Não restam mais dúvidas de que o projeto de Bolsonaro pretende uma profunda reforma das instituições políticas, artísticas, científicas e acadêmicas no Brasil. Mais genericamente, ele pretende dar uma cambalhota no já precário padrão cultural brasileiro, sempre ambíguo em relação a várias dimensões civilizatórias (gênero, raça, orientação sexual, etc.). Além disso, logrou chegar ao lugar que lhe permite operar essa reforma apoiado em um outro projeto de radicalização – o aprofundamento da opção neoliberal na condução econômica iniciado no mundo na década de 1980 e no Brasil durante a década seguinte.
Se essa síntese está correta, a resistência ao projeto de Bolsonaro deve ser organizada em torno a dois vetores políticos principais: em primeiro lugar, a defesa da multidão de excluídos produzidos pela condução de sua política econômica; também, a defesa daquelas instituições que, entre nós, foram construídas ao longo do tempo. Algumas, há mais de 100 anos.
Nesse segundo vetor, que é o ponto que desejo tratar aqui, a eclosão da pandemia colocou algumas armadilhas frente aos que se opõem ao projeto de Bolsonaro. Por exemplo, no terreno das universidades e demais níveis de ensino-educação, é ardilosa a recusa radical em aderir às práticas educativas que incluam tecnologias remotas. Estas vieram para ficar e penso que será possível e desejável que seja construído um caminho de articulação virtuosa entre as práticas presenciais e virtuais. A recusa radical dessa articulação e a entrega do domínio do ciberespaço ao projeto bolsonarista na educação será uma derrota importante aos que se opõem àquele projeto.
Outro exemplo de armadilha em desenvolvimento está no campo do enfrentamento sanitário da pandemia, mais especificamente no que se refere ao engajamento do governo federal na disputa geopolítica estabelecida em torno do desenvolvimento, produção e utilização de vacinas contra o SARS-CoV-2. Este foi até há pouco um contencioso que envolveu a potência hegemônica e seus dois principais competidores globais. Recentemente, passou a fazer parte da disputa política entre nós.
As iniciativas brasileiras no terreno da prevenção de doenças mediante vacinas são muito antigas e estão completando 120 anos. Tiveram início com a criação do Instituto Oswaldo Cruz (1900) e do Instituto Butantã (1901). A rigor, elas acompanharam a própria história do desenvolvimento de vacinas no mundo, que se deram essencialmente no século XX. Além de produzir vacinas e soros, as duas instituições capacitaram pessoas e mantiveram contato com outros países produtores, o que lhes deu a possibilidade de estabelecer intercâmbio com os mesmos e a praticarem muito precocemente estratégias de off-set, isto é, incluir mecanismos de transferência de tecnologia em compras de produtos no exterior, além de desenvolver tecnologias próprias.
Mas as iniciativas brasileiras foram adiante. Após a erradicação da varíola no Brasil (1971) e, certamente, inspirado por ela, em 1973 foi criado o Programa Nacional de Imunizações (PNI) no Ministério da Saúde. Em 1986 foi instituído o Programa Nacional de Autossuficiência em Imunobiológicos, em 1990 foi criado o SUS e em 2000 a ANVISA. Ressalte-se aqui a importância da demanda pública por vacinas (SUS) no desenvolvimento das duas instituições produtoras, atualmente responsáveis pela maior parte do mercado brasileiro de vacinas.
Fica clara a importância de defendermos e fortalecermos esse conjunto de instituições e políticas, atualmente sob ataque do governo federal. O recente episódio envolvendo a incorporação de vacinas contra o SARS-CoV-2 não deixa dúvidas a esse respeito. Mas, há armadilhas postas à frente das estratégias de resistência. Uma delas é a convocação do Supremo Tribunal Federal (STF) na tentativa de bloquear os ataques. Anuncia-se uma petição para que ele garanta autonomia aos governadores no enfrentamento à COVID-19 autorizando a realização de campanhas estaduais com vacinas registradas na ANVISA independentemente da orientação federal, além de poderem determinar a obrigatoriedade de tomar uma vacina no âmbito de sua incumbência. Qual o sentido de envolver o STF numa questão que não está em sua missão precípua? E qual o resultado caso o STF encampe a solicitação?
Quanto ao sentido da petição, estaremos reforçando o projeto bolsonarista de reforma das instituições, no caso uma reforma objetiva da missão do STF, deslocado da defesa da Constituição para uma posição de corregedor das ações do Poder Executivo sem vínculos diretos com os dispositivos constitucionais. Na batalha contra Bolsonaro, por vezes o tribunal pode dar soluções estranhas à sua missão precípua que nos agradem. Mas é preciso refletir se será bom para o país a cristalização de um “tenentismo de toga” na feliz definição de Luiz Werneck Vianna. Os tenentes acabaram com a República Velha, mas também nos deram a ditadura do Estado Novo e o golpe de 1964. O STF não se constitui pelo voto dos cidadãos e os ministros são inamovíveis e vitalícios, como convém. O próximo a tomar posse ficará lá até 2047 e Bolsonaro poderá indicar ainda mais dois até o final de 2022.
Quanto ao resultado dessa petição, caso chancelada pelo STF, ela poderá quebrar a perna do PNI. Historicamente, todas as campanhas nacionais de vacinação são verticalizadas, tendo o PNI no topo da coordenação. Campanhas estaduais quando o alvo é nacional ocasionarão uma imensa confusão e desperdício. Se houver a autorização estadual para a definição de obrigatoriedade ou não de tomar a vacina, a confusão se completará.
A definição mais sintética dessa pandemia talvez seja “Surpresa e Complexidade”. Com ela, mais uma vez temos que reaprender que nem sempre o caminho mais curto é o melhor.
Foto: Luiz Fux, presidente do STF. Crédito: Rosinei Coutinho / SCO/ STF
Reinaldo Guimarães é Professor do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da UFRJ. Vice-presidente da Abrasco