crise vai reforçar as evoluções ou invertê-las? A história não segue um caminho inevitável. Existem bifurcações de ordem econômica e/ou política sempre possíveis, por isso, eu prefiro analisar o antes, ao risco de me enganar, mais do que o depois. Parafraseando Marx: “os homens fazem sua história livremente, mas em condições que não são livremente decididas por eles”. Em outras palavras, existe uma margem entre o idealismo e o determinismo. A história é produto, ao mesmo tempo, do idealismo do homem, da sua vontade e do determinismo das leis econômicas. Não se pode ignorar nenhum desses três sem cair no puro idealismo ou no determinismo vulgar.
Com a pandemia, e sua difusão mundial, emergiram as fragilidades intrínsecas à hiperglobalização. Em termos de soberania, as consequências do contágio sobre a produção de alguns produtos essenciais – como são os medicamentos, mas também sobre a indústria automobilística que se inviabilizou, devido ao rompimento da cadeira internacional de valor… – se impuseram como evidências. Certamente, já estava previsto no que diz respeito às consequências sociais da globalização: a estagnação relativa dos salários e o aprofundamento das desigualdades de renda e de riqueza. A divisão dos territórios dentro dos países (entre aqueles que perdem e aqueles que ganham), a precarização do trabalho e suas novas formas de organização, o desemprego persistente em certos países, bem como o medo de um futuro incerto e tenebroso legitimaram medidas protecionistas e permitiram que a hiperglobalização voltasse a ser uma globalização do comércio, desacelerando a ascensão da China, principalmente no que diz respeito as novas tecnologias, e encorajando a ascensão da extrema direita e enfraquecimento as democracias.
Antes de avançar mais, é necessário fazer duas observações preliminares: 1) O mundo não descobriu as pandemias atualmente. Elas se multiplicaram por dez desde 1940, de acordo com Morand S., ecologista do CIRAD. A exploração voraz dos recursos naturais e o desmatamento desenfreado estão afetando a biodiversidade (ecossistemas, plantas, animais, etc.), causando danos graves ao meio ambientes. Animais selvagens expulsos de seus habitats naturais e portadores de vírus entram em contato com outros animais. Novas cadeias de transmissão aparecem, os vírus sofrem mutações e, por meio de outros animais, como morcegos, a transmissão para os humanos se torna possível. Foi o caso da SARS, AIDS, do Ebola e agora do SARS-CoV-2.1
2) Essa multiplicação das epidemias tem alguma relação com a globalização do comércio? Sim, mas não direta. O desmatamento e a extração de minerais com produtos poluentes atendem às necessidades, principalmente, dos países asiáticos em crescimento. Isso degrada a biodiversidade. A destruição do meio ambiente tem um custo que não é pago pelos países que compram matérias-primas, mas tem consequências dramáticas para a saúde das populações nativas dos países que as exportam e seu entorno.
Não foi a globalização que produziu a pandemia, embora ela tenha sua parcela de culpa pela degradação da natureza que acabou resultando no aparecimento do novo vírus. A globalização e, depois, a hiperglobalização resultaram num aumento do comércio, estimulado por uma redução significativa no custo do transporte marítimo. Esse tipo de transporte tem também um custo ambiental. A liberação de CO2 e o efeito estufa contribuem para o aquecimento global, que causa a degradação dos ecossistemas. As multinacionais, assim como fazem para pagar menos impostos, buscam reduzir custos jogando com os códigos trabalhistas de diferentes lugares do planeta, já que em vários países tais códigos são apenas pro forma, não sendo aplicados. Podemos, portanto, considerar que, direta e indiretamente, a globalização é um difusor de pandemias que pode, em parte, ser também sua causa. Além disso, dialeticamente, a pandemia pode ter também um forte impacto na globalização, revelando todas as suas fragilidades.
Feitas estas observações, cabe destacar que nem todos os países sofreram a crise com a mesma intensidade. É por causa das políticas econômicas implementadas às pressas, por que os pontos fortes e fracos de cada uma dessas economias são diferentes que a pandemia não teve as mesmas consequências em termos de mortes, queda do PIB e impacto sobre a desigualdade de renda e a pobreza nos país avançado?
I. As primeiras consequências da pandemia nos países avançados
Como já foi mencionado, não é a primeira vez que o mundo é atingido por uma pandemia, a peste e a gripe espanhola nos lembram disso. Entretanto, a grande diferença com relação a outras pandemias globais e regionais – tais como o Ebola – é que desta vez os humanos, e, por meio deles, seus governos (embora nem todos) se conscientizaram do valor sagrado da vida humana e reagiram fortemente – algo inimaginável até então –, deixando de produzir, confinando populações inteiras, bloqueando movimentos populacionais, com a intenção de retardar ou mesmo parar o avanço da pandemia.
A pandemia COVID-19 se espalhou em ondas sucessivas: primeiro nos países asiáticos, depois nos europeus e, em seguida, nas Américas. Freada na Europa após medidas de distanciamento social. Tomadas, na maioria dos países, entre março e maio de 2020, a pandemia apareceu novamente, ameaçadora, a partir de setembro. Provavelmente devido a um relaxamento na aplicação dessas medidas durante o período de férias de verão.
