“É muito cedo para saber”, respondeu o primeiro ministro chinês Zhou Enlai, em 1972, quando lhe perguntaram sobre os impactos do maio francês de 1968.
Um ano depois o ciclo de ouro da era capitalista terminaria, segundo Eric Hobsbawn. O impacto da decisão unilateral dos Estado Unidos, em 1971, de acabar com o sistema Bretton Woods levou ao caos financeiro e cambial de 1973, ao que se somaram as crises do petróleo de 1973 e 1979, a revolução iraniana, a humilhação estadunidense no Vietnã e o escândalo Watergate que forçou a renúncia de Nixon a presidência dos EUA – em meio a uma economia submersa em altas taxas desemprego e inflação, cujo PIB caiu 6% entre 1973 e 1975. Nos anos 1970, análises conjunturais apontavam o fim da capacidade dos Estados Unidos liderar a ordem liberal ocidental. Vários previam o fim do próprio capitalismo, superado pela capacidade soviética.
O então secretário do Tesouro John Connally afirmou que “a economia dos EUA já não dominava o mundo livre”. O secretário de Estado Henry Kissinger exasperado pela alta do petróleo percebeu que “nações pequenas, pobres e fracas poderiam fazer refém parte do mundo industrializado”. A revista Time, em 1975, se perguntou “se o capitalismo poderia sobreviver” e sete prêmios Nobel de economia assinaram uma carta solicitando uma busca intensa de alternativas a economia ocidental existente. Desabastecimentos e filas para comprar petróleo foram frequentemente observadas nos EUA. Em 1979, o presidente James Carter escreveu: “Tive um café da manhã deprimente com assessores econômicos. Eles não sabem o que fazer nem com a inflação nem com o petróleo”.
Entretanto, pouco mais de uma década depois, a União Soviética colapsaria e os EUA estenderiam globalmente sua influência como indiscutível líder político, militar e econômico mundial.
Covid-19 e equilíbrio de poder
O impacto do Covid-19 e os fortes efeitos negativos observados nos EUA, tanto em número de mortos como em sua atividade econômica, são apontados como fundamento para explicar a ascensão da China como líder hegemônico mundial e substituto dos EUA – algo questionado pela resposta de Donald Trump, seus compatriotas e demais nações. Há, afirma-se, um claro contraste em favor de como os asiáticos atuaram. Porém, por mais erráticos e questionáveis que sejam os atos de Trump, não parece estar na filosofia chinesa, como expressam as palavras de Enlai, apressar-se em dar uma resposta.
Em particular, em meio à crise da pandemia, que não se sabe quando terminará; o que pode ocorrer em alguns meses ou em cinco anos, segundo expressou recentemente Soumya Swaminathan, cientista-chefe da Organização Mundial de Saúde. Tampouco se sabe se e quando se descobrirão remédios ou vacinas. O verdadeiro golpe econômico também está por ser conhecido, dado que a pandemia está em curso, assim como as medidas dos governos, as quais podem atenuar ou agravar seu impacto – sobretudo as tomadas pelos EUA. O fato de Trump ter tomado decisões que alguns consideram condenáveis, não significa que elas não possam alterar o rumo do mundo. É precisamente o comportamento dos EUA o que mais pode influenciar como será o mundo em que a China, supostamente, está se posicionando como líder. Em outras palavras, se trata de um efeito que a China não pode determinar.
Isso não é uma mera questão especulativa. Segundo o Banco Asiático de Desenvolvimento, o custo da pandemia poderia alcançar 8,8 trilhões de dólares, quase 10% do PIB mundial, dependendo da rapidez ou da lentidão com que se controle o vírus. Ao posicionar-se como gestor de uma ordem global sob sua liderança, a China precisaria lidar com isso. Foi o que os EUA fizeram no hemisfério ocidental depois, por exemplo, da Segunda Guerra Mundial. O que embora tenha trazido benefícios significativos, também implicou em assumir os gastos de reconstrução da Europa e do Japão e em atuar com motor da economia capitalista mundial comercial e financeiramente – além de ter que assumir a responsabilidade pela defesa militar em instituições como a OTAN. O Plano Marshall, por exemplo, estima-se que em valores atuais, superaria 128 bilhões de dólares.
A China e a ordem mundial
Fu Ying, diplomata chinesa importante e próxima a Xi Jinping, afirmou, em 2015, que a China não tinha “nem a intenção nem a capacidade de substituir a atual ordem internacional”. Desde que, sob Deng Xiaoping nos anos 1970, a China começou as reformas que a catapultaram a posição mundial atual, esse país não deixou de expressar sua intenção de ‘ascensão pacífica’. Se a chegada de Xi implicou uma postura mais afirmativa na concretização, para 2050, do ‘sonho chinês’ de recuperar o destaque e integridade territorial do século XIX, quando foi desmembrada pelas potências ocidentais, isso não modificou a postura de diálogo e cooperativa do país. Desde que irrompeu a pandemia, a China reforçou este comportamento e em nenhum instante expressou a intenção de aproveitar o momento para aumentar sua projeção global de forma conflituosa.
