O contrato de vassalagem e a cegueira estratégica dos militares, por José Luis Fiori

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Na verdade, é a insegurança generalizada e crescente em que se debate, agoniada a humanidade de hoje, o ópio venenoso que cria e alimenta estas hórridas visões, capazes, entretanto, de se tornarem uma realidade monstruosa.

Golbery do Couto e Silva, Conjuntura, Política Nacional, o Poder Executivo & Geopolítica do Brasil. Rio de Janeiro:José Olympio Editora, 2ª ed. 1981, p. 9.

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Este artigo complementa nosso último texto sobre “A lenta construção de um ‘Estado vassalo’ e o papel dos militares brasileiros”, publicado em 30 de setembro de 2020.

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Nunca houve consenso ideológico dentro das Forças Armadas brasileiras, e sempre existiram militares que foram democratas, nacionalistas e comunistas. O mais famoso talvez tenha sido o capitão Luiz Carlos Prestes, que participou do “movimento tenentista” dos anos 20 e da “Revolta dos 18 do Forte” de Copacabana, e depois liderou – ao lado do Major Miguel Costa – a famosa Coluna que marchou pelo Brasil, durante 2 anos e 5 meses, antes de ser derrotada, defendendo a justiça social, a universalização do ensino gratuito e a adoção do voto secreto nas eleições brasileiras. E mesmo depois da Segunda Guerra Mundial, houve muitos que se opuseram aos golpes de Estado de 1954, 1955, 1961 e 1964, e que tiveram participação importante na luta pelo monopólio estatal do petróleo e pela criação da Petrobras. Mais do que isto, sempre houve militares que defenderam a centralidade do Estado no desenvolvimento econômico e na luta contra a desigualdade social do Brasil.

Mesmo assim, não há dúvida de que a grande maioria dos oficiais brasileiros, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, foi sempre conservadora e de direita, golpista e partidária da submissão militar do Brasil aos Estados Unidos. E foi essa tendência majoritária e conservadora que sempre venceu e se impôs, dentro e fora das Forças Armadas, em todos os momentos cruciais da história política brasileira dos últimos 80 anos. E agora de novo, foram eles que venceram com o golpe de Estado de 2016 e a instalação do atual governo; e foram eles que reestabeleceram a vassalagem militar do Brasil com relação às Forças Armadas e à política externa dos Estados Unidos. Por isso cabe perguntar-se: em que consiste exatamente a “vassalagem moderna” entre Estados nacionais soberanos? Qual é a aposta ou expectativa dos militares brasileiros, depositada neste tipo de relacionamento com os Estados Unidos, e mais recentemente, também com relação a Israel? E sobretudo, quais as consequências de curto e longo prazo, desta relação de vassalagem, para o Estado e a sociedade brasileira?

Do ponto de vista estritamente contratual, os acordos modernos de vassalagem militar garantem ao “Estado-vassalo” a venda de armas e munições mais sofisticadas, e de algumas “tecnologias de ponta” controladas pelo “estado-suserano”, em troca de recursos e minerais estratégicos do país vassalo, e da cessão de suas tropas para as guerras da potência dominante. E em muitos casos, esse contrato também envolve – como na Colômbia – a cessão de território para instalação de soldados e bases militares norte-americanas. No período da Guerra Fria, essas armas foram entregues ao Exército brasileiro para combater os “países comunistas”. Mas hoje não está claro quem seja o inimigo brasileiro, e o que pretendem fazer suas Forças Armadas com este armamento mais sofisticado e destrutivo que receberão dos Estados Unidos. Contra quem pretendem utilizá-las? Se for contra as Grandes Potências, serão inúteis porque elas dispõem do poder atômico que o Brasil não tem, mas se for contra seus vizinhos sul-americanos, isto acabará provocando uma corrida armamentista no continente, uma vez que não se pode supor que os outros não façam o mesmo que o Brasil. E quem pode sair ganhando com a transformação da América do Sul num grande comprador de armas? E qual o custo dessa loucura para um continente que já é pobre e que sairá ainda mais pobre da atual pandemia do coronavírus? Neste sentido, cabe perguntar aos militares brasileiros se eles já fizeram este cálculo, e se eles têm clara a herança que deixarão para seus filhos e netos, e sobretudo para a grande maioria dos brasileiros que não são militares e que não têm nada a ver com essas armas que lhes serão financiadas e favorecidas em troca de sua vassalagem?

