Isso que é a América… Trump ou Biden? Por Andrés Ferrari Haines e Matheus Ibelli Bianco

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Isso é a América: uma diversidade brilhante…
Que se estende como estrelas, como milhares de pontos luminosos,
Em um céu amplo e pacífico”
(George W. Bush)

Se a eleição de Donald Trump para presidência dos EUA representa uma ruptura ou continuidade a sociedade ainda não sabe. Segundo o professor da Universidade de Yale Greg Grandin em seu livro que saiu o ano passado, The end of mith: “O Trumpismo representa é um movimento totalmente antiestadunidense que capturou as instituições do governo ou é manifestação de um jeito de ser estadunidense profundamente arraigado?”

Para jornais como Washington Post, New York Times e The Nation, o Trump é mais do que uma ameaça a democracia e as instituições: os EUA não suportariam mais quatro anos de Trump, foi o título de um dos editoriais do Washington Post. “A única opção nessa eleição é Joe Biden”, escreveu Thomas Friedman. “Nossa democracia está em grande perigo: mais do que esteve durante a Guerra Civil, mais do que depois de Pearl Harbor, mais do que durante a crise dos mísseis cubanos e mais do que durante Watergate”.

Porém, se pergunta Grandin, “Trump é o ‘lado obscuro’ dos EUA? Ou é a história dos EUA saindo a luz?”

Luz que brilha

A visão que os EUA têm de si mesmo surge com a chegada à América do Norte dos primeiros puritanos e está plasmada nas palavras ditas por John Winthrop, em 1630, que caracterizava a sociedade que estava por criar como uma “cidade na colina”. Tal cidade serviria como “uma luz para guiar todos os olhos do mundo” pelo bom caminho. Os puritanos seriam, assim, um recomeço da humanidade no “novo mundo”, a nova oportunidade para criar um mundo sem os pecados que estavam corrompendo o “velho mundo”.

Em seu discurso inaugural, em 1789, como primeiro presidente dos EUA, George Washington, afirmou que seu país, recém criado, era resultado do projeto defendido por Winthrop e que cada passo em direção a converter-se em “uma nação independente parece haver sido assinalado por algum tipo de providencia”, o que confirma a missão de “preservar o fogo sagrado da liberdade e seu destino de modelo republicano de governo” nas “mãos do povo norte-americano”. Em 1989, Ronald Reagan afirmaria em seu famoso discurso de despedida da Presidência:

Falei da cidade brilhante durante toda minha vida política, mas não sei se alguma vez falei do que vi quando o dizia. Em minha mente, era uma cidade alta e orgulhosa, construída sobre rochas mais fortes que os oceanos, varrida pelo vento, abençoada por Deus e cheia de pessoas de todos os tipos que viviam em paz; uma cidade com portos livres que murmuravam com o comércio e com a criatividade. Se eram necessárias muralhas na cidade, as muralhas tinham portas e as portas estavam abertas para qualquer um que tivesse vontade e coração para chegar até ali.

Assim eu a via e, ainda, a vejo. Como se encontra essa cidade?

Mais próspera, mais segura e mais feliz do que oito anos atrás. Porém, mais do que isso, depois de 200 anos, dois séculos, continua se mantendo firme e fiel em seu cume de granito. Seu brilho continua estável a despeito das tempestades.”

Reagan se despediu fazendo referência ao iminente colapso do mundo soviético, afirmando que, por meio do “novo patriotismo” que buscava resgatar o orgulho nacional, “se desejava mudar uma nação e, terminou-se, mudando o mundo”.

Nação escolhida

Com o fim da Guerra Fria, George W. H. Bush, em 1990, anunciou “uma nova ordem mundial” em que “não existe substituto para a liderança americana”. A estratégia de Segurança Nacional dos EUA de 1990 afirmava que “a responsabilidade de assegurar a estabilidade do equilíbrio internacional continua sendo nossa”. Madeleine Albright, ex-secretária de Estado de Bill Clinton em 1998, seguia essa visão ao afirmar que: “Os EUA têm a responsabilidade iniludível de construir um mundo pacífico e de pôr fim às abomináveis injustiças que ainda assolam a civilização” – e que “se temos que usar a força é porque somos os EUA, uma nação indispensável.”

Em 2000, a Secretária de Estado de George W. Bush, Condoleezza Rice, diria na Foreign Affairs – convicta de estar “do lado certo da história” – que “a busca dos EUA pelos seus interesses nacionais criará condições que promovam a liberdade, os mercados e a paz”, o que, assim como ocorreu depois da Segunda Guerra Mundial, “daria origem a um mundo mais próspero e democrático”.

Oito anos depois, em outro artigo na Foreign Affairs, Rice reafirmaria que o caminho a ser seguido pelos EUA continuava sendo o mesmo, esclarecendo que fazê-lo implica na responsabilidade de “construir nações democráticas” nos moldes estadunidenses – tarefa que, afirmou “estar absolutamente claro”, deveria continuar executando “nos próximos anos”. Barack Obama, em seu discurso de ao receber o Prêmio Nobel da Paz em 2009, se manifestou no mesmo sentido:

Independentemente dos erros cometidos, o fato é que, os EUA contribuíram para garantir a segurança mundial durante mais de seis décadas com o sangue dos seus cidadãos e a força das suas armas… Suportaram essa carga não porque buscassem impor sua vontade. Fizeram isso pelo seu próprio interesse, poque buscavam um futuro melhor para seus filhos e netos e acreditaram que suas vidas seriam melhores se os filhos e netos dos outros também pudessem viver em liberdade e prosperidade.”

