Participantes de um jogo assimétrico, diante do processo de escolha de seus dirigentes, as universidades e instituições públicas federais de ensino superior no Brasil compõem atualmente um cenário de instabilidade e inconstância política e administrativa sob ameaça de redução da autonomia das universidades e da liberdade acadêmica.
Até a década de 1980, reitores eram escolhidos a partir de uma lista sêxtupla com os nomes indicados pelos conselhos universitários, pelos generais chefes do executivo e serviços de inteligência. Ao longo daquela década, por meio de inúmeras mobilizações, as universidades passaram a organizar consultas à comunidade acadêmica, a fim de escolher o reitor e a própria lista sêxtupla. Em se tratando de um procedimento de escolha, a partir de uma “votação” realizada pelos três segmentos da comunidade, docentes, discentes e servidores técnico-administrativos, evidenciou-se a contradição no processo, pois o “eleito” pelo voto nem sempre tem sido o escolhido pela presidência. Nada garante, portanto, a indicação do primeiro nome da lista dos reitoráveis, que, efetivamente deveria ser escolhido pela comunidade. Em 1988, por exemplo, quando ainda se pautava por uma lista sêxtupla, o nome mais votado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul não foi aceito pelo então presidente José Sarney, tendo a escolha recaído sobre o quinto colocado da lista. O caso, à época, já se constituiu em exceção. A Reitoria foi ocupada pelos estudantes, houve greve e protestos durante semanas e nada adiantou.
Alterando o processo de escolha dos dirigentes de instituições federais de ensino superior, o artigo primeiro do decreto 1.916 de 23 de maio de 1996, vigente desde o governo Fernando Henrique Cardoso, destaca: “O Reitor e o Vice-Reitor de universidade mantida pela União, qualquer que seja a sua forma de constituição, serão nomeados pelo Presidente da República, escolhidos dentre os indicados em listas tríplices elaboradas pelo colegiado máximo da instituição, ou por outro colegiado que o englobe, instituído especificamente para este fim” (nos termos da Lei n° 9.192). Assim, o colegiado máximo da instituição pode regulamentar o processo de consulta à comunidade universitária, “precedendo a elaboração das listas tríplices, compostas com os três primeiros nomes mais votados em escrutínio único”, prevalecendo a votação uninominal, pela qual cada eleitor do colegiado vota em apenas um nome para reitor e outro para vice-reitor, de modo a preservar a não coincidência dos mandatos.
Composta a lista tríplice e encaminhada à Presidência, vinha sendo costume a confirmação do primeiro nome da lista, para um mandato de quatro anos, com consultas mais democráticas, escolhas respeitadas pelos conselhos universitários, sistema de voto paritário e sem a imposição de pesos diferentes para os integrantes das comunidades acadêmicas. Assim sendo, o que motiva a insatisfação e as contraposições nesse processo, de modo especial nos últimos anos? Por que as escolhas têm impactado tanto a sociedade, especialmente a comunidade universitária?
As questões referem-se, por um lado, à permanência da lista tríplice, ordenação contraditória a um processo democrático de escolha e, por outro, à conjuntura atual, quando acontecimentos surpreendentes têm interferido na dinâmica das relações de poder. A opção por nomes não posicionados em primeiro lugar nas listas tríplices está sendo constante e polêmica, estabelecendo uma ruptura ao processo que, desde o final dos anos 1990, vinha respeitando escolhas dentro das universidades e institutos federais. O desacato tem sido frequente, pois o presidente, em postura contrária às decisões democráticas, tem motivado a controvérsia, especialmente pela agressão ao princípio de que o vencedor da consulta deveria ser o nomeado. Embora mantido o sistema de votações pela comunidade acadêmica, desde o início de sua gestão o presidente tem utilizado a prerrogativa legal de rejeitar o primeiro nome da lista tríplice, rompendo a tradição e contrariando os resultados das consultas. Essa ruptura explicita uma forma de intervenção para preencher os cargos com apoiadores políticos ou professores indicados por aliados. Os levantamentos da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) têm sido fontes para o reconhecimento do desequilíbrio de forças nessas relações de poder, perdendo a autonomia universitária. A maioria das nomeações pelo presidente não recai no primeiro colocado da lista tríplice, sendo frequente a escolha dos menos votados. Embora a situação pudesse ter sido agravada por meio da Medida Provisória 914, de 2019, reforçando o direito do presidente não escolher o primeiro nome da lista tríplice e interferindo no encaminhamento, autorizando o ministro da Educação a nomear reitores temporários sem consulta à comunidade acadêmica durante a pandemia de coronavírus, a medida perdeu a eficácia por não ter sido aprovada pelo Congresso no prazo de 120 dias. Um breve panorama das indicações dos reitores pelo presidente, desde o início do governo até o momento, destaca o processo intervencionista, em desrespeito às escolhas institucionais.
