1. Uma história autoritária
No início do século XIX, os países hispano-americanos receberam notícias sérias da Península Ibérica. A monarquia estava vacante e um governante estrangeiro, imposto por Napoleão, mantinha os últimos patriotas encurralados em Cádis. Esses defensores de Fernando VII, porém, também nutriam ideias de liberdade e buscavam uma constituição que limitasse os poderes do rei por meio de um parlamento forte.
As notícias da Espanha encorajaram vários movimentos de libertação em toda a América do Sul. Em Santiago, assim como em outras cidades, as pessoas com maior influência social e econômica se reuniram para expressar seu desejo de independência e seus ideais republicanos. Esta reunião, ocorrida em 18 de setembro de 1810, é considerada o primeiro germe da República do Chile. Foi necessário que se passassem ainda oito anos para que, em meio a lutas internas, Bernardo O’Higgins promulgasse o ato de independência que marca o nascimento oficial do Chile como país independente. Nesse momento da história, todas as novas repúblicas sul-americanas tinham origens militares turbulentas e, em seus primeiros anos, o militarismo era o único elo que unia povos e regiões culturalmente separadas. O Chile, porém, parece mostrar, ao longo de seu primeiro século de existência, um militarismo e um desejo de batalha ainda mais marcantes. Ao que se soma um nacionalismo que cresceria ao longo do século XX.
As duas primeiras décadas da nova República foram marcadas por convulsões e contínuas campanhas contra o atraso monárquico dos territórios vizinhos. Em 1830 o país se consolidou política e territorialmente, dando origem ao que se chamou de República Conservadora. A maior influência nesta etapa histórica corresponde a Diego Portales, uma das figuras mais importantes na formação das características definidoras do Chile no século XIX e até no século XX.
Portales tinha uma forte crença no nacionalismo chileno e na necessidade de seu país ter preeminência na costa do Pacífico. Ao mesmo tempo, considerava que a única forma de manter a unidade nacional era através de um presidencialismo forte, grande poder no parlamento e na administração da justiça. Foi uma espécie de transferência do poder real para roupas republicanas. As ideias de Portales ficaram expressas na Constituição de 1833. Esta Constituição é um fenômeno interessante na América Latina devido ao seu longo período de vigência, quase cem anos. O Estado plasmado pelas ideias de Portales e sua Constituição se afastam das convenções democráticas e se aproximam do autoritarismo que, a meu ver, será a característica definidora da vida política chilena. Durante esses anos, também foram descobertas importantes jazidas de prata, que criaram novos centros de riqueza e novos grupos com poder econômico.
Durante o resto do século XIX, o Chile embarcaria em algumas guerras com países vizinhos. Entre 1836 e 1839 esteve em guerra com a Confederação de Santa Cruz, composta pelo Peru e pela Bolívia. Entre 1864 e 1866 envolveu-se em uma guerra naval com a Espanha. Pouco depois, de 1879 a 1883, teve lugar a famosa guerra do Pacífico, que custaria à Bolívia o acesso ao mar. Oito anos após este último confronto bélico, o século XIX terminou com a guerra civil de 1891.
2. Autoritarismo e elitismo: uma união baseada no amor ao capital
Famílias aristocráticas chilenas, formadas por grandes proprietários rurais, ocuparam o poder nas primeiras décadas da vida republicana. No final do século XIX, a este seleto grupo se juntaram os proprietários de minas que também passaram a influenciar a vida política através de sua riqueza. Não é de estranhar, portanto, que durante as primeiras décadas do século XX, a democracia chilena, baseada na Constituição de 1833, aprofundou seus traços elitistas e que essa característica passou a marcar a vida social em geral. Esse é um fenômeno que também ocorreu em outros países da América Latina. Salvo raríssimas exceções, as elites econômicas são também as elites políticas.
A Constituição de 1833 passou por várias reformas nas últimas décadas do século XIX, sem que sua substância autoritária fosse essencialmente alterada. Em determinado momento, tentou-se estabelecer algo parecido com um regime parlamentar, o que não teve sucesso. Em 1924, se tentou uma reforma que não teve consequências práticas. Em 1925, o presidente Arturo Alessandri criou duas comissões encarregadas de redigir um novo texto constitucional e de buscar que este fosse ratificado pela população. O constitucionalista argentino Roberto Gargarella acredita que a forma de redação e promulgação plebiscitária desta Constituição foi essencialmente elitista. Segundo ele: “Em primeiro lugar, a forma como se deu a redação desse documento foi elitista, pois foi elaborado por comissões designadas pelo presidente Arturo Alessandri (ou seja, não eram comissões eleitas democraticamente). Em segundo lugar, o plebiscito subsequente (como costuma acontecer com as consultas populares) ocorreu apenas para incluir poucos nuances em relação as questões cruciais que eram apresentadas ao público”[1].
Esta Constituição teve o mérito de tornar efetiva a separação entre Igreja e Estado, estabelecendo a liberdade de culto. O que só pode ter seu significado apreciado levando em conta o caráter conservador e católico da sociedade chilena da época. Ela também introduz a noção de direitos sociais e ampliou as garantias constitucionais que, como se pode presumir de um texto do século XIX, eram incipientes na Constituição de 1833.
A vigência desta Constituição coincidiu com um período democrático menos elitista, mas que ocultou um autoritarismo atenuado. A sociedade chilena estava começando a mostrar maior apreço pelas ideias de esquerda. A Federação Chilena de Estudantes (FECH), fundada em 1907, foi o foco de todas as novas tendências. No Congresso Universitário de 1920 já se ouviam slogans a favor do socialismo e do anarquismo e contra a oligarquia. Em outras palavras, já havia plena consciência social da desigualdade que caracterizava a sociedade chilena.
À frente do país nesse período está, como já foi dito, Arturo Alessandri. Um caudilho liberal chileno de grande importância na década de 1920, que se tornou o chefe visível de um grupo social de classe média que buscava substituir no poder a aristocracia política tradicional. Acontece que as elites não se separaram do poder, permanecendo sempre nos bastidores.
A união do autoritarismo com o elitismo clássico da política chilena pode ser atribuída à consolidação gradual da riqueza capitalista, especialmente de origem mineira. O salitre gerou lucros consideráveis e acumulação de capital nas primeiras décadas do século XX. O mesmo pode ser dito das minas de cobre, que desde 1905, têm sido exploradas, atraindo grandes somas de capital estrangeiro, principalmente norte-americano. Na década de 1950, aumentou a consciência da importância da riqueza pesqueira do país. Ao mesmo tempo, a indústria do aço começou a florescer. Em 1966 foi aprovada a nacionalização da mineração de cobre. Levando, consequente, ao descontentamento das elites de latifundiários e mineiros.
É preciso lembrar que esse período histórico também teve lideranças de fato. Entre eles, uma Junta que proclamou, em 1932, uma breve República Socialista do Chile. Em 1936, a Frente Popular foi criada como uma coalizão dos partidos Socialista e Comunista. Salvador Allende participou em 1952 como candidato presidencial da Frente Popular. Tendo sido também candidato em 1958 e 1964.
No final dos anos 1960, sob o governo do democrata cristão Eduardo Frei, ocorreu o massacre de Puerto Montt, no qual onze ocupantes ilegais de terras privadas foram mortos pela polícia. Esses assassinatos tiveram um sério impacto na opinião pública, embora ninguém tenha sido responsabilizado pessoal ou politicamente. O que se tornou o gatilho imediato para a vitória de Salvador Allende em 1970.
3. O interlúdio socialista de Salvador Allende
A vitória de Allende foi um golpe sério para as elites políticas e financeiras do Chile. Da mesma forma, empresas norte-americanas com grandes interesses financeiros mostraram sua preocupação. Pouco antes do juramento presidencial de Allende, um oficial militar subalterno assassinou o Comandante-Geral do Exército chileno tentando impedir que o novo governo assumisse o poder.
Por muitos anos, a esquerda latino-americana debateu se o caminho democrático para a ascensão ao poder é um caminho possível para o estabelecimento do socialismo em um determinado país. Os setores mais ortodoxos sempre afirmaram que a revolução, como catalisador da mudança qualitativa, é a única forma verdadeira de criar um governo verdadeiramente socialista, já que se trata de levar o proletariado ao poder como classe social autônoma. Os setores reformistas, por outro lado, argumentam que as alianças com setores burgueses e o acesso democrático ao poder político são caminhos possíveis e não violentos para o estabelecimento gradual do socialismo. A esquerda chilena, como se viu, vinha tentando esse caminho desde a década de 1940. O sucesso das eleições de 1970 pressagiava uma nova etapa em toda a América Latina.