Sem paz nem prosperidade

Desde a queda da URSS, os EUA aumentaram consideravelmente seus conflitos armados, segundo um informe que compila todos os tipos de intervenção militar externa entre 1978-2020 publicado em julho pelo escritório de pesquisa do Congresso dos EUA: dois terços do uso da força no exterior, de acordo com o informe, são posteriores a queda de URSS – mais de 60 entre 1991 e o ataque às Torres Gêmeas, setembro de 2001. Em outras palavras, numa época em que não existia “inimigo” aparente. Além dessas intervenções militares, os EUA também efetuaram numerosas operações secretas – das quais pelo menos 80 ocorreram após 1945, segundo a globalsecurity.org, houve 21 depois da Guerra Fria – das quais sete permanecem ativas.

Tudo isso contribui para que as despesas militares dos EUA continuem num nível altíssimo, podendo ser comparadas com as despesas do resto do mundo somadas. Suas bases militares se expandiram globalmente e hoje estima-se existirem entre 800 e 1000, mantendo entre 200 e 300 mil soldados. Ainda que os EUA tenham declarado formalmente guerra somente cinco vezes, desde sua independência, em 1776, estiveram envolvidos em pelo menos um conflito armado ao longo de 90% de sua história. Muitos desses conflitos duraram décadas e outros, como o do Afeganistão, iniciado em 2003, continuam – sendo atualmente conhecidos como guerras “eternas” ou “sem fim” nos EUA.

Internamente, também não houve nem paz nem prosperidade para a maioria. Segundo um informe recém publicado por Rand Corp. “Para o período posterior a Segunda Guerra Mundial, a renda e a economia têm taxas de crescimento similares. A partir de 1975, a renda de 90% das pessoas – com rendimentos menores – cresce mais lentamente que a economia em seu conjunto, enquanto a renda de 10% delas – que obtém rendimentos mais elevados – cresce mais rapidamente. Se a renda desses 90% tivesse crescido na mesma proporção que o PIB, sua renda teria aumentado, em conjunto, mais de 2,5 trilhões em 2018.

Em outras palavras, com a economia neoliberal, que começa nos anos 1970, reforçada pela globalização pós-Guerra Fria, os EUA fizeram que mais de 70% dos países do mundo tivessem uma melhor distribuição de renda do que de riqueza, apresentando uma concentração similar a Arábia Saudita, segundo o ranking da CIA.

O empobrecimento da maioria dos estadunidenses teve um correlato no aumento da violência social. Com quase 700 pessoas presa por 100 mil habitantes, segundo prisonpolicy, os EUA têm 20% da população encarcerada do mundo, algo que quadruplicou nas últimas quatro décadas. Em outros termos, de cada cinco pessoas presas no mundo, uma delas está nos EUA. Enquanto nos anos 1980 houve cinco chacinas (mass shooting), entre 2012 e 2019 houve 65. Os crimes raciais também se intensificaram, entre meados dos anos 1970 e 2008 havia quase a mesma quantidade que de 2019 até hoje. Enquanto o FBI afirma que os crimes violentos caíram 54% entre 1993 e 2008, 60% da sociedade sente que aumentaram. Segundo Pew Research, a explicação é que apenas algo entre 34% e 43% dos crimes são denunciados, apenas 46% dos crimes violentos e 18% dos crimes contra a propriedade são resolvidos.

Em setembro, numa entrevista a revista Time o senador de Connecticut Chris Murphy, autor do livro The Violence Inside US: A Brief History of an Ongoing American Tragedy (A Violência Dentro de Nós: Uma Breve História da Tragédia Estadunidense em Curso), afirmou: “somos uma espécie violenta, esse país esteve banhado pela violência, organizado pela violência desde a sua fundação”.

Ruptura ou continuidade

“Não buscamos impor nossa forma de vida a ninguém, deixamos que brilhe como exemplo”, disse Trump em seu discurso inaugural. “Brilharemos para que todos nos sigam”, mas “desse dia em diante, uma nova visão governará nossa terra. A partir desse momento, a América virá primeiro”.

Com essas palavras Trump expressa uma ruptura clara com todos seus antecessores desde o fim da Guerra Fria: acabou os EUA interessado em fazer um “governo mundial”. Nesse discurso Trump também afirmou que “durante muito tempo, um pequeno grupo na capital da nossa nação colheu as recompensas do governo, enquanto o povo assumiu os custos… Tudo isso mudou, começando aqui e agora… Dia 20 de janeiro de 2017 será recordado como o dia em que o povo voltou a ser governante dessa nação. Os homens e mulheres esquecidos do nosso país deixaram de sê-lo.”

Mas isso não aconteceu…

O New York Times, em um editorial explicando seu apoio a Biden, afirma que “o país está mais fraco, mais enojado, menos esperançoso e mais dividido que quatro anos atrás” e que “quando forem às urnas esse ano, os eleitores não escolherão apenas um líder. Decidirão o que serão os EUA”

Tradução: Bruno Roberto Dammski

Foto: Casa Branca/ Andrea Hanks

Andrés Ferrari Haines é professor Adjunto do Departamento de Economia e Relações Internacionais, Faculdade de Ciências Econômicas e do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-UFRGS). Integrante do Núcleo de Estudos dos BRICS (NEBRICS-UFRGA) e Poder Global e Geopolítica do Capitalismo (aferrari@ufrgs.br).

Matheus Ibelli Bianco é aluno de mestrado do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-UFRGS). Integrante do Núcleo de Estudos dos BRICS (NEBRICS-UFRGA) (matheusibellib@gmail.com).

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