Em junho de 2019, o Ministério da Educação (MEC) considerou inválida a lista tríplice encaminhada pela Universidade Federal Grande Dourados (UFGD), Mato Grosso do Sul, nomeando Mirlene Damázio como reitora pró tempore. Apesar da chapa vencedora ainda brigar na Justiça pela nomeação, Damázio continua cumprindo o cargo de reitora.
No mesmo mês, Luiz Fernando Resende dos Santos Anjo foi nomeado reitor da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), após ter ficado em segundo lugar na consulta interna.
Em junho de 2019, Ricardo Silva Cardoso tomou posse mesmo não tendo participado da consulta à comunidade acadêmica. Contudo, teve o nome indicado em primeiro lugar da lista tríplice após eleição no colégio eleitoral da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), com mandato para o quadriênio 2019-2023.
Em agosto de 2019 (DOU, 01/08/2019), o professor Fabio Josué Santos, terceira e última opção da lista tríplice enviada ao MEC, foi nomeado pelo presidente como novo reitor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), sucedendo o reitor Silvio Luiz Soglia. A professora Georgina Gonçalves, vice do ex-reitor, foi a mais votada durante a consulta à comunidade estudantil e na eleição do conselho universitário.
Em agosto de 2019, Janir Alves Soares, o quarto colocado na consulta interna, foi empossado reitor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Minas Gerais, para o mandato de 2019 a 2023 (DOU, 09/08/2019).
Para o Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro (Cefet-RJ), foi nomeado como diretor-geral pró tempore Maurício Aires Vieira (DOU 16/08/2019), tendo sido desconsiderada a consulta interna realizada em abril. Aires era assessor do então ministro Weintraub, da Educação, e não integrava o quadro funcional da instituição tendo sido substituído por Marcelo de Sousa Nogueira, o vice-diretor da instituição à época.
Em agosto de 2019, Bolsonaro nomeou como reitor da Universidade Federal do Ceará (UFC) o professor José Cândido Lustosa Bittencourt de Albuquerque (DOU, 19/08/2019), o terceiro colocado e menos votado no processo de consulta à comunidade acadêmica e segundo colocado na lista tríplice realizada pelo Conselho Universitário (Consuni), com os nomes dos professores indicados aos cargos de reitor e vice-reitor para o quadriênio 2020-2024. Enquanto o primeiro colocado obteve 7.772 votos, o nomeado obteve apenas 610, ou 4,61% do total de votantes. O Sindicato dos Docentes das Universidades Federais do Estado do Ceará (ADUFC-Sindicato) acusou a política intervencionista do governo Bolsonaro na UFC, em total desrespeito à autonomia universitária e à pluralidade acadêmica necessária ao avanço científico. O Sindicato destaca a tentativa de destruir as instituições democráticas do país.
Em cinco de setembro de 2019, Marcelo Recktenvald, embora em terceiro lugar na consulta eleitoral à comunidade acadêmica tomou posse como reitor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Recktenvald era apoiador declarado do presidente Bolsonaro.
Ao nomear, em 23 de março de 2020, como reitor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), o professor Paulo Vargas, Bolsonaro também provocou indignação da comunidade universitária, por preterir a primeira colocada na lista tríplice, Ethel Leonor Noia Maciel, a mais votada na consulta informal de novembro (67,5% dos votos) e confirmada pelo Conselho. Também surpreendeu o fato de Vargas ter composto a lista tríplice, em acordo com Ethel Maciel. Protestos nas redes sociais criticaram a atitude do presidente, considerada uma forma de revanche pela derrota da extrema-direita na Ufes para uma mulher. Salientou-se, ainda, o fato de Paulo Vargas não ser aliado do governo e ser “uma pessoa decente”.
Em março de 2020, o pastor evangélico Roque do Nascimento Albuquerque foi nomeado pelo MEC como novo pró tempore da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). A Universidade está em seu sétimo reitor pro tempore, pois o estatuto da instituição que prevê eleição para reitor ainda não foi aprovado pelo MEC.
Em abril de 2020, Bolsonaro indicou para assumir o cargo de reitor pró tempore da Universidade do Vale do São Francisco (Univasf), em Pernambuco, Paulo César Fagundes Neves, embora este não tenha participado da consulta interna e não constasse na lista tríplice. Contudo, o MEC apontou como problema o fato de serem os três nomes indicados componentes da chapa vencedora no pleito.
