Está ganhando vida a iniciativa da administração Biden de criar um patamar global mínimo para a tributação das grandes corporações. No dia 05 de junho, em reunião do G7, os Ministros das Finanças e presidentes de Bancos Centrais das sete maiores economias avançadas se comprometeram em: (i) estabelecer um piso de 15% na tributação dos lucros das empresas; e (ii) permitir que parte dessas receitas tributárias sejam direcionadas para as autoridades fiscais de onde as vendas são realizadas.
Estas medidas fazem parte do esforço em retomar a cooperação multilateral, tão prejudicada na Era Trump, e enfrentar os complexos desafios do mundo contemporâneo. No curto prazo, a pandemia da Covid 19 é o tema proeminente; para o longo prazo, os efeitos das mudanças climáticas parecem unificar as preocupações. Em ambos os casos, bem como nos demais temas estratégicos, os Estados Nacionais estão sendo pressionados a ampliar a sua atuação em diversas áreas. Para tanto, eles precisam recuperar a capacidade de gerar receitas tributárias.
A Era da Globalização: capitais livres, Estados fragilizados
A moderna Era da Globalização propiciou um redesenho da produção internacional de bens e serviços. Esse processo foi comandado pelas empresas transnacionais (ETNs), que atualmente são responsáveis por 2/3 das exportações globais. O boom do investimento direto estrangeiro (IDE), a partir dos anos 1980, foi facilitado por uma combinação virtuosa de fatores, dentre os quais cabe destacar: a redução dos custos de transação nas áreas de transporte e comunicações; a queda nas barreiras comerciais e nos controles de capitais; e os incentivos fiscais no destino (redução de impostos por parte dos países hospedeiros) e na origem (regras mais frouxas na tributação dos lucros gerados fora das economias de alta renda) dos capitais.
Em 1980, a relação entre o estoque de saída de IDE e o PIB mundial era de 5,5%, ao passo que, em 2019, era de 39,8%. Em valores correntes, tais cifras avançaram de US$ 589 bilhões (1980) para US$ 3.452 bilhões (2019). Destes respectivos totais, os recursos originados nos países de alta renda correspondiam a 87% (1980) e 76% (2019), ficando os demais países periféricos com 13% e 24%. Algumas economias emergentes e desenvolvimento aproveitaram este processo para atrair empresas estrangeiras, o que facilitou o acesso a novas tecnologias, capacidades produtivas e canais globais de comercialização.
Nas economias asiáticas, particularmente na China, o IDE tornou-se um instrumento para acelerar a modernização produtiva, o que foi complementado com políticas industriais e tecnológicas nacionais. Como isso, foram constituídas capacidades produtivas próprias. Hoje, a China depende menos do IDE e tornou-se, ela própria, uma investidora no exterior. Em outras experiências, como no caso do México, o IDE serviu apenas para criar “maquiladoras”. Sem estratégias de desenvolvimento, tais recursos não aceleraram o crescimento geral da produtividade, nem facilitaram a emergência de grandes empresas nacionais competitivas no plano internacional.
Por decorrência, a fronteira tecnológica e produtiva segue determinada por poucos atores. Por exemplo, Japão, Estados Unidos, China, Coreia e Alemanha respondem por 3/4 dos gastos globais em P&D e da geração de novas patentes. Já a produção final se desconcentrou geograficamente. Em 1970, os países de alta renda concentravam 82% da renda e 85% da produção industrial global; em 2019, tais proporções eram de, respectivamente, 58% e 47%. A contrapartida foi o aumento da participação relativa das demais economias, especialmente as localizadas no Sudeste da Ásia e, em especial, a China.
Para viabilizar esta nova realidade, as ETNs contaram com o apoio dos seus respectivos Estados Nacionais, que passaram a negociar (e impor), tanto no âmbito multilateral, quanto em acordos bilaterais e regionais de comércio, as bases legais e institucionais para estimular e proteger a maior internacionalização produtiva. Multiplicaram-se novas legislações que permitiram, dentre outras coisas: a redução de impostos sobre o comércio exterior, os lucros das empresas e os ricos; o reforço na legislação de proteção dos direitos de propriedade, por um lado, e a redução no poder de negociação de sindicados de trabalhadores, por outro; e a padronização de normas técnicas e sanitárias. A maior mobilidade de capitais reduziu a capacidade de arrecadação tributária dos Estados Nacionais. Com isso, o financiamento dos gastos públicos passou a depender mais da tributação das rendas do trabalho, do consumo final de bens e de serviços nos mercados nacionais e da ampliação da dívida pública.
Na era da globalização, os Estados Nacionais se autoimpuseram limites no exercício do seu poder regulatório e indutor do desenvolvimento. Agora, com a multiplicação dos desafios e o fracasso do neoliberalismo, há que se reconstituir as capacidades estatais e as suas formas de financiamento.
Os Paraísos Fiscais na Berlinda
As políticas neoliberais não implicaram em redução da atuação estatal per se, mas no redirecionamento dos seus instrumentos para proteger os mais ricos em detrimento do conjunto da sociedade. O Tax Justice estima em USD 427 bilhões/ano a perda de receitas derivadas da arbitragem regulatória. Tais valores podem ser bem maiores se consideradas as práticas de diversos crimes tributários, como a evasão e a sonegação. Para se colocar em perspectiva a importância desse valor, basta lembrar que o Fundo Monetário Internacional estimou em USD 50 bilhões o custo total para vacinar a população mundial em 2021-2022.