Até meados de setembro de 2020, quase um milhão de pessoas morreram do vírus SARS-CoV-2 no mundo. Mais de 200.000 nos Estados Unidos, no Brasil quase 140.000, na Índia 88.000, no México 75.000, na Grã-Bretanha 42.000, na Itália mais de 35.000, na França quase 31.000 e na Espanha 30.000.
Quando levamos em consideração a população, numericamente diferente em cada país, e calculamos a proporção de mortes por 100.000 habitantes, o ranking muda profundamente, surgem profundas disparidade dentre os países avançados, é possível identificar um “bloco dos líderes” e um “bloco dos últimos”. No “bloco dos líderes”, a Bélgica tem 87,18 mortes por 100.000 habitantes; a Espanha 66,4; a Grã-Bretanha 63,09; os Estados Unidos 61,38; a Itália 59,14; a Suécia 57,64; França 46,9; no “bloco dos últimos” a Suíça tem 24,12 mortes por 100.000 habitantes; a Dinamarca 11,01; a Alemanha 11,35 e a Áustria 8,78. No “bloco dos líderes”, se encontram também alguns países latino-americanos: Peru 98,06; Bolívia 67,76; Brasil 65,93; Chile 65,79 e México 58,92 (dados de 9 de setembro de 2020, fonte: https: // coronavirus .politologue.com).
Dentro de cada um desses países, as disparidades também são fortes: na Itália, por exemplo, o número de casos e de mortes de concentrou em algumas regiões do Norte, na França a concentração se deu no Nordeste e na região parisiense. Portanto, é errado atribuir os fracassos e sucessos apenas às políticas nacionais, uma vez que algumas regiões são mais afetadas do que outras dentro da mesma nação.
No entanto, isso não significa que não devamos buscar responsabilidade, por mais relativa que seja, na eficácia-ineficácia dessas políticas. Erros de avaliação e recursos insuficientes (máscaras, respiradores e produtos reativos) explicam mais ou menos as falhas ou os sucessos relativos em nível nacional, mas não a desigualdade territorial dentro dessas nações.
A pandemia COVID-19 está afetando toda a população dentro dos grupos – locais onde ela se espalha. Primeiramente, ela aparece nos clusters. Algumas regiões são poupadas, outras não. Dentro desses clusters, ocorre uma diferenciação social. Todos são afetados, mas as categorias sociais mais pobres, as mais modestas, são as mais afetadas. Isso acontece por vários motivos. Os pobres são muito mais vulneráveis. Eles vivem em cidades e bairros onde a superlotação torna quase impossível praticar o distanciamento social. Poucos deles têm a possibilidade de trabalhar em home office. Na maioria das vezes, precisam usam o transporte público para ir trabalhar nas organizações que permanecem abertas (as de transporte de carga, saúde e alimentação). Esses trabalhadores são chamados de “linha de frente”. Aqueles que não podem se beneficiar do “seguro-desemprego parcial”2 arcam com as consequências do confinamento, da queda da produção e da oferta de empregos. O fato de serem obrigados a trabalhar, quando podem e, consequentemente, utilizarem o transporte público, acentua o risco de contágio. Suas condições de vida – dificuldade de acesso à água – e a superlotação também explicam sua maior vulnerabilidade. A pobreza está aumentando e a desigualdade de renda também.
Enquanto no início do século 20 simbolizava a riqueza, como podemos ver nos filmes de Eisenstein, a obesidade, atualmente, é uma doença que atinge principalmente os mais pobres. É causada, na maioria das vezes, pelo junk food. Os pobres estão cada vez mais obesos nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. Diabetes, pressão alta e problemas cardiovasculares estão frequentemente associados à obesidade. Todas essas comorbidades tornam mais frágeis os pacientes com Covid-19, elevando a taxa de letalidade dessa doença. Isso explica por que os pobres são mais vulneráveis à pandemia do que as outras classes sociais.
II. A comparação entre França e Alemanha é instrutiva porque as capacidades de resposta de suas indústrias à pandemia não são as mesmas
Os dois países decidiram confinar suas populações. A eficácia de medidas de confinamento para a redução da propagação da pandemia e, depois, para sua contenção depende de dois fatores:
1) da aplicação de medidas de distanciamento social e o uso de máscaras, antes que essas medidas extremas sejam tomadas; 2) da data de início do confinamento. Se a decisão de confinar a população for tomada quando o número de casos positivos e mortes já for muito alto, a eficácia do bloqueio se fará sentir com retardo, pois os pacientes que chegarão aos hospitais lotados terão se contaminado antes do bloqueio. Desse ponto de vista, a França ficou atrás da Alemanha. A relativa indisponibilidade de máscaras para a população, a posição ambígua do governo sobre a necessidade de usá-las e a negligência no cumprimento das medidas de distanciamento social antes da decisão de confinamento, provavelmente, foram responsáveis pelo maior número de mortes nesse país.