Esse comportamento da China é totalmente coerente com sua pauta estratégica desde os anos 1970, reformar-se à “maneira chinesa”, para se fortalecer dentro da ordem mundial. Essa é a visão da recomposição das relações sino-estadunidenses por trás do acordo entre Nixon e Mao, em 1971. Depois de se tornar a primeira ou segunda economia mundial (depende dos critérios de mensuração), entre outros importantes destaques econômicos, como se fortalecer militarmente e estender sua presença diplomática e cultural; a China vem afirmando sua posição reformista da ordem mundial. Posição que mantém em lugares privilegiados, por exemplo, as antigas potências coloniais como Grã-Bretanha e França, muito acima da sua verdadeira representação global. Como afirma Fareed Zakaria, no último número da Foreign Affairs, é normal que “à medida que os países se fortalecem economicamente, busquem maior controle e influência sobre seu entorno”.
Uma ordem mundial se refere a valores e normas que definem as características da governança mundial, criando uma estrutura sobre o qual a sociedade internacional pode se relacionar. São as grandes potências que, geralmente, determinam as regras da ordem mundial, as quais refletem seus próprios interesses. Os demais Estados podem aceitar tal ordem ou opor-se, total ou parcialmente, a ela; construindo princípios alternativos que reflitam suas preferências.
O paradoxo, ou não, da situação atual é que não é a China que questiona essa ordem. Ao contrário, a China chama o seu próprio criador, os EUA, a respeitá-la. Como destaca Zakaria, a China é o segundo país que mais contribui com as Nações Unidas e com o seu programa de manutenção da paz, tendo destacado 2.500 tropas, mais que todos os demais membros permanentes do Conselho de Segurança juntos. Entre 2000 e 2018, apoiou 182 das 190 resoluções do Conselho de Segurança que impõem sanções a nações que violaram regras ou normas internacionais”, respeitando os princípios que ancoram a ordem das nações: “respeito a soberania”, “integridade territorial” e “não intervenção”.
O novo consenso nos EUA
A sensação de crise da ordem internacional vem muito mais dos ataques de Trump a Organização do Mundial do Comércio, das suas declarações de que a OTAN está obsoleta, das suas investidas contra a Organização Mundial da Saúde, do decretado fim da globalização etc… do que do comportamento da China. Isso poderia levar a conclusão de que os abalos na ordem liberal mundial se devem às peculiaridades do presidente dos EUA. Porém, cada vez mais aparecem analistas geopolíticos que apontando que o confronto com a China é produto de um consenso político dos EUA.
Fareed Zakaria afirma que o surgimento de “um novo consenso, que abarca ambas as partes, os militares e os elementos chaves dos meios de comunicação, acredita que a China é, agora, uma ameaça vital para os EUA, tanto econômica como estratégica; que a política estadunidense com relação a China fracassou e que Washington necessita de uma nova estratégia, muito mais dura para contê-la”. No mesmo número recente da Foreign Affairs, em um artigo similar, mas de forma mais ofensiva com relação a China, Minxin Pei, do Claremont McKenna College, afirma que essa estratégia de confronto perdurará “independentemente de quem estará na Casa Branca, porque reduzir a dependência econômica dos EUA com relação a China e restringir o crescimento do poder chinês agora são objetivos bipartidários”.
Esse é o ponto crucial do conflito, pois se a China afirma que não pretende avançar, também deixa claro que não pretende retroceder. Esse medir forças não indica um desfecho próximo. Talvez Christopher Hill tenha sido mordido pela filosofia chinesa nos EUA, pois afirma, em um outro artigo do Foreign Affairs, que “um consenso bipartidário emergente converte Pequim no grande competidor pole poder no século XXI”. Em outras palavras, além da forma bombástica das declarações de Trump, também o consenso no EUA considera que a rivalidade com a China será uma disputa que se desenvolverá ao longo do presente século. De fato, em agosto passado, o general Mark A. Milley afirmou que a China será o principal rival dos EUA nos próximos 50 ou 100 anos. O oficial ao assumir, como candidato de Trump, a chefia do Estado Maior Conjunto dos EUA (o maior cargo das Forças Armadas, de principal assessor militar do Presidente) disse: “Algum historiador, em 2119, vai olhar para este século e escrever um livro cujo tema central será a relação entre os EUA e a China”.
Qual será o desfecho? “É muito cedo para saber”, a menos que demore muito.
Tradução: Bruno Roberto Dammski
Foto: Official White House Photo/ Shealah Craighead
Andrés Haines Ferrari, economista argentino, Professor Adjunto do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS. Doutor em Economia com ênfase em Economia do Desenvolvimento pela UFRGS
Matheus Ibelli Bianco é graduado em Relações Internacionais pela UFRGS e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-UFRGS)