A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem se dedicado ao estudo dos modelos de tributação, do impacto dos paraísos fiscais e das formas para combater a lavagem de dinheiro, a corrupção, a evasão e a elisão fiscal, dentre outros problemas associados a existência destes espaços jurisdicionais voltados à proteção dos ricos. Neste âmbito, foi desenvolvida uma base de dados sobre a tributação das grandes empresas (Corporate Tax Statistics Database). As primeiras estimativas se referem ao ano de 2016 e cobrem mais de 4 mil ETNs, originadas em 26 jurisdições e com atuação operacional em mais de 100 países. O estudo identificou que 25% dos lucros das ETNs foram reportados pelas unidades sediadas em “investment hubs” (ou paraísos fiscais), ao passo que estas mesmas sedes respondiam por apenas 4% dos empregados e 11% dos ativos. Se a nova agenda do G7 avançar, ficará mais difícil explorar as vantagens dos paraísos fiscais.
Tributar os Ricos Uma Vez Mais: por que agora?
A reunião do G7 discutiu a questão tributária, a necessidade de se apoiar o processo de vacinação das populações dos países emergentes e em desenvolvimento, a importância de manter o ativismo fiscal para pavimentar uma recuperação sólida no pós-pandemia e construir bases mais robustas para a economia global no futuro. Foi destacada a importância dos investimentos públicos e a necessidade de os Estados Nacionais reorganizarem as suas respectivas capacidades de ofertar os bens e serviços demandados pela nova realidade global, na qual as mudanças climáticas e as inovações tecnológicas carregam o potencial de desestabilizar ainda mais a ordem social e política. Tal realidade aparece de forma clara no estudo mais recente do Conselho Nacional de Inteligência dos Estados Unidos – “Tendências Globais 2040: um mundo em contestação”.
O esgotamento das políticas neoliberais, inclusive no que se refere ao padrão de financiamento do setor público, torna-se cada vez mais claro. Nos últimos quarenta anos, as rendas do trabalho estagnaram no mundo avançado, ao passo que os lucros das corporações e o valor dos ativos se expandiram de forma exponencial. A renda e a riqueza se concentraram em níveis que colocam em risco a própria reprodução das economias capitalistas. Porém, tal contexto não explica totalmente a postura reformista da administração Biden. Todos esses problemas já estavam presentes há muitos anos, e se revelaram particularmente dramáticos após a crise financeira de 2007-2009.
Então, por quê reformar agora? Em nossa perspectiva, o que está em jogo é a capacidade de os EUA manterem a liderança econômica, tecnológica e militar nas próximas décadas. A globalização sob o manto das políticas neoliberais foi imposta ao mundo pelos estadunidenses para beneficiar as suas empresas e os seus ricos. Porém, ela gerou um efeito colateral indesejado: o fortalecimento da economia chinesa, cujas empresas desenvolveram capacidades tecnológicas e mercadológicas capazes de ameaçar as posições já estabelecidas por suas rivais ocidentais.
A China se negou a seguir o script desenhado pelos teóricos da modernização: sua vibrante economia de mercado não produziu uma democracia liberal submetida aos desígnios políticos emanados em Washington. A reação à ameaça chinesa ganhou corpo na administração Trump, que optou por intensificar a política de “contenção” da ascensão chinesa por meio da “guerra comercial e tecnológica”. Os efeitos desta estratégia foram limitados. Agora, Biden deseja complementá-la pelo uso pleno da musculatura econômica e política dos seu país. Recuperar o terreno perdido em áreas como infraestrutura, ciência e tecnologia e recursos humanos é peça-chave no xadrez do poder global. Para tanto, lançou três programas estruturantes cujo montante de gastos está estimado em USD 6 trilhões.
O financiamento destas políticas se dará tanto pela expansão da dívida pública, quanto pela tributação de grandes empresas e dos ricos. A criação de um piso global de taxação não visa somente ampliar receitas, mas também mira na capacidade de países emergentes e em desenvolvimento atraírem investimentos estrangeiros. Gigantes globais, tanto dos setores de alta tecnologia, como Google, Facebook, Amazon, etc., quanto dos segmentos tradicionais, terão menos incentivos para manter operações e reportar lucros em “investment hubs”.
A globalização pós-pandemia terá de acomodar os interesses de preservação da plutocracia estadunidense em um ambiente mais complexo e sujeito à contestação dos poderes emergentes. Uma modesta elevação de impostos é um preço que parte do establishment parece já estar disposto a pagar. Resta saber se, tanto no plano doméstico, quanto no internacional, Biden terá a capacidade de convencer o conjunto da elite de que abrir mão de alguns anéis poderá preservar as mãos de quem vive no andar de cima.
A versão integral deste trabalho, com detalhes, referências e fontes dos dados está disponível no Portal da FCE: https://www.ufrgs.br/fce/category/analise/
Foto: Pixabay
André Moreira Cunha é Doutor em Economia pela Unicamp e Professor Associado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS.
Andrés Ferrari Haines é professor Adjunto do Departamento de Economia e Relações Internacionais, Faculdade de Ciências Econômicas e do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-UFRGS). Integrante do Núcleo de Estudos dos BRICS (NEBRICS-UFRGA) e Poder Global e Geopolítica do Capitalismo (aferrari@ufrgs.br).