A França tem um alto número de mortes por mil habitantes, ao contrário da Alemanha. Já os gastos com saúde de ambas, como porcentagem do PIB, são aproximadamente iguais, em torno de 11,2%. Os métodos de gestão deste setor podem ter um papel na explicação dessa diferença no número de mortes: a importância da reanimação nos hospitais, o número de leitos por mil habitantes3, a participação dos setores público e privado, a maior descentralização. Porém, isso não é decisivo: a Itália, por exemplo, é muito descentralizada e o número de mortes nesse país foi alto e concentrado.
Norte da Itália: Lombardia e Vêneto, duas políticas diferentes A Lombardia (mais de 10.000 mortos) e o Vêneto (1.000 mortos) são regiões semelhantes do norte da Itália, mas que não seguiram a mesma política. Roberto Saviano comenta que na Lombardia, região conhecida por suas indústrias, a política adotada pelo governo foi a de pressionar as pessoas para que continuassem trabalhando, em vez de confiná-las (medidas fortes e coercitivas foram adotadas, mas tardiamente), o que não ocorreu no Vêneto… “O prefeito de Milão (Lombardia), Giuseppe Sala, é um homem de centro-direita, cujo nome apareceu em um caso relacionado à gestão da Exposição Universal, em 2015, e o de Bérgamo (Lombardia), Giorgio Gori, foi por muito tempo um importante executivo do grupo de televisão de Silvio Berlusconi. A princípio, ambos subestimaram a crise sanitária, preocupando-se apenas com as consequências econômicas. Não só fizeram todos os esforços para evitar “parar as máquinas”, mas apelaram aos cidadãos que continuassem a viver normalmente. E isso, para atender às necessidades de um setor produtivo incapaz de considerar o confinamento uma alternativa possível. De fato, a Itália adotou medidas locais de confinamento em 22 de fevereiro, mas limitadas a 50.000 pessoas. Em 4 de março as escolas fecharam. Estenderam-se as medias de confinamento à Lombardia e ao Veneto em 8 de março e as generalizaram, para todo o país, em 10 de março4. Essa política – precoce, se a comparada com as de outros países europeus, mas hesitante5 – não é diferente das políticas adotadas no início por Jonhson, na Grã-Bretanha, e por Trump, nos Estados Unidos – quando foi violentamente contra as medidas de confinamento tomadas por diversos governadores. Soma-se a isso a ineficiência causada pela corrupção, que é facilitada pela descentralização e pelo acúmulo de medidas administrativas. Segundo Saviano “Na Itália, a organização da saúde é uma prerrogativa das regiões. Nesta área, a Lombardia é líder: se caracteriza por uma forte combinação de estruturas públicas e privadas, criadas pelas administrações de centro-direita, no poder durante as últimas duas décadas. Esta região é território de Silvio Berlusconi e reduto eleitoral de Roberto Formigoni, recentemente condenado a cinco anos e dez meses de prisão por graves atos de corrupção concernentes, justamente, aos vínculos entre o poder regional e o setor privado de saúde. Para alguns, parece óbvio o que aconteceu: as “indecisões” e o “risco” que as autoridades correram são o resultado de uma relação de dependência excessiva entre o poder político regional e o poder econômico produtivo. |
Em parte, esses dados podem ser explicados pelas políticas adotadas pelos governos regionais, mas apenas em parte: em primeiro lugar, porque as regiões dentro de cada nação não são afetadas com a mesma intensidade, como já mencionamos; segundo, porque a capacidade de enfrentamento da pandemia depende dos estoques disponíveis de máscaras, da oferta de respiradores, da possibilidade imediata de realizar testes massivos, da importância de seu tecido industrial, da capacidade de reação dos seus setores estratégicos e, finalmente, das formas, ainda, pouco conhecidas de propagação do vírus.
Na França, havia uma política de decisão centralizada; na Alemanha, as medidas eram parcialmente decididas e aplicadas localmente pelos “landers” (províncias). Os resultados dessas políticas foram diferentes. A implementação de uma política não produz os mesmos efeitos aqui e ali, mesmo dentro de cada região que compõe uma nação. Portanto, é necessário analisar os contextos em que essas políticas foram aplicadas para avaliar sua eficácia.
A França tem um déficit significativo na balança comercial (cerca de 60 bilhões de euros, em 2017), explicado, preponderantemente, pelo déficit crescente nas transações de produtos industriais. Já a Alemanha tem grandes superávits. Alguns dados simples retratam esses processos divergentes na França e na Alemanha. De acordo com dados da UNIDO, o valor agregado da indústria global cresceu a uma taxa média de 3,3% entre 2010 e 2015 e um pouco mais entre 2015 e 2018, 3,5%. Na França, esses números são, respectivamente, 0,9% e 1,7%, enquanto na Alemanha são 2,2% e 2,8%.
O peso do valor agregado pela indústria de transformação francesa no valor agregado total por essa indústria no mundo diminuiu entre 2005 e 2019, passando de 2,82% para 1,95; o mesmo ocorreu como a maioria dos países avançados (de 22,9% a 16,31% nos Estados Unidos, de 3,09% a 1,91% na Grã-Bretanha, de 3,24% a 2,03% na Itália). No entanto, na Alemanha tal valor diminui relativamente bem menos, passando de 6,6% para 5,42%. Na China, cabe mencionar, o peso da indústria de transformação está aumentando significativamente, entre essas mesmas datas, foi de 16,39% para 29,67%, já na Índia foi de 1,73% para 3,11% e na Coreia do Sul de 2,64% para 3,05% (UNIDO, Anuário Estatístico Internacional).