No entanto, logo se percebeu que os setores da elite de direita não estavam dispostos a renunciar ao poder de que gozavam desde os dias da independência. Para conseguir o seu regresso ao exercício de governo contaram, neste momento histórico, com todo o apoio e recursos que os Estados Unidos da América puderam proporcionar.
A derrocada do governo Allende começou em 1972 com a greve dos transportes e a crise de desabastecimento. Esses acontecimentos fizeram com que o cidadão comum se sentisse inseguro diante de uma situação de incerteza e, eventualmente, com fome. O chileno de classe média começou a sentir falta da relativa tranquilidade dos anos anteriores e, consequentemente, começou a esquecer as grandes desigualdades e injustiças que o levaram a votar na plataforma socialista da União Popular de Salvador Allende.
Allende chegou ao poder com um programa radical que se propôs a implementar imediatamente. Ele não levou em consideração que, mesmo nos setores da classe média e nas camadas populares da sociedade, essa abordagem radical causaria muito ressentimento. O enorme poder econômico das elites chilenas, junto com o formidável apoio norte-americano, em pouco tempo encurralou o governo da União Popular. O exército chileno, cujos comandantes superiores estavam a serviço dos setores oligárquicos, deu um golpe militar em 11 de setembro de 1973. Allende recusou-se a deixar seu posto e suicidou-se enquanto o exército bombardeava o Palácio Presidencial.
A partir desse momento, teve início uma das ditaduras mais ferozes da história da América Latina, sob o comando do general Augusto Pinochet.
4. A ditadura e a Constituição de 1980
Os primeiros anos da ditadura foram de repressão violenta e ataques sistemáticos às liberdades civis e aos direitos humanos. Estima-se que milhares de pessoas desapareceram ou foram assassinadas diretamente por este regime brutal. O relatório da Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação estabelece que “nos primeiros dias após 11 de setembro de 1973, houve vítimas de confrontos políticos e vítimas de violência de ambos os lados. Seguiram-se as execuções de várias centenas de presos políticos ”[2].
Mas o horror ditatorial estava apenas começando. A mesma comissão constatou que com a consolidação da Direção Nacional de Inteligência (DINA) ocorreram torturas e desaparecimentos com ocultação de cadáveres de tal forma que é praticamente impossível determinar um número exato. A DINA desapareceu em 1977, mas em 1980 comandos especiais do exército realizaram numerosas execuções clandestinas.
Ao mesmo tempo, a direção econômica da ditadura assumiu os ensinamentos neoliberais buscando criar “o milagre econômico chileno”. Infelizmente, esse “milagre” criou novas elites ricas que logo se beneficiaram do furor da privatização de seguros, empresas estatais e até da água. Os perdedores desses eventos milagrosos foram os setores populares que viram o abismo econômico, social e político – que os separa dos vencedores neoliberais bem-sucedidos – se ampliar.
Nesse terrível contexto, Pinochet decide dar ao Chile uma nova constituição em substituição à de 1925. Essa Constituição foi elaborada por duas comissões com o tradicional caráter elitista da sociedade chilena. Uma delas, encarregada da redação do texto, era formada por advogados de ideologia liberal, tanto de confissão cristã como leigos. A outra, encarregada de revisar o trabalho da primeira, incluía figuras de alto escalão, as quais foram acrescentados alguns ex-presidentes. O plebiscito de aprovação gerou imensas dúvidas nos cidadãos.