Também em abril, foi nomeado Josué de Oliveira Moreira como reitor pró tempore do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), mesmo sem ter participado da consulta interna, na qual foi vencedor José Arnóbio de Araújo Filho, em dezembro de 2019, com 48,25% dos votos válidos. Em maio, foi determinado o afastamento imediato do reitor pró tempore com base na ilegalidade da nomeação, já que a Medida Provisória nº 914, de 24 de dezembro de 2019, em que foi baseada, determinava que seus efeitos não seriam válidos para processos de consulta cujos editais fossem publicados antes da vigência da MP, como foi o caso. A justiça determinou a nomeação de José Arnóbio de Araújo Filho, que chegou a ser publicada no Diário Oficial, mas foi não foi efetivada, perseverando Josué Moreira no cargo.
Ainda em abril, André Dala Possa, segundo colocado na eleição interna, foi nomeado reitor pró tempore do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC). Como não há formação de lista tríplice para o cargo de reitor dos institutos federais, tem sido nomeado pela presidência o primeiro colocado. Contudo, o MEC designou um reitor pró tempore em razão de o vencedor da consulta interna, Maurício Gariba Júnior, estar respondendo a processo administrativo disciplinar em caráter sigiloso na Corregedoria-Geral da União (CGU). Bolsonaro havia nomeado Lucas Dominguini, que não disputara o pleito, mas este comunicou ao ministério que não iria assumir o cargo.
A partir de 30 de agosto de 2020, Ludimilla Carvalho Serafim de Oliveira, foi nomeada nova reitora da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), tendo como vice o professor Roberto Vieira Pordeus. A chapa ficou em terceiro lugar na Lista Tríplice que foi encaminhada ao MEC.
Nomeado em 15 de setembro de 2020, como reitor Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), em Marabá, o professor Francisco Ribeiro da Costa, terceiro colocado da lista tríplice enviada em junho ao Governo Federal, teve apenas 6,9% dos votos. O atual reitor da Unifesspa, professor Maurílio de Abreu Monteiro, cujo mandato referente ao quadriênio 2016-2020 termina no mês de outubro deste ano, foi reeleito com 84,4% dos votos válidos. Em segundo lugar, ficou o professor Fábio dos Reis Ribeiro de Araújo, com 8,7% dos votos.
Por decisão publicada no DOU de 16 de setembro de 2020, o professor Carlos André Bulhões Mendes foi nomeado pelo presidente para o cargo de reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tendo recebido apenas três votos da comunidade acadêmica, contra 29 votos do segundo e 45 do primeiro colocado. Apesar de Bulhões integrar a lista de candidatos a reitor enviada ao MEC, a nomeação contraria a consulta pública que elegeu os atuais reitor e vice-reitora, Rui Oppermann e Jane Tutikian, garantindo-lhes o primeiro lugar na lista tríplice.
Observados em sua conjuntura, os acontecimentos inesperados e em ritmo célere, tanto relacionados às estruturas normativas do processo de escolha dos reitores, quanto às relações de força que os dinamizam, comprovam empiricamente as tendências intervencionistas ameaçadoras da liberdade acadêmica de pesquisar e ensinar, em um ambiente com autonomia didática e científica nas universidades públicas. Mais evidente se atentarmos para os últimos acontecimentos, esse jogo desigual neutraliza o fato de ter havido uma evolução histórica na escolha de reitores, desde um início abertamente antidemocrático, vigente durante o período da ditadura civil-militar.
Os episódios colocam em risco a liberdade acadêmica, pois além da retórica agressiva, o que se pressente é um plano de intervenção para efetivar o domínio dos espaços universitários, iniciado já na campanha eleitoral do atual presidente. Vale alertar, como contraponto e um certo conforto, a fraca representação desse movimento contra as universidades, a ciência e os quadros intelectuais representativos a elas relacionados. Essa representatividade quantitativamente inexpressiva, como se pode observar nos resultados percentuais das consultas eleitorais, é mais acentuada em seus aspectos qualitativos, quando são analisados os quadros intelectuais e os discursos desse grupo, chegado a posições fascistas extremadas.
A mobilização, hoje, é mais importante do que as votações internas, pois o jogo político revela a desigualdade de forças. Além disso, a tradição democrática de respeito às escolhas da comunidade universitária, que foi sendo cumprida em praticamente todo o país, com exceções raras, pelos diferentes governos pós período ditatorial é resultado de anos de luta, desde a repressão do regime militar, passando por mais de três décadas de respeito às escolhas democráticas das comunidades.
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Foto: Acervo Universidade Federal do Paraná
Leilah Santiago Bufrem é Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA/USP e professora visitante no Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação da UFPB.