Comparação entre os saldos das balanças comerciais da França e da Alemanha em % do PIB (Tradução: França Alemanha)
A França se desindustrializou fortemente nos últimos vinte anos e a proporção de suas exportações nas exportações mundiais não parou de diminuir. O peso da indústria francesa no PIB é de 11%, na Alemanha esse percentual é de 22%. Contudo, a Alemanha começa a sentir os primeiros efeitos da concorrência dos países asiáticos em segmentos industriais promissores, onde ainda é poderosa, o que se reflete em uma ligeira queda6. Alemanha segue, porém, mais aberta e mais globalizada que a França.
Do ponto de vista social, a França protege mais sua população do que a Alemanha. A porcentagem de pessoas pobres na Alemanha é maior. Aposentados e trabalhadores alemães de baixa renda precisam ter mais empregos para sobreviver, sejam eles ativos ou inativos devido a seus baixos rendimentos.
Teoricamente, a crise, tanto econômica como social, deveria ter sido mais severa na Alemanha do que na França. Isso porque, economicamente, a Alemanha é mais aberta, ou seja, uma redução repentina do comércio internacional deveria ter um impacto negativo maior no PIB da Alemanha se comparado ao que teria na França. Socialmente, porque a proteção na Alemanha é menor. No entanto, ocorreu o inverso. Por isso são necessárias análises mais detalhadas.
O vírus SARS-CoV-2 infectou, no caso da Europa, um “corpo enfermo”. Um corpo que já estava doente? Sim, infelizmente. Desde o final dos anos 1970, a taxa de crescimento do PIB per capita desse continente foi, em média, bastante modesta, contrastando com os anos de expansão que se estendem do pós-guerra até os anos 19707.
A França está pagando um preço alto por conta do vírus, em primeiro lugar porque tem menos reservas financeiras e menos capacidade de reagir rapidamente ao aumento da demanda por máscaras, medicamentos específicos, respiradores e leitos hospitalares de reanimação do que a Alemanha. Além disso, sofre mais também porque se especializou nos setores aeronáutico e turístico, setores particularmente afetados pela paralisação da produção e pelo fechamento das fronteiras. O setor aeronáutico ficou praticamente paralisado com o fechamento das fronteiras o cancelamento dos voos intercontinentais. O turismo, fonte de divisas e empregos (hotéis, restaurantes, viagens, shows, concertos e outras atividades culturais) também foi profundamente afetado. Os turistas nacionais, que agora viajam pouco para o exterior, não compensam a falta de turistas estrangeiros. Esses dois setores podem levar a crise econômica a abismos que a França não esteve desde a Segunda Guerra Mundial. A queda nas exportações, a incapacidade de produzir medicamentos, testes e respiradores pressionarão por mais importações e levaram a uma queda do PIB. A Alemanha, entretanto, por ter um tecido industrial mais sólido e bem menos afetado pelo processo de desindustrialização vivido pelos demais países europeus, teve mais capacidade de responder por meio de sua produção nacional aos aumentos das demandas específicas geradas pela pandemia, com exceção, porém, de certos medicamentos. A queda acentuada nas exportações industriais está certamente causando uma queda no seu crescimento, mas menor do que no da França. Isso graças tanto à sua maior capacidade de recuperação, como à sua maior capacidade financeira para conduzir políticas de assistência empresarial, direta ou indiretamente, por meio de empréstimos garantidos pelo Estado.
Não se trata de uma crise de abastecimento produzida pelo processo de acumulação de capital. A queda na oferta é consequência de decisões políticas em prol do isolamento diante da disseminação global do vírus, ou seja, de interromper a produção, exceto a de bens essenciais à sobrevivência, como os alimentos e os produtos ligados a saúde. Portanto, não é uma crise de superacumulação que implicou numa queda da taxa de lucro e, consequentemente, em uma crise ampla.
Ela também não é uma crise de demanda, já que a maioria dos países avançados adotou medidas de auxílio salarial e de renda (“seguro-desemprego parcial”) para a grande maioria das pessoas confinadas que não podiam fazer home office. Em outras palavras, a renda das famílias está longe de ter caído tanto quanto a produção, graças a essas políticas de apoio à demanda. Se houve aumento da taxa de poupança das famílias – principalmente por parte da classe média – é devido ao medo legítimo de uma explosão, no futuro próximo, do desemprego, quando o “seguro-desemprego parcial” for abolido.
III. Medidas econômicas e sociais que acompanharam o confinamento e seu relaxamento
Do ponto de vista da oferta, foram tomadas várias medidas. Embora clássicas, a abrangência de tais medidas vai contra a doxa dominante. Enumerando as medidas de apoio massivo às empresas afetadas pela suspenção de suas atividades, tem-se: adiamentos ou redução dos salários, subsídios diversos, adiamento do pagamento de diversos impostos (entre eles o IVA), garantia do Estado aos empréstimos concedidos. Essas garantias foram concedidas massivamente na Alemanha e caso sejam descumpridas, devido a falência, passam a ser um compromisso do orçamento público.
A política mais original foi sustentar a demanda através do “seguro-desemprego parcial”, algo já feito, em menor grau, pela Alemanha durante a crise de 2008-2009. O objetivo dessas medidas é não apenas evitar o aumento do desemprego decorrente da suspenção das atividades, mas, sobretudo, garantir às empresas a possibilidade de reter os seus trabalhadores para poderem se recuperar no momento da retomada econômica, sem terem de recontratar trabalhadores demitidos anteriormente, pois não seria possível ter certeza de sua disponibilidade.
As políticas massivas de auxílio à demanda surpreenderam, principalmente, aos que denunciavam as posturas neoliberais dos governos8. Prisioneiros de sua retórica, eles não podiam imaginar que governos qualificados como neoliberais pudessem optar por políticas frouxas e ultra-keynesianas de amplo apoio à demanda e, consequentemente, aceitar que seus déficits orçamentários aumentassem. De modo que o governo francês acabasse pagando quase todo o salário líquido de metade dos empregados do setor privado, pois o limite de 4,5 salários-mínimos adotado é muito superior ao de outros países europeus. No total, 12,4 milhões de trabalhadores franceses do setor privado foram beneficiados com esta medida. Na Alemanha foram 10,1 milhões; na Itália 8,5 milhões; na Grã-Bretanha 7,5 milhões e na Espanha 3,4 milhões. Os custos dessas medidas em termos de percentagem do PIB foram de 3,25% na França, 2,8% no Reino Unido, 2,1% na Itália, 1,5% na Alemanha e 1% na Espanha. Outros países, incluindo a Alemanha, foram, portanto, um pouco menos “generosos” tanto em termos de porcentagem dos salários líquidos pagos pelo governo a funcionários confinados (cujo trabalho via home office era impossível), quanto no valor desses salários, sendo o limite mais frequente cerca de dois salários-mínimos (veja o quadro abaixo).
As principais características dos programas de auxílio de renda (“seguro-desemprego parcial”) em alguns países da Europa
A diferença entre a Alemanha e a França é clara. Pelo lado da oferta, a Alemanha está desenvolvendo um esforço significativo a favor do investimento público e dos empréstimos garantidos pelo Estado (37,3% do PIB), já a França procura concentrar seus esforços em ajudar sectores específicos e não tanto em empréstimos garantidos pelo Estado (14,6% do PIB). Do ponto de vista da demanda, a França financia um “seguro-desemprego parcial” maior, tanto em porcentagem do salário líquido quanto como em número de beneficiários.
A Alemanha gastou mais do que a França para apoiar sua economia, porém o esforço para financiar o seu “seguro-desemprego parcial” foi menor. A Alemanha teve um superávit orçamentário de 2,7% em 2019. As políticas econômicas adotadas converteram esse superávit em um déficit de 3,2% do PIB em junho de 2020. Já a França teve um déficit orçamentário ligeiramente acima de 3 % do seu PIB em 2019. Enquanto seu déficit orçamentário esperado em junho de 2020 é de 11,4%. A magnitude desse déficit pode ser explicada, obviamente, pelo aumento do gasto público, pela situação em que já se encontrava (déficit em 2019) e pela grande queda da arrecadação tributária por conta de uma crise maior que a alemã.
O pacote de estímulo alemão, apresentado no início de junho, totaliza 130 bilhões de euros. Além dos 1,13 trilhões anunciados em março (muitos dos quais são empréstimos garantidos pelo governo e, portanto, não se converterão completamente em gastos do governo). Este plano de recuperação destina 78 bilhões para ações de curto prazo – incluindo a redução do IVA (cujo custo é estimado em 20 bilhões de euros) – e 50 bilhões para investimentos futuros – incluindo tecnologias verdes, como o apoio às energias renováveis, a fim de baixar o preço da eletricidade, bem como 7 bilhões para financiar a pesquisas sobre o uso de hidrogênio. Este plano, cabe pontuar ainda, é parcialmente financiado por subsídios da União Europeia (22,7 bilhões de euros).
O “pacote de estímulo” francês, apresentado no início de setembro, se destaca tanto pelo seu tamanho como pelo fato de não ser realmente um pacote de estímulo. Seu montante é considerável (100 bilhões de euros que se somam, ainda, ao aumento dos gastos públicos após o confinamento), mas é inferior ao da Alemanha. É, também, parcialmente financiado pela União Europeia (37,3 bilhões de euros). Não é um plano de estímulo no sentido estrito do termo, mas sim um plano de modernização que inclui importantes medidas ecológicas. Mais precisamente, 30 bilhões de euros serão destinados à transição ecológica, 34 bilhões a aumentar a competitividade das empresas e 36 bilhões a aspectos sociais e territoriais. No que diz respeito à transição ecológica, dos 30 bilhões de euros, 11 bilhões são destinados ao transporte (4,7 bilhões para ferrovias, especialmente para transporte de mercadorias), 9 bilhões ao setor de energia (incluindo 2 bilhões para financiar o sector do hidrogénio), 7 bilhões para renovação energética de edifícios e o resto para agricultura agroecológica. No que se refere à competitividade das empresas, dos 36 bilhões, 10 bilhões correspondem a redução do imposto sobre a produção, o restante a subsídios destinados às empresas, em especial àquelas que contribuirão para a uma realocação industrial.
