Na obra The Road to Somewhere: the populist revolt and the future of politics1, o jornalista britânico David Goodhart aponta para uma nova divisão no espectro político-ideológico, uma polarização que teria menos a ver com a tradicional clivagem entre esquerda e direita, e mais com o debate atual que coloca o nacional contra o global.
De um lado estariam os intitulados anywhere, pessoas que, como o nome sugere, sentem-se bem em qualquer grande cidade e são menos “enraizadas” nas comunidades locais: seu estereótipo seria um jovem universitário de uma capital como Londres e Nova Iorque, que provavelmente estuda longe de onde nasceu, sente-se bem em ambientes multiculturais, e defende valores cosmopolitas como a diversidade, a imigração e a globalização de ideias e produtos.
Do lado oposto estariam os somewhere, indivíduos com um senso de pertencimento e identidade mais localizado, mais conectados com a comunidade de seus ancestrais e mais dispostos a fazer sacrifícios pessoais em nome da bandeira, família ou religião. O estereótipo caricato do somewhere é aquele homem branco norte-americano de classe média-baixa, que perdeu economicamente com a globalização e já não reconhece mais a sua vizinhança. Neste sentido, os somewhere estariam desconfortáveis com o que percebem como um excesso de legislação extranacional (ex: ONU, União Europeia), exagerada imigração e diluição de fronteiras entre as sociedades. Igualmente, eles estão mais preocupados com questões relativas à segurança, costumes e tradições, do que com as pautas identitárias associadas com os anywhere.
Para David Goodhart, esta nova polarização captura melhor os grandes debates e tensões do mundo desenvolvido (ex: a questão da imigração muçulmana) do que uma leitura estritamente baseada em classes. Embora na média os anywhere sejam economicamente mais favorecidos do que os somewhere, o jornalista britânico revela que nas eleições de 2016 que levaram ao Brexit, no Reino Unido, e à vitória de Donald Trump, nos EUA, a renda de uma pessoa não era o melhor preditor de sua escolha política. A pesquisa de Goodhart revela que, majoritariamente, os que votaram contra o Brexit eram indivíduos mais progressistas, jovens, instruídos, geograficamente móveis, e economicamente interessados na posição de Londres como capital financeira mundial. Paralelamente, os que votaram em Trump eram mais brancos, mais religiosos, mais velhos e, em muitos casos, associados com a antiga área industrial norte-americana conhecida como Rust Belt2.
Talvez a mensagem mais importante do livro de Goodhart, no entanto, seja mostrar como movimentos nacionalistas atuais (como o Brexit e a eleição de Trump) podem ser compreendidos como uma revolta dos somewhere ao que eles passaram a entender como uma “ditadura” das elites liberais cosmopolitas, uma ditadura que há décadas lhes diz que não há alternativa à globalização desenfreada de bens e pessoas, que o seu comportamento é politicamente incorreto e, portanto, retrógrado e fadado ao desaparecimento, que as fronteiras nacionais são coisa do passado, etc.
Mais do que isso, segundo a leitura de Goodhart muitas das pessoas que recentemente se deixaram seduzir por movimentos autoritários genuinamente sentiam que haviam sido esquecidas pela elite, que seu status e salários na sociedade haviam diminuído, e que estavam perdendo o controle de suas vidas3, já que as jurisdições com poder real estavam cada vez mais distantes (ex: OMC, Comissões de Direitos Humanos).
Queremos agora sugerir que, guardadas as enormes diferenças sociais e geográficas, a atual administração do governo brasileiro também se utiliza desta retórica “populista” contra as elites dominantes como forma de legitimação de poder. Em nenhum lugar da administração atual esta teorização somewhere de demonização da globalização é mais clara do que na chancelaria de Ernesto Araújo, a quem dedicaremos os próximos parágrafos.
Atual ministro das Relações Exteriores do Brasil (2019-), Ernesto Henrique Fraga Araújo nasceu em Porto Alegre (1967), graduou-se em Letras pela Universidade de Brasília em 1988 e ingressou na carreira diplomática em 1991. Diplomata de carreira relativamente recente, Ernesto Araújo foi promovido a Ministro de Primeira Classe apenas em 2018, pouco antes de ser indicado para chanceler, durante as campanhas presidenciais do mesmo ano.
Entusiasta da política externa de Trump, é possível dizer, com risco de exagero, que a nomeação de Ernesto como ministro de Estado deveu-se muito aos esforços de divulgação do ensaísta conservador Olavo de Carvalho, que teria ficado impressionado4 com o artigo “Trump e o Ocidente”, que Araújo escreveu para a revista de Política Externa do Itamaraty no final de 20175.
Em “Trump e o Ocidente”, Araújo critica muitas das características tipicamente anywhere: a rejeição do passado; a equiparação do nacionalismo com o fascismo; o esquecimento dos mitos, ancestrais e heróis nacionais; a ideia de que todas as relações de gênero são indubitavelmente marcadas pelo patriarcado; a rejeição da família como pedra basilar da sociedade; etc. Além disso, e ecoando polemistas conservadores como Frank Salter6 e Kevin MacDonald7, para Araújo existem dois pesos e duas medidas no tratamento que a academia e demais instituições progressistas dão à questão da diversidade. Enquanto os liberais aplaudiriam todas as manifestações etnoculturais de “minorias” não-ocidentais, condenariam com fervor redobrado a mesma manifestação ou discurso, quando produzido por ocidentais.
É neste sentido que se pode entender melhor o que Ernesto pretende com seu ambicioso título. Para o chanceler, Donald Trump seria o próximo de uma série de personagens – passando por Winston Churchill e Ronald Reagan – que conseguiram tirar o Ocidente do seu autoflagelo e autonegação. Para Ernesto Araújo, a batalha maior do Ocidente atual não é geopolítica, por território, rotas comerciais, ou mesmo tecnológica, mas sim uma batalha contra as próprias forças internas que insistem em dizer que não há Ocidente, culturas, ou incompatibilidade de valores entre as “grandes civilizações”8. Uma batalha essa onde o Ocidente já começaria derrotado por se recusar mesmo a lutar, negando que possui raízes histórico-culturais que correm o risco de se perder com a imigração descontrolada e a entrega de poder a entidades supranacionais.
Em duas ocasiões importantes, no entanto, Trump teria dado indícios de que, nas palavras de Araújo, estaria disposto a “reviver o Ocidente” (2017: 352). Tanto em Varsóvia. em julho de 2017, quanto na Assembleia Geral da ONU, em setembro do mesmo ano, o tema central do discurso de Trump foi a visão de que o Ocidente “está mortalmente ameaçado desde o interior, e somente sobreviverá se recuperar o seu espírito” (2017: 326). Enquanto no primeiro discurso identifica nos poloneses o espírito de luta e resistência recentemente esquecido, mas historicamente tão caro ao Ocidente9, em Nova Iorque Trump formata, sem rodeios, a visão de um estadista somewhere das relações internacionais: a descrença absoluta na universalidade moral dos valores liberais e o reconhecimento de que o mundo é formado por nações fortes, independentes e soberanas, ao mesmo tempo em que os EUA não mais abrirão mão de seus valores, se propondo a negociar a partir de uma “posição de força”10.
Resta concluir onde o Brasil entra neste revigorado mundo Ocidental que Araújo tanto defende e cujo defensor Trump supostamente encarna. Infelizmente, Araújo dedica muito pouco do seu texto ao papel do Brasil neste “Choque de Civilizações”, contentando-se em dizer que “o povo brasileiro parece ser autêntica e profundamente nacionalista e, desse modo, o Brasil não terá por que sentir-se desconfortável diante de um projeto de recuperação da alma do Ocidente a partir do sentimento nacional” (2017: 354). Tirando o fato, aliás muito polêmico, de que a ideia de nação nasce no Ocidente (e ele não está falando dos Estados-Nacionais, mas sim da nação grega) (p. 335), ao sugerir que o Brasil indubitavelmente faz parte desta matriz greco-romana, para não dizer judaico-cristã, Araújo desconsidera todos os matizes da sociedade brasileira para quem os “heróis” e mitos ocidentais nunca tiveram muito significado, além daquele associado com a expropriação e exploração.
Foto: Envato
Tiago Nasser Appel é bacharel em Ciências Econômicas e Mestre em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal do Paraná. Doutor em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
1 GOODHART, David (Londres: Hurst & Co., 2017).
2 Ou Cinturão da Ferrugem, região dos Estados Unidos que abrange Estados do Nordeste, Grandes Lagos e Meio-Oeste, conhecida por abrigar um grande contingente de trabalhadores manufatureiros até os anos 1970.
3 Daí o slogan da campanha pró-Brexit no Reino Unido: “Take Back Control”.
4 MELLO, Patrícia Campos. Novo Chanceler, Ernesto Araújo foi indicado por Olavo de Carvalho. Folha de São Paulo (14 de Novembro de 2018). Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/11/novo-chanceler-ernesto-araujo-foi-indicado-por-olavo-de-carvalho.shtml
5 In: Cadernos de Política Exterior. Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, v. 3, nº 6, dezembro de 2017. Brasília: FUNAG, p. 323-358. Disponível em: http://funag.gov.br/biblioteca/download/CADERNOS-DO-IPRI-N-6.pdf
6 SALTER, Frank. On Genetic Interests: family, ethnicity and humanity in an Age of Mass Migration. New Jersey: Taylor & Francis, 2007.
7 MACDONALD, Kevin B. The Culture of Critique Series. Santa Barbara: Greenwood (1994-2004).
8 O leitor perceberá a semelhança com a tese de Samuel Huntington, em Clash of Civilizations?, Foreign Affaris, 1993. Disponível em: https://www.foreignaffairs.com/articles/united-states/1993-06-01/clash-civilizations.
9 Aqui Araújo se refere à figura do rei polonês Jan Sobieski, “que veio em socorro de Viena cercada” (p. 327) pelos otomanos, em 1683, e à resistência polonesa durante o nazismo.
10 Para entender este abandono do cosmopolitismo liberal e abdicação, por parte dos Estados Unidos, da posição de árbitros dos conflitos mundiais, ver John Mearsheimer (Bound to Fail: the rise and fall of the liberal international order; International Security, Vol. 43. N. 4, 2019) e José Luís Fiori (A Síndrome de Babel e a Nova Doutrina de Segurança dos EUA; Tempo do Mundo, Vol. 4. N. 2, 2018).