Mas além disto, a expectativa de todo “Estado vassalo” é obter também vantagens econômicas de sua vassalagem, sob a forma do livre acesso aos mercados e investimentos da “potência-suserana”. Foi assim que de fato, durante a Guerra Fria, em particular entre 1950 e 1980, a vassalagem brasileira foi compensada pelo apoio norte-americano ao projeto desenvolvimentista dos militares brasileiros daquela época. E neste sentido se pode dizer, inclusive, que o chamado “milagre econômico” da ditadura militar” foi uma espécie de réplica latina do “desenvolvimento a convite” da Coreia, de Taiwan, do Japão ou mesmo da Alemanha, e de quase toda a Europa que foi favorecida pelo Plano Marshall. Essa situação, no entanto, não se repetiu em lugar nenhum do mundo depois da década de 80, quando os Estados Unidos abandonaram sua estratégia econômica internacional do pós-Segunda Guerra inaugurada pelos acordos de Bretton Woods, de 1944, e adotaram sua nova estratégia de desregulação e liberalização selvagem dos seus mercados periféricos, que foi experimentada depois do golpe militar chileno de 1973, mas que só chegou ao Brasil na década de 90. E agora, mais recentemente, a expectativa de que os Estados Unidos possam ajudar o desenvolvimento econômico de seus “vassalos”, já na terceira década do século XXI, não tem pé nem cabeça. Neste momento, a economia americana está sendo atropelada pela “crise epidêmica”, mas mesmo antes disto, o governo de Donald Trump já havia adotado uma política econômica “de tipo nacionalista”, com a proteção de seu mercado interno e de sua indústria, e com a defesa intransigente de seus produtores de grãos e alimentos, que concorrem diretamente com o agro-business brasileiro.

Assim mesmo, é impossível imaginar um governo que seja mais subserviente e lambe-botas de Donald Trump que o atual governo brasileiro. No entanto, nos últimos dois anos, o Brasil não logrou nenhum acordo comercial significativo com os Estados Unidos e não obteve nenhuma vantagem ou favorecimento especial do governo norte-americano. Pelo contrário, o Brasil já foi objeto de várias retaliações e humilhações econômicas do governo Trump, sem que tenha dito uma só palavra de protesto ou defesa de seus próprios interesses nacionais. E para além dos Estados Unidos, o Parlamento Europeu rejeitou recentemente o acordo comercial que havia começado a tramitar, entre a União Europeia e o Mercosul, como forma de retaliação explícita contra o governo do Sr. Bolsonaro. E para culminar, nos últimos 12 meses, a fuga dos investidores privados estrangeiros do Brasil mais que dobrou, não havendo nenhuma expectativa de reversão dessa tendência que, pelo contrário, deve piorar ainda mais. Por tanto, até agora, a nova vassalagem militar do Brasil não trouxe nenhuma vantagem econômica, nem de mercados abertos nem de investimentos

Os bufões do atual governo não entendem nada de economia, nem sabem o que seja o capitalismo. Mas o mais grave é que seus militares não também não consigam entender que seus novos aliados econômicos – diferentemente do período da Guerra Fria – são financistas; e que, no capitalismo contemporâneo, os financistas não necessitam do crescimento econômico do PIB, para aumentar seus lucros e acumular sua riqueza privada. Basta dizer que nos últimos cinco meses em que a pandemia do coronavírus destroçou a economia mundial, a riqueza financeira do mundo cresceu 25%, para mais de US$10 trilhões, e o patrimônio dos 42 maiores bilionários brasileiros, quase todos financistas, cresceu US$34 bilhões. E enquanto os militares do governo não entenderem este aparente paradoxo capitalista, nem conseguirem perceber que sua vassalagem contemporânea não lhes trará vantagens econômicas, eles seguirão se debatendo para controlar este governo que ajudaram a criar, que consegue ter, ao mesmo tempo, um chanceler que ataca a China e a globalização econômica, enquanto seu ministro da economia aposta todas as suas fichas exatamente na China e na globalização.