Por último, dos montantes destinados aos aspectos sociais e territoriais (36 bilhões de euros), 16 bilhões destinam-se a manutenção do financiamento do “seguro-desemprego parcial” (que já custou 20,5 bilhões de março a agosto de 2020) e a formação profissional, 9,5 bilhões para financiar moradias sociais, ajudar pequenas empresas e comunidades e 6 bilhões para ajudar a financiar as novas despesas e as promessas feitas ao setor de saúde durante o Ségur de la Santé (aumento de salários, emprego e investimentos). A esses montantes somam-se, ainda, 800 milhões para ajudar os extratos sociais mais pobres (subsídio para recapacitação no valor de 100 euros) e os estudante de baixa renda (vale refeição de 1 euro).
Em seu todo este plano é, ao mesmo tempo, um plano de modernização das empresas (que aposta em novas estruturas industriais), de transição ecológica e de auxilio aos trabalhadores (através do seguro-desemprego parcial). Praticamente não almeja reduzir a crescente divisão social causada pela pandemia, nem ajudar as famílias mais pobres, aquelas que mais sofrem com a crise atual e que se beneficiam apenas marginalmente, se é que o fazem, do seguro-desemprego parcial. Segundo o governo, não é necessário aumentar a renda dos mais pobres, privilegiando uma política de demanda, pois já ocorreu um aumento da poupança das famílias da ordem de 100 bilhões de euros entre março e agosto de 2020. Isso, segundo o governo, é suficiente para incentivar os poupadores a gastarem suas economias. Esse argumento, porém, é parcialmente falso. Não foram os mais pobres que pouparam mais, mas a classe média, que se beneficiou mais com o seguro-desemprego parcial. A desigualdade de renda aumentou e um “cheque de recuperação” para os mais pobres – proposto pelo sindicato mais importante, o CFDT (Confederação Francesa Democrática do Trabalho) – teria sido bem-vindo. Nesse sentido, o “pacote de estímulo” francês carrega a marca de uma política de direita. Não porque apoia a oferta, mas porque faz menos que o necessário pelos mais pobres, por aqueles que foram mais afetados pela crise.
IV. A Europa passou de uma postura passiva a uma postura ativa?
O Banco Central Europeu (BCE) deu continuidade à política de emissão monetária (monetização da dívida pública, conhecida como “quantitative easing” adotada pelo antecessor de Christine Lagarde – Mario Draghi. O BCE compra títulos públicos de bancos que compraram tais títulos dos governos para financiar seus déficits. Em outras palavras, ele não compra esses títulos diretamente dos bancos centrais dos diferentes países. Desse modo, os países permanecem endividados enquanto a taxa de juros permanecer próxima de zero e eles podem continuar contraindo dívidas para financiar o serviço de suas dívidas (muito baixo) e o reembolso do principal. O balanço do BCE é afetado por tais compras, que diminuem seus lucros. O BCE poderia cancelar tais dívidas e, assim, reduzir a dívida dos países, transformando-a em dívida perpétua e adiando o cronograma de reembolso do principal, ou, então, manter as taxas de juros nominais negativas e esperar um aumento inflacionário, que transformaria essas taxas de juros nominais em taxas de juros reais negativas, como muitas vezes já aconteceu na história.
Essas opções não existem para moedas fracas. Os países cujas moedas são desse tipo estão condenados ao não pagamento ou à reestruturação de suas dívidas sob certas condições. A Argentina é um exemplo disso. Cabe perguntar, essas opções estão sempre disponíveis para o dólar e para o euro, moedas fortes? O exemplo da Grécia mostra que pode não ser o caso. Isolada, a Grécia sofreu a lei do ordo-liberalismo, imposta à vontade expressa pelos gregos, e teve que cumprir as exigências determinadas pelos países do norte da Europa, liderados pela Alemanha. Porém, no caso do COVID a situação é diferente. A Alemanha, antes, hostil à política de “quantitative easing” liderada por Mario Draghi, deixou de sê-lo diante difusão da crise ocasionada pelo COVID-19.
Esta injeção de liquidez pelo BCE é isenta de riscos? A poupança e a financeirização aumentaram às custas do investimento. Os bancos, parcialmente livres de seus títulos públicos, colocaram sua liquidez no mercado financeiro, daí a alta das bolsas de valores e a divergência cada vez mais importante entre a economia real (em dificuldade com Draghi e em forte crise com Lagarde) e a crescente financeirização. Economistas imbuídos da doxa monetarista, esperavam uma recuperação inflacionária ou o estouro da bolha financeira. O primeiro não aconteceu, o risco não é ter uma recuperação inflacionária, mas uma deflação pronunciada. O segundo é uma espada de Dâmocles: uma crise financeira pode tornar as políticas de estímulo ainda mais incertas.