Gargarella, no texto citado acima, qualifica esta Constituição como típica do século XIX e muito parcimoniosa em direitos. “Espartana” é o adjetivo dado por ele. Paradoxalmente, e em meio ao oximoro geral que supõe um texto constitucional que rege uma ditadura, esta Constituição instaura um recurso de proteção contra violações de direitos constitucionais. Esse simples fato demonstra uma realidade comum a todos os países latino-americanos: a enorme distância que separa suas cartas de direitos de sua aplicação prática. No Chile de Pinochet essa rachadura foi ainda mais evidente, direitos foram reconhecidos e instrumentos legais foram criados para tutelá-los, mas apenas na letra da Constituição. Na prática, segundo Gargarella, a organização do poder impede a eficácia do esses mecanismos: “O constitucionalismo latino-americano foi se tornando, a partir do início do século XX, um ‘constitucionalismo com duas almas’: uma, relacionada aos direitos – que começava a brilhar nova, moderna, avançada, com perfil social marcante e democrático em suas ambições –; e outra, relacionada à organização do poder – que preserva os traços elitistas e autoritários típicos do constitucionalismo latino-americano do século XIX ”[3].
5. Ventos de mudança em 2019
No final de 2019, a longa lista de queixas do povo chileno explodiu sob o pretexto trivial do aumento das tarifas de metrô. Setores jovens iniciaram protestos informais e atos de rebelião no metrô de Santiago. Logo o movimento generalizou-se na capital chilena e em outras cidades do país. As manifestações populares tornaram-se violentas, incluindo saques e incêndios. O presidente Piñera assumiu a atitude autoritária clássica da história chilena, ordenando, primeiramente, ações repressivas das forças policiais especializadas. Os protestos logo aumentaram e as demandas foram de uma simples mudança de tarifa de metrô para a exigência de reformas substanciais. Em seguida, foi determinado um toque de recolher e o exército saiu para as ruas. A fúria popular aumentou, obrigando Piñera a recuar no aumento das tarifas e a considerar propostas de mudança institucional. A resposta do governo centrou-se na criação da renda mínima, ideia que causa horror a qualquer economista neoliberal. Além disso, foi proposto um aumento das aposentadorias e tabelas fiscais mais equitativas.
Contudo, a repressão do governo Piñera, brutal e ilimitada, causou inúmeras vítimas que até hoje se encontram sem indenização e sem reconhecimento.
Em outubro deste ano, os chilenos voltaram às ruas para denunciar essas violações dos direitos humanos e exigir mudanças radicais no esquema de desigualdade neoliberal estabelecido pela Constituição Pinochet. O povo chileno passou a exigir uma nova constituição que mudasse as estruturas injustas do Estado. A inércia liberal que impediu a criação de um novo esquema constitucional nos últimos vinte anos de vida democrática, deve agora dar lugar a reivindicações populares legítimas. A resposta de Piñera foi o pedido cauteloso de um plebiscito. Os resultados desta consulta demonstraram claramente a forte vontade dos chilenos de enterrar as desigualdades constitucionais deixadas pela atroz ditadura de Augusto Pinochet.
Quase 80% dos chilenos expressaram sua vontade de criar uma nova constituição por meio de uma Convenção Constitucional com representantes eleitos pelo povo. Pela primeira vez na história do Chile, a República se fundará de novo e suas bases políticas serão estabelecidas por meio da autêntica vontade popular. As formas autoritárias e elitistas dos séculos passados parecem, por enquanto, terem ficado para trás.
Tradução: Bruno Roberto Dammski
Foto: Carlos Vera/Colectivo2+
Carlos García Torres Ph.D.
COORDENADOR DA CÁTEDRA UNESCO DE ÉTICA Y SOCIEDAD EN LA EDUCACIÓN SUPERIOR
UTPL – Universidad Técnica Particular de Loja – Equador
Doutor em Saúde e Ciências Sociais (UNED) Espanha.
Doutor em Jurisprudência (Universidade Nacional de Loja) Equador.
Mestre em Gênero, Equidade e Desenvolvimento Sustentável (Universidade Técnica de Ambato) Equador.
Bacharel em Direito (Universidade Nacional de Loja) Equador.
Licenciatura em Ciências Sociais, Políticas e Econômicas. (Universidade Nacional de Loja) Equador.
Bolsista Fulbright na Universidade de Massachusetts, em Amherst.
[1] GARGARELLA R. (2020) Diez puntos sobre el cambio constitucional en Chile. Nueva Sociedad N. 285. Janeiro-Fevereiro 2020.
[2] COMISION DE LA VERDAD Y LA RECONCILIACIÓN (1996). Informe de la Comisión de la Verdad y la Reconciliación, Tomo I. P. XVI.
[3] GARGARELLA, Op. Cit.