Em setembro do ano passado, Andrew Bacevich questionou, no Foreign Affairs, por que Joe Biden encerrou o discurso, no qual concordou em ser o candidato democrata nas eleições presidenciais, pedindo que “Deus proteja nossas tropas”. Em sua exposição, Bacevich observa que em nenhum momento Biden deu uma explicação ou esclareceu por que as tropas dos EUA precisavam da proteção de Deus. Tampouco ofereceu qualquer ideia de como, na época, um possível governo Biden poderia fazer as coisas de forma diferente nesse campo. Em seu discurso de 100 dias governo, Biden novamente desejou: “Deus proteja nossas tropas”…
Biden não cessa de afirmar que busca “fazer as coisas de maneira diferente” do “outro cara”, forma depreciativa com que se refere a seu antecessor, Donald Trump. Nem deixa de enfatizar sempre que pode que está fazendo uma mudança radical. Busca se diferenciar de Trump através seu plano econômico de um trilhão de dólares destinados a reconstruir o tecido social que foi destruído pelo neoliberalismo, iniciado por Ronald Reagan na década de 1980, e pelo agravamento pandemia.
A identificação de Trump com esse modelo e sua relutância em realizar os gastos sociais que Biden está implementando são apresentados como o principal aspecto dessa diferença – somada à decisão de restaurar a tributação de milionários e grandes corporações que Trump havia cortado. Em seu discurso de 100 dias, Biden disse que queria “que o mundo visse que há um consenso de que estamos em um ponto de inflexão da história”.
Um elemento-chave com o qual Biden demonstra estar comprometido com tal ponto de inflexão é, precisamente, sua decisão de retirar as tropas americanas do Afeganistão até 11 de setembro desse ano e encerrar as “guerras sem fim”. Contudo, os argumentos contra essas “guerras sem fim” criticam o papel global dos Estados Unidos, com seus gigantescos gastos militares e suas centenas de bases militares espalhadas pelo mundo. A respeito do que Biden, até agora, não disse nada.
Em seu discurso de 100 dias de governo ele deu muitos detalhes sobre uma série de medidas para melhorar as condições de vida de seus compatriotas e, ao explicar a necessidade delas, foi explícito no motivo: “Estamos em competição com a China e outros países para vencer o século XXI”.
Ao explicar sua decisão de se retirar do Afeganistão, Biden foi claro ao afirmar que 2021 não é como 2001. Essa decisão está alinhada à visão estratégica atual de que o Oriente Médio não é mais uma zona de ameaça para os Estados Unidos. Agora, o que importa é a China.
A avaliação anual de ameaças da Comunidade de Inteligência dos Estados Unidos, em seu documento de 9 de abril, aponta a China como o principal perigo para o país, destacando que “é um competidor cada vez mais próximo, que desafia os Estados Unidos em múltiplas áreas – econômica, militar e tecnológica. Além do que, está pressionando por mudanças nas normas globais”. Ao mesmo tempo, com exceção do Irã, os países e questões relacionadas ao Oriente Médio – como a Guerra ao Terror, que antes haviam sido prioridade – são relegados às últimas seções do documento.
Para o analista Peter Bienart, a dimensão militar da China tem uma importância muito maior do que a Guerra ao Terror. Por isso, ele acredita que, nos próximos anos, “muitos vão entender toda a ‘guerra ao terror’ como um parêntese entre tempos de competição entre grandes potências, algo que os Estados Unidos teve que fazer enquanto aguardava a próxima guerra fria”. Nesse sentido, ele não considera que a retirada das tropas do Afeganistão “trará consigo uma queda nos orçamentos de defesa. Com China, o Pentágono tem um motivo ainda melhor para manter altos os gastos militares”.
Examinando o discurso dos 100 dias, o analista de política externa Colm Quinn conclui que Biden apelou ao nacionalismo para obter o apoio republicano à sua agenda de reforma econômica doméstica – o que ele vê como um apoio para enfrentar a China. Biden esclarece ainda que “não pretende intensificar” as relações com a Rússia, deixando claro que o problema é a China, “que se aproxima rapidamente”. Biden concluiu o discurso afirmando que “nós somos os Estados Unidos da América. Não há nada, nada, fora da nossa capacidade. Nada que não possamos fazer, se o fizermos juntos”.
Não é surpreendente que, mais do que durante o mandato presidencial de Trump, surjam análises postulando que uma nova guerra fria entre os Estados Unidos e a China está emergindo com Biden. Ao falar da China, Biden declara que “os autocratas não ganharão o futuro. A América o fará”. Mais do que isso, expressou ao líder chinês, Xi Jinping, que “os Estados Unidos não recuarão em seu compromisso com os direitos humanos e as liberdades fundamentais” – o que gerou comparações com um famoso discurso de outro presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, em 1947, que se acredita ter iniciado a guerra fria.
Naquela época, Truman havia declarado “acredito que devemos ajudar os povos livres a moldar seus destinos à sua própria maneira”, assumindo a liderança global da luta por um “mundo livre”, contra o mundo “autoritário soviético”. Da mesma forma, Biden, em seu discurso de 100 dias, declarou: “Nos posicionaremos, diplomática e militarmente, para defender nossos aliados. Apoiaremos os vizinhos e parceiros comerciais da China na defesa de seus direitos de tomar decisões políticas independentes, livres de coerção ou influência estrangeira indevida”. Para isso, disse que “manterá uma forte presença militar no Indo-Pacífico, tal como se faz com a OTAN na Europa”.
Embora Biden, em seu discurso, tenha parecido relegar a questão externa a um segundo plano em relação à interna, em março, ao apresentar o documento que norteará sua estratégia de segurança nacional, afirmou que “fortalecerá nossas vantagens duradouras, o que nos permitirá prevalecer na competição estratégica com a China ‘porque’ em muitas áreas, os líderes chineses buscam vantagens injustas, se comportam de forma agressiva e coercitiva, minando as regras e os valores que compõe o cerne de um sistema internacional aberto e estável. Quando o comportamento do governo chinês ameaçar diretamente nossos interesses e valores, vamos responder ao desafio de Pequim”.
Apesar de Biden afirmar que, em diversas áreas, buscará que os Estados Unidos e a China cooperem para encontrar soluções globais – principalmente para a questão climática –, a posição fundamental assumida em seu discurso de 100 dias de governo é de confronto com a China. Ao concluir sua análise para o Brookings, David Dollar observa que, embora o Secretário de Estado Antony Blinken tenha afirmado que os EUA iriam separar as áreas de confronto, competição e cooperação com a China, até agora, “há poucas evidências de cooperação, a única exceção sendo a participação de Xi Jinping na cúpula do clima”, há alguma evidência de competição e “ênfase no confronto”.
Assim, Dollar conclui dizendo que “quando se trata da China, Biden, em grande medida, continua a abordagem adotada por Donald Trump”.
Tradução: Bruno Roberto Dammski
Foto: Adam Schultz/ Casa Branca
Andrés Ferrari Haines é professor Adjunto do Departamento de Economia e Relações Internacionais, Faculdade de Ciências Econômicas e do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-UFRGS). Integrante do Núcleo de Estudos dos BRICS (NEBRICS-UFRGA) e Poder Global e Geopolítica do Capitalismo (aferrari@ufrgs.br).