No que diz respeito à União Europeia (UE), sob a liderança da França e da Alemanha, a crise abriu caminho para uma nova política, que pode permitir a consolidação da construção europeia. Antes, quando os estados precisavam contrair empréstimos, dependendo de seus desequilíbrios macroeconômicos, as taxas de juros com as quais de deparavam eram maiores ou menores. A Alemanha e a França, por exemplo, contraíram empréstimos a taxas baixas; a Itália e a Grécia enfrentavam taxas de juros leoninas, o que dificultava a recuperação econômica desses dois últimos países, agravando consideravelmente seus problemas sociais. Agora, com a crise do COVID-19, foi decidido que a União Europeia contrairá empréstimos diretamente e disponibilizar esses recursos aos diferentes países, o que, para além dos procedimentos técnicos, significa que as taxas de juro serão mais baixas. Os estados mais afetados pela crise, portanto, não precisarão mais pagar um spread (“multa”) sobre a taxa de juros de parte de seus empréstimos.
A discussão centrou-se não apenas no montante do empréstimo, mas também, e sobretudo, na questão de saber se a ajuda da UE iria se limitar aos empréstimos (que os países teriam de reembolsar à essa instituição) ou se uma parte desta ajuda poderia ser concedida em forma de subsídios. Apesar da oposição dos países do norte da Europa e da Áustria, superada após duras negociações, a ajuda da UE a seus diferentes países, decidida em julho de 2020, totaliza 750 bilhões de euros. Esse total se divide em 360 bilhões de euros em empréstimos e 312 bilhões de euros em subvenções, as quais se somam 77,5 bilhões de euros de várias rubricas orçamentárias dos planos plurianuais na Europa. Dos 312 bilhões de euros em subsídios diretos, a Itália deve receber 65,46 bilhões, a Espanha 59,17 bilhões, a França 37,39 bilhões, a Polônia 23,06 bilhões e… a Alemanha 22,72 bilhões. 70% desse montante deve ser distribuídos em 2021 e 2022 e o restante em 2023. Os critérios de distribuição visam promover o crescimento, o emprego, a pesquisa, reforçar a resiliência social, favorecer a transição energética e digital. Finalmente, dos 750 bilhões, 30% deve ser destinado a financiar medidas de combate às mudanças climáticas. A aplicação dessas medidas de ajuda pode ser suspensa para os países que violem seus compromissos com o Estado de Direito e a democracia. Por fim, toda a ajuda está condicionada aos objetivos. Pode ser suspensa para os países que não cumprirem os objetivos indicados, mas esta decisão exclui o direito de veto solicitado pelos países do Norte, sendo necessária apenas a maioria qualificada para ser tomada. Os países do Norte, bem como a Áustria, obtiveram descontos na sua contribuição para o orçamento europeu em troca do seu consentimento. Enfim, a Europa deve comprometer-se a encontrar os seus próprios recursos para financiar toda esta ajuda (empréstimos e subvenções).
Este é um acordo histórico, é a primeira vez que a Europa agiu como Europa a respeito de montantes tão grandes de dinheiro.
Conclusão
Com a pandemia, um novo período está se abrindo. Não será mais possível reatar com o passado como se nada tivesse acontecido. Porém, no futuro imediato, existe um grande risco de retorno às velhas políticas econômicas, com exceção, no entanto, de algumas medidas destinadas a realocação industrial estratégica. A pandemia derrubou dogmas econômicos. É provável, todavia, que eles voltarão a vida após esse parêntese intervencionista ultra-keynesiano. Uma vez que o crescimento seja retornado, será necessário começar a pagar os enormes empréstimos feitos durante a pandemia, mesmo que alguns deles estejam destinados a serem “desaparecerem” de uma forma ou de outra. É provável que alguns setores industriais passem por processos de realocação, que outros tenham um crescimento significativo (especialmente aqueles centrados na tecnologia digital) e que, finalmente, as empresas especializadas em turismo e transporte aéreo tenham maiores dificuldades e precisem se reestruturar para sobreviver. Isso, provavelmente, levará os governos no futuro a estender o financiamento destinado ao seguro-desemprego parcial ou a liberar recursos para garantir uma renda mínima básica mais substancial do que já existente. Todas essas reestruturações são realizadas a um custo social, que é tanto mais importante quanto mais ampla é a crise econômica, mais ainda quando tal crise não é nem de oferta nem de demanda.
Do ponto de vista social, é provável que seja pior. A aplicação de medidas sanitárias dificulta as trocas diretas entre as pessoas e são as trocas que fazem a sociedade. A vida diária mudou. O controle é realmente justificável pelo desejo legítimo de conter o contágio, porém, de fato, as liberdades individuais podem estar em perigo.
O mundo a partir de agora será pior do que era? Provavelmente, pelo menos no curto prazo. Mas, como enfatizamos no início, é fundamental não confundir o que vemos com as forças subterrâneas em ação. A crise provocada pela pandemia produziu uma ruptura cujos efeitos se revelarão a médio e longo prazo; com a condição, porém, de que as mobilizações sociais, climáticas e políticas alimentem a chama da recusa a recomeçar como se nada tivesse acontecido.
Tradução: Bruno Roberto Dammski
Foto: Crocerossa/ Divulgação
Pierre Salama é professor emérito Universidade de Paris XIII, CEPN-CNRS UMR 7234, último livro, 2014, Des pays toujours émergeants?, edição La documentation française, coleção : Doc de bolso, aberto ao debate, sob impressão, com Mylène Gaulard, 2019, Economie politique de l´émergence, l´Amérique latine, coleção referência, edição La découverte.
1 Como lembra Mouterde P. (Le Monde do dia 7 de abril de 2020), Quammen D. escreveu com veemência no New York Times: “Nós invadimos florestas tropicais e outras matas nativas, que abrigam muitas espécies de animais e plantas – e dentro dessas criaturas, havia tantos vírus desconhecidos. Cortamos as árvores, matamos os animais ou os enviamos aos mercados ainda vivos. Nós perturbamos ecossistemas e liberamos os vírus de seus hospedeiros naturais. Quando isso acontece, eles precisam encontrar um novo hospedeiro, que frequentemente somos nós.”
2 É um aporte financeiro do Estado a uma parte relativamente importante dos salários dos trabalhadores do setor privado afetados pelo fechamento de empresas (ver acima, Parte III). Entretanto, cabe pontuar, os alunos que trabalham em bares para financiar seus estudos não têm o estatuto de empregado, mas de “extra”. Trata-se de um estatuto mais precário, cuja parte do rendimento provém do número de tarefas desempenhadas. Os setores “uberizados” e informal também não se beneficiam, ou se beneficiam pouco, deste apoio. Isso explica por que os mais pobres são os mais afetados por esta crise e por que a pobreza, tanto em porcentagem como em profundidade, está aumentando.
3 Os países com mais de 10 leitos hospitalares – públicos e privados – por mil habitantes (ou seja, que não são leitos de terapia intensiva) apresentaram a menor taxa de mortalidade causada pela pandemia. Segundo a OCDE, em 2017, a Coreia do Sul tinha 12,7 leitos por mil habitantes, a Alemanha 8, a França 5,97, os Estados Unidos 2,76, o Chile 2, o Brasil 1,95 e o México 1,39. Também é interessante observar a distribuição público-privada dos leitos. O percentual de leitos em hospitais públicos sobre o total de leitos (públicos mais privados) é de 10,2% na Coréia do Sul, 40,8% na Alemanha – cabe pontuar, no entanto, que os hospitais privados nesse país estão sujeitos ao serviço público universal –, 61,6% na França, 22,1% nos Estados Unidos, 73,9% no Chile e 73,9% no México (Ver: Cetrangolo O. e Goldschmit, abril de 2020, blog Alquimiaseconomicas).
Na última década, muitos países diminuíram o número de leitos após a adorarem de critérios de custo-benefício para gestão hospitalar.
4 Ver Evaluation de la pandémie de Covid-19 sur l’économie mondiale, Revue de l’OFCE, n° 166, p. 11 e seguintes.
5 Com exceção da Espanha, as medidas de suspenção das atividades das empresas não essenciais foram nacionais. Adotadas, por exemplo, dia 17 de março na França e dia 22 de março na Alemanha; neste último, caso a suspenção das atividades das empresas foi aconselhada, enquanto a suspensão das aulas foi compulsória.
6 A participação da Alemanha, a nível mundial, nas exportações de produtos da indústria metalmecânica diminuiu de 19,2% em 2010 para 16,1% em 2018, enquanto a da chinesa, entre essas mesmas datas, passou de 8,5% para 13,5% (fonte: O Valor 21 de setembro de 2020).
7 Poderíamos pensar que um crescimento baixo é benéfico ao meio ambiente. Contudo, isso seria esquecer que com um crescimento do PIB per capita de 1%, levaria cerca de setenta anos para que a renda per capita dobrasse. Além disso, mesmo com esse crescimento moderado, os danos à natureza e aos seres humanos seriam consideráveis. Em outras palavras, com taxas de crescimento muito baixas, a mobilidade social torna-se quase impossível e ao mesmo tempo a distribuição de renda se torna mais desigual.
8 É óbvio que existem políticas neoliberais de redução de determinada assistência social, especialmente para conter o aumento de determinados gastos públicos, ou mesmo reduzi-los. Por exemplo, na área da saúde, a diminuição do número de leitos em hospitais através da adoção de critérios de mercado para administrar esse setor. Contudo, qualificar a política econômica em sua totalidade na França como neoliberal é um equívoco, quando sabemos que o gasto público nesse país foi estimado em 53,8% do PIB em 2019 e que todas as deduções obrigatórias (impostos e contribuições sociais) ficaram em 44,7%. Nesse caso, o uso e abuso do termo neoliberal – que não sabemos mais o que significa atualmente – permite economizar na realização de análises em benefício apenas da denúncia, porém se mostra incapaz fornecer uma análise que permita compreender o aumento dos gastos públicos resultante do “seguro-desemprego parcial”.