A República Popular da China permaneceu isolada a maior parte do período, entre 1949 e 1970, principalmente pelo bloqueio econômico e militar imposto pelos Estados Unidos e permaneceu alheia da corrida armamentista, não praticou o intervencionismo militar e se opôs ao hegemonismo. Na Conferência de Bandung apresentou as cinco regras de coexistência pacífica.
Na década de 1970, ainda com Mao Zedong no poder, a República Popular da China iniciou um processo de articulação mundial, iniciando relações diplomáticas com os Estados Unidos, que finalizou o bloqueio em 1971. Nesse contexto, a Argentina presidida pelo ditador Lanusse, em 1972, reiniciou as relações diplomáticas com a China, postura coerente com o alinhamento que o país teve com os Estados Unidos em relação às vinculações com o país asiático, inclusive nos tempos de Perón. Desde então, as relações bilaterais se consolidaram não apenas em termos diplomáticos, mas também em termos comerciais, científicos e de investimento. Em 1978, já com Deng Xiaoping como sucessor de Mao, a RPC lança o programa das quatro modernizações na áreas de agricultura, indústria, ciência e tecnologia e defesa e se propõe à abertura econômica. Dois anos depois, em 1980, aconteceu a primeira visita de Estado à China, quando o ditador J.R. Videla visitou Pequim.
Já durante o processo de redemocratização, China e Argentina assinaram acordo de cooperação nuclear, o que se deu logo após a queda da ditadura. A China foi também um aliado importante para a Argentina após a Guerra de Malvinas, já que ambos países compartilharam posições frente à Grã Bretanha no Comité de Descolonização da ONU. Para a Argentina ter respaldo de um membro do Conselho de Segurança com poder de veto neste tema sempre foi importante. Em 1988, Raúl Alfonsin visitou a China, e foram assinados acordos sobre a Antártida, pesquisa e aplicação de ciência astronáutica e quarentena animal e cooperação sanitária.
O presidente da China, Yang Shangkun, visitou a Argentina em 1990 e, em 1994, altos membros do Partido Comunista da China visitaram o país sul-americano, entre eles Hu Jintao, membro do Comité Permanente do Politburo do PC chinês. Em contrapartida, em 1995, C.S. Menem visitou a China, alguns acordos foram assinados e o comércio bilateral foi incrementado, contudo as relações exteriores da Argentina estavam focadas no desenvolvimento das “relações carnais” com os Estados Unidos da América.
Em 1999, a China lançou o programa “going out” de promoção às empresas chinesas a realizar projetos e investimentos no exterior, assim como também promover o reconhecimento de marcas chinesas nos principais mercados. No ano 2000, durante a sua curta presidência de Fernando de la Rúa, este visitou a China e recebeu a visita do presidente Jiang Zemin ao país, nesta oportunidade os governos assinaram o Acordo de Adesão da China à Organização Mundial de Comércio, entre outros acordos em ciência e tecnologia e investimentos.
O gráfico dos tratados bilaterais da Argentina com a RPC e os Estados Unidos mostra o progresso das relações com a China principalmente desde 2003. Essa mudança foi relacionada a fatores como a entrada da China na OMC e o distanciamento da Argentina dos Estados Unidos, pós Movimento “não à ALCA”, entre outros eventos históricos que marcaram o início do século XXI.
Fonte: Elaborado pela autora em base aos dados do Ministério de Relações Exteriores e Culto da Argentina.
Como resultado, o relacionamento bilateral foi elevado ao status de Parceria Estratégica Global em 2014 e o país asiático consolidou-se para a Argentina como o segundo parceiro comercial depois do Brasil. É importante salientar que a pauta exportável da Argentina é fortemente concentrada em poucos produtos com escasso valor agregado, só três bens concentram 76% das exportações, 55% das mesmas estão concentradas em soja, 11% em petróleo e 10% em carnes congeladas. De 2005 a 2019, a China investiu perto de USD 25 bilhões dirigido principalmente ao setor energético e de transporte, realizando projetos de grande escala como represas hidrelétricas, modernização do sistema ferroviário e metrô, até uma Base de Exploração do Espaço Profundo na Patagônia.
Fatos estes que tem certa similitude com as relações bilaterais da China com o Brasil, com a exceção de que no caso argentino a intensificação do comércio levou à importantes déficits comerciais com a China desde 2009, piorando consideravelmente durante o governo de Macri com déficits de USD 6 bilhões em 2017 e USD 7,2 bi em 2018.
Durante o governo de Cristina F. de Kirchner, com o conflito com os fundos abutres e as restrições ao financiamento internacional, os SWAPs acordados com a China constituiram um alivio importante para as contas públicas do país. Mesmo que os economistas macristas tenham criticado fortemente os SWAPs, os chamando de “fantasía para poder reforçar as reservas”, o acordo foi ampliado durante a gestão do Macri. Hoje os SWAPs com a China constituem 31% das reservas do Banco Central Argentino, 130 bilhões de yuans, que a uma taxa de câmbio de 7,09 yuan por dólar, eles representam o equivalente a US $ 18,3 bilhões.
A tentativa do Macri de se distanciar da China.
Em 2015, Macri, como candidato à presidência, enviou uma carta ao embaixador chinês em Buenos Aires, na qual transmitia sua “preocupação” por causa dos acordos bilaterais – aprovados pelo Congresso com o voto da Frente Para a Vitória (partido de Cristina Fernández de Kirchner) e aliados – e que, dizia, não haviam alcançado “amplo consenso”. O parágrafo mais forte foi “Acreditamos que o comportamento atual do governo argentino possa estar violando a Constituição sendo contrário ao princípio mais básico de transparência dos assuntos públicos”. Os chineses devem ter ficado pasmados, considerando-se que o grupo de empresas de Macri, liderada então por Franco Macri, pai do presidente, é um dos mais importantes parceiros chineses na Argentina. O grupo do pai do presidente representa Chery e DFSK no país e o próprio Franco Macri foi conselheiro sênior dos investimentos chineses na América Latina.
Semelhante ao caso brasileiro, com a mudança do governo, na Argentina com a eleição que consagrou Macri e no Brasil após o golpe que levou a Michel Temer à presidência, os presidentes de direita contaram com o apoio dos Estados Unidos. Para a maioria dos estudiosos, não estava claro o lugar que a China ocuparia na política externa dos novos governos. No primeiro semestre de 2016, tanto Macri quanto Temer, expressaram a necessidade de um “retorno à realidade”, “de voltar ao mundo” e aos “parceiros tradicionais”, o que significava uma suposta “desideologização” nas relações diplomáticas com o resto do mundo e restabelecimento das relações bilaterais tradicionais com os Estados Unidos e a Europa (o “normal”).
Durante os primeiros sete meses do governo de Macri as declarações do presidente tentando frear os projetos de infraestrutura assinados pelo governo de Cristina Fernández de Kirchner com o gigante asiático tiveram consequências. A China reduziu 30% as suas importações de soja e 97% de óleo de soja provenientes da Argentina. Durante esse período, a China adquiriu 280.000 toneladas de óleo de soja de outros países: Brasil, Ucrânia e Rússia. O principal fornecedor foi o Brasil, que conseguiu cooptar 59% do mercado chinês. O motivo foi a hostilidade do governo, que tentou impedir grandes projetos assinados por Cristina Kirchner.
Em setembro de 2016, Macri foi a Hangzhou para a reunião do G20. Depois de concordar em manter os projetos assinados com a China pelo governo anterior, o comércio de soja foi restabelecido. Ao final de 2016, a Argentina havia exportado para a China US$ 2,79 bilhões em soja (21% menos que 2015) e 85 milhões de óleo de soja (76% menos do que no ano anterior). Movimentos estes que podem ser definidos no marco da diplomacia econômica chinesa. Para China existe uma “unidade dialética da economia e diplomacia”. A mesma consiste em políticas que não apenas servem a propósitos econômicos, mas também a propósitos políticos e estratégicos.”(Wang Yiwei ,2004). Apesar do coração de Macri pender para os Estados Unidos, o bolso pesou.
