Os acontecimentos no Brasil em anos recentes são incompreensíveis sem ter em mente as relações internacionais. Muitas análises, a maioria das que se propõem críticas, pensam neste período tendo em vista a dinâmica interna, em especial a da luta de classes. Embora o funcionamento desta dinâmica classista esteja no epicentro desta crise, sua gênese e muitos dos seus mecanismos de funcionamento tem origem externa. É da capacidade de desestabilização da potência hegemônica, os Estados Unidos, que se está falando aqui.
Iraque, Síria, Ucrânia, Líbia, a “Primavera Árabe” e Irã são exemplos de ação “regime change” por parte dos EUA, conforme já tratado por muitos autores acadêmicos e pela própria imprensa. Da utilização de força militar explícita (como no caso iraquiano), passando pelo apoio a grupos opositores armados (a “oposição moderada” síria) à utilização da internet como meio de desestabilização e o financiamento de grupos opositores internos (que organizam protestos, às vezes violentos, e atuam fortemente nas mídias sociais) a potência hegemônica global se utiliza de vários instrumentos para sabotar os governos que se colocam contra a sua agenda e o seu interesse naquela região específica. Evidentemente os EUA não são o único único Estado Nacional que age para bloquear competidores mas, pela sua posição na ordem internacional, dispõem de mais recursos para isso. É importante ressaltar que nunca teve um competidor que disputasse a hegemonia regional nas Américas e que desde a Doutrina Monroe considera toda a região sua área direta de influência, seu “quintal”.
No caso brasileiro, como já colocado em outro artigo, a instabilidade se iniciou nos protestos de junho de 2013. Em artigo publicado na revista Piauí, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores, mencionou que Dilma Rousseff e Lula foram informados por Recep Erdogan, presidente turco e pelo líder russo Vladimir Putin de que foi detectada a intensa ação de “robôs” na internet naquele período, perfis falsos que estariam incitando os protestos. Grupos de direita, que surgiram com a suspeita de financiamento externo para orquestrar protestos, estavam bastante ativos na internet e foram importantes na criação do clima de ódio e intolerância política e social que passou a predominar desde então. Embora a esquerda tenha participado ativamente destes protestos e enfatizado demandas históricas da população brasileira como saúde e educação públicas de qualidade, os novos protestos, a partir da reeleição de Dilma Rousseff, em 2014, foram conduzidos pela direita, compostos basicamente pela classe média, insatisfeita pela ascensão social de milhões de pobres e sua perda de status relativo.
A política externa do período petista se diferenciou bastante da do período anterior, com FHC, e buscou dar mais ênfase ao diálogo e às parcerias Sul-Sul, ao fortalecimento do projeto de um bloco sul-americano (Unasul) liderado pelo Brasil e, no que talvez tenha sido o passo mais ambicioso, a constituição do bloco BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, na sigla em inglês) que, a partir da “Carta de Fortaleza”, de 2014, deixou de ser uma reunião anual de Chefes de Estado de países em ascensão na ordem mundial para tornar-se um grupo que propôs a constituição de um novo fundo, o “FMI dos BRICS”, denominado oficialmente de “Acordo Contingente de Reservas” e de um banco (o Novo Banco de Desenvolvimento), com sede em Xangai, na China. Outras ações, como a intermediação bem-sucedida de um acordo com o Irã sobre a questão nuclear, em 2010, cinco anos antes do acordo que vigora atualmente, de 2015 (que não prosperou, naquele momento, por falta de interesse dos EUA), a criação do Conselho de Defesa Sul-Americano (que buscou institucionalizar a mediação de eventuais conflitos no subcontinente sul-americano pela Unasul, sem portanto interferência de potências externas), a criação da Celac (organização alternativa à Organização dos Estados Americanos e sem a presença de Estados Unidos e Canadá), a expansão da diplomacia brasileira, com a instalação de novas embaixadas, especialmente na África, dentre mais exemplos, conformaram uma ação externa que buscou ampliar o raio de ação do Brasil e reduzir a dependência dos parceiros tradicionais (Estados Unidos e Europa Ocidental), embora em nenhum momento esta política tenha buscado o confronto com as potências do Norte. Em verdade foram buscados acordos, como, por exemplo, a negociação comercial entre Mercosul e União Europeia (que perdura até hoje). Mas no caso da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), objetivo dos EUA desde o governo de Bush pai, Brasil, Argentina e Venezuela, em especial, não aceitaram a sua instalação.
Esta política desagradou o eixo dominante de poder global do Atlântico Norte. Em especial a criação do grupo BRICS. O deslocamento do Brasil para uma aproximação econômica e política, especialmente com China e Rússia, está sendo bloqueado. O Brasil continua participando mas, agora sob a presidência de Michel Temer, produto de um golpe parlamentar, que muito provavelmente contou com apoio externo, com grau de ambição muito menor. Vê o grupo meramente como oportunidade de atração de investimentos estrangeiros, uma estratégia passiva dissonante em relação a objetivos brasileiros do passado recente, de busca de protagonismo global, expansão de sua diplomacia, de sua influência política e das empresas brasileiras de capital nacional.
A Procuradoria Geral da República fechou acordos de “cooperação internacional” com vários países, dentre eles os EUA, representados pelo Departamento de Justiça. E, numa ação que se pode qualificar de lesa-pátria, passou informações sensíveis de companhias brasileiras para outro país concorrente. Empresas cruciais no processo de expansão para o exterior no período petista como a Petrobrás, empreiteiras como a Odebrecht, a Embraer e a JBS são objeto de investigações e processos no Brasil e nos Estados Unidos e também em outros países. A JBS se tornou uma gigante global, a maior processadora mundial de carnes e líder no mercado norte-americano. A Petrobrás detinha a exclusividade de operação no chamado pré-sal (o petróleo em águas ultraprofundas) e o fornecimento de equipamentos para esta exploração precisava ter origem brasileira, em sua maior parte. As empreiteiras do Brasil, setor em que o país possui expertise vinham ganhando mercado na América Latina e na África, concorrendo com empresas norte-americanas, europeias e chinesas. E a Embraer (que é objetivo de aquisição pela norte-americana Boeing) é a maior produtora de jatos regionais do mundo.
Curiosamente, a Operação Lava Jato atingiu justamente estes setores econômicos protagonistas. E que cresceram com financiamentos públicos, o que não é exatamente uma originalidade brasileira. Como exemplo é só se verificar o papel dos bancos públicos no desenvolvimento chinês. Ou do gasto público para o desenvolvimento tecnológico dos EUA, via gasto militar (que se desdobra em aplicações civis). Todos os países relevantes do mundo têm presença do Estado no desenvolvimento do seu capitalismo nacional. A questão da corrupção transformou-se em álibi para a desarticulação de setores inteiros, como foi o caso do setor de construção civil pesada e construção naval. Recentemente o presidente da empresa coreana Samsung esteve envolvido num caso de corrupção que causou o impeachment da presidente sul-coreana. Foi preso, mas a empresa continuou operando normalmente. Nos EUA e na Europa as investigações impõem penalidades a pessoas e empresas, mas não prejudicam o seu funcionamento. O Ministério Público Federal brasileiro, em associação com instituições de outros países, prejudicou a economia do Brasil, causou desemprego, queda dos investimentos, perda de mercados, ruína de empresas. A ação anticorrupção da Operação Lava Jato se deu (e ainda continua assim) de forma destrutiva. Os recursos que foram devolvidos à Petrobrás e que haviam sido desviados pela corrupção são ínfimos comparados aos enormes prejuízos que a empresa teve desde 2014, quando da instalação da Operação Lava Jato, na forma de paralização de investimentos, perda de seu valor acionário e perda de credibilidade. Além disso, as más decisões gerenciais a partir do governo de Temer, que vem buscando fatiar a empresa com venda de ativos (na contramão das grandes petrolíferas que são integradas e vão da exploração à venda de derivados) buscam reduzir o protagonismo da Petrobrás na produção de energia e na indução do desenvolvimento do Brasil.
Portanto, interesses econômicos e políticos poderosos, internos e externos, confluíram para a criação do ambiente propício à retirada do poder de uma presidente legítima. Como disse certa vez Henry Kissinger, ex-secretário de Estado dos EUA: “Não é interesse geopolítico dos EUA que haja um Japão na América do Sul.” E farão o que for preciso para evitar que o Brasil desenvolva o seu potencial e se torne um competidor no Hemisfério Ocidental.
Foto: Roberto Stuckert Filho/ PR
Texto originalmente publicado em 2018.
Wagner Sousa é Doutor em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Editor de América Latina.