Por último, a “relação de vassalagem” moderna envolve também compromissos e consequências estratégicas que não aparecem explicitados nos acordos militares. Por exemplo, depois da Segunda Guerra Mundial, as Forças Armadas brasileiras não precisaram mais escolher seu “inimigo externo”, que passou a ser definido diretamente pelos Estados Unidos. E durante toda a Guerra Fria, esse “inimigo” foi a União Soviética, que não tinha o menor interesse nem a menor possibilidade de atacar o Brasil, um país que estava inteiramente fora do “jogo” das Grandes Potências. Além disso, esta estranha condição de “inimigo do inimigo dos outros” criou uma distorção permanente no comportamento do Exército brasileiro, que se transformou numa polícia especializada no combate aos “traidores internos”, ou seja, para começar, todos aqueles que divergissem da posição norte-americana e da vassalagem militar brasileira. Foi assim que nasceu a figura do “inimigo interno”, criada pela Doutrina de Segurança Nacional formulada na década de 50 pela Escola Superior de Guerra, imediatamente depois da assinatura do Acordo Militar Brasil-Estados Unidos, de 1952. E foi graças a essa verdadeira “cambalhota funcional” que as Forças Armadas passaram a espionar seu próprio povo, na busca constante e obsessiva do “ópio venenoso” e das “hórridas visões” que estariam ameaçando a paz interna da sociedade e do estado brasileiro, segundo as palavras do General Golbery do Couto e Silva, citadas na epígrafe deste texto. E foi assim que nasceu e se consolidou historicamente a relação direta entre a “vassalagem internacional” do Brasil e o “autoritarismo nacional” das suas Forças Armadas, que passaram a denunciar como “inimigos” do Estado todos aqueles que discordassem das suas próprias posições ideológicas, e da sua cegueira estratégica.

Esta distorção das Forças Armadas explica porque depois da Guerra Fria, e durante o período da unipolaridade americana, os militares brasileiros perderam sua bússola e ficaram sem inimigos claros durante quase vinte anos. E quando tentaram definir um “inimigo externo” por sua própria conta, escolheram a França1, o que é pouco menos que ridículo, uma vez que ela é hoje apenas uma potência intermediária declinante, que mal consegue exercer alguma influência no norte da África e que, ainda por cima, é adversária do governo venezuelano que os militares brasileiros tanto odeiam. E como consequência, para recriar o seu o “boneco de pancada” ou “inimigo interno”, tiveram que recorrer a uma invenção esdrúxula da ultradireita norte-americana: um tal de “marxismo cultural”, que ninguém sabe o que seja, mas que serviu para os militares brasileiros demonizarem todos os “movimentos identitários”’ e “politicamente corretos”, e em particular, a um ex-presidente da República, seu partido e seus militantes, apesar deles serem uma peça essencial de todo e qualquer jogo democrático.

Esta confusão se mantem até hoje, mas o quadro alterou-se radicalmente no momento em que o presidente Donald Trump elegeu o novo inimigo externo dos Estados Unidos, em 2019, ao declarar sua guerra comercial e tecnológica contra a China, e ao tentar polarizar o mundo em torno de seu contencioso com os chineses. O problema, entretanto, é que no momento em que Donald Trump mudou sua política externa, o Brasil já tinha se transformado numa economia primário-exportadora dependente dos mercados e investimentos chineses, e que está cada vez mais difícil de transformar em inimigo estratégico do Brasil, o país que é precisamente o seu principal parceiro econômico. Além disso, como os chineses são pragmáticos e não se propõem a converter ninguém, fica ainda mais difícil transformar os admiradores da China em “inimigos internos” do estado brasileiro, como aconteceu com os comunistas durante a Guerra Fria.

No meio dessa “barafunda” ideológica e política, e do caos econômico que se acentua a cada momento que passa, o homem comum se pergunta o que afinal tem a dizer e propor os militares brasileiros com relação aos milhões de brasileiros que hoje vegetam na miséria e na fome dos campos e das grandes cidades do país, e que reclamam e protestam porque têm fome, mas não são “inimigos” do Estado brasileiro, nem muito menos de suas Forças Armadas?

E aliás, quem deu a estes senhores o direito, e de onde vem sua arrogância de querer julgar e decidir quem são os bons e quem são os maus brasileiros?

1 “Elite militar brasileira vê França como inimiga nos próximos 20 anos”, Folha de São Paulo, 10/02/2020

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Foto: Encontro de militares dos EUA e do Brasil. Crédito: Divulgação/ Exército Brasileiro.

José Luis Fiori é professor titular do Programa de Pós-graduação em Economia Política Internacional (IE/UFRJ) e pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP). 

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