Apesar do alinhamento ideológico e político dos governos de direita na Argentina e no Brasil com os Estados Unidos – e da pressão dos EUA aos governos sul-americanos para se distanciarem da China- o pretendido distanciamento nunca ocorreu na dimensão pretendida pelos norte-americanos. Ao final, Macri acabou assinando mais acordos em média do que Cristina e Néstor Kirchner.
São as imbricações estruturais com a China de hoje, fortemente vinculadas à dependência comercial com o país asiático, a qual não é permutável pela relação com os EUA. A potência norte-americana é a maior produtora de soja no mundo e, portanto, as principais exportações da Argentina e do Brasil não terão como destino os EUA. A China importa 70% da soja no nível mundial. Ainda que os governos pretendam se alinhar politicamente com os EUA, os interesses econômicos dos setores exportadores nacionais, fortemente concentrados, pressionariam o governo contra disso. Por outra parte, o uso da diplomacia econômica chinesa em relação à Argentina foi absolutamente eficiente: a China vocalizou o seu descontentamento, mas tocou o bolso dos exportadores, com a redução do ingresso de divisas das exportações, e portanto, obteve um resultado contundente. Macri teve que mudar o pretendido alinhamento quase automático com o Trump.
Como resultado, na nossa região, a falta de políticas de Estado levam a uma total inconsistência e ausência de estratégia na condução das relações internacionais. Neste sentido, outro dos casos relevantes – e inacreditáveis -, foi o caso da cooperação nuclear sino-argentina.
Em relação à cooperação em energia nuclear, em 2015 foi negociada a construção de duas usinas nucleares com o país asiático. Por um lado, a Argentina decidiu comprar uma usina de urânio natural e água pesada, na qual poderia usar 70% de sua tecnologia e indústria nacional, e ao mesmo tempo continuar com a política de maior independência das importações de urânio enriquecido. Por outro lado, a China propôs a instalação de um reator de água leve que utiliza urânio enriquecido com tecnologia própria. No âmbito deste projeto, um importante pacote de transferência de tecnologia foi negociado em acordos bilaterais.
Diante da oposição de Washington às usinas nucleares chinesas, o governo argentino comunicou que cancelaria esses projetos durante a visita de Donald Trump a Buenos Aires em 2018. Finalmente, em 2019, o investimento estrangeiro na área nuclear foi confirmado, mas montando uma única usina em vez de duas, exatamente a que não combina tecnologias nacionais e chinesas. Essa decisão contraria o longo desenvolvimento nuclear que a Argentina vem consolidando desde os anos 1970. A conclusão das duas usinas teria permitido continuar crescendo no setor nuclear e na produção de energia, além de gerar demandas tecnológicas para a indústria nacional.
Macri, o presidente sem poder, e a formula Fernández-Fernández em relação à China.
Embora o governo Macri tenha contado com o apoio do FMI e da mídia privada ultraconcentrada, a enorme maioria dos argentinos decidiu votar contra a agenda neoliberal. Após quatro anos de Macri como presidente, o país afundou em uma crise econômica similar aquela que acabou ocorrendo em 2001. A aliança com o FMI levou o país a um aumento da relação dívida/PIB de quase 90%. O FMI concedeu a Macri o maior empréstimo em toda a história da instituição, mas não houve nem uma só sinal de recuperação econômica. A Argentina precisará de apoio chinês para lidar com suas dívidas externas e já ocorreram algumas conversações dos prováveis funcionários do gabinete de Alberto Fernández com a Embaixada da China em Buenos Aires. Aumentar as exportações para o país asiático e diminuir o crescente déficit comercial ajudará a equilibrar o setor externo. Essa parceria estratégica global pode estabelecer um novo estágio para os dois países. Mas essa relação só terá frutos positivos se o país sul-americano planejar uma inserção com a China atrelada a um processo de restauração da produção que reverta à enorme reprimarização da economia argentina e projete investimentos em áreas estratégicas para o desenvolvimento nacional.
Foto: Divulgação/ G20
Maria Jose Haro Sly é socióloga, nascida na Argentina. Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina e mestranda em Estudos Contemporâneos da China pela Escola da Rota da Seda, da Renmin University of China.