Equador: do melhor dos tempos ao pior dos tempos, por Carlos García Torres

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  1. O melhor dos tempos

O dia 1º de setembro deste ano parecia o início do melhor dos tempos para o Equador: o vice-presidente Alfredo Borrero e a ministra da Saúde Ximena Garzón anunciaram que a meta de vacinar 9 milhões de pessoas nos primeiros cem dias do governo de Guillermo Lasso tinha sido cumprida. Naquele momento a popularidade do mandatário alcançava índices nunca vistos em governos anteriores, comparáveis às primeiras épocas de Rafael Correa. A ideia de reativação econômica proposta por Lasso passava de boca em boca em meio a um clima otimista e confiante no futuro. Porém, como sempre na história equatoriana, as certezas logo se desfizeram em meio a sérias dúvidas.

Para entender melhor essa história, é necessário voltar às últimas eleições. Depois de uma campanha eleitoral amarga, em que tudo parecia possível, chegaram ao segundo turno o candidato conservador Guillermo Lasso e Andrés Arauz, candidato das forças unidas ao redor de Rafael Correa. Logo ficou evidente que a fragilidade de Arauz, novato nas questões eleitorais, bem como a dispersão dos movimentos que o apoiavam, levariam a uma derrota inevitável, o que ocorreu quando Lasso chegou à Presidência por uma margem indiscutível. A principal promessa da campanha do candidato vencedor se valia da angústia do povo encurralado por causa da pandemia e da crise econômica. Ela prometia acabar com a ameaça da doença e da morte com vacinas suficientes, o que levaria a uma rápida recuperação econômica que traria prosperidade e riqueza para todos.

Por isso, quando a promessa da campanha foi cumprida, o povo equatoriano, geralmente acostumado a decepções de todos os tipos, se surpreendeu ao ver que as restrições iam diminuindo e alguns trabalhos produtivos iam sendo retomados. No entanto, essa alegria foi temporária e contrastou com o cotidiano: a perene desigualdade, a crônica escassez de emprego adequado, a persistência das condições de vida abaixo da linha da pobreza para um grande número de cidadãos. Assim, a grande quantidade de vacinas não foi a varinha mágica que, contra a expectativa, o homem comum esperava.

Enquanto os grandes meios se concentravam nos avanços da vacinação, no Palácio do Governo os verdadeiros planos para a vida econômica e política do país continuavam em andamento. Já era possível ver que o novo regime teria uma tendência neoliberal parecida à de Lenín Moreno, imaginar que os assessores presidenciais seriam os mesmos velhos economistas e que uma espécie de liberalismo económico abrandado poderia ser a tônica dos próximos quatro anos. Com estas ideias em mente o presidente Lasso conseguiu o apoio tolerante da Assembleia Nacional e de algumas das forças da esquerda.

  • A temporada de escuridão

Ao realizar esta análise, entretanto, não foi considerado que por trás do presidente se encontrava um thik tank de pensamento neoconservador chamado “Equador Livre”, criado e fomentado desde seus tempos no Banco de Guayaquil. Este grupo se organiza como fundação e é formado por jovens tecnocratas, generalmente com estudos no exterior, sendo muitos deles vinculados aos grandes grupos econômicos de Quito e Guayaquil ou a famílias de riqueza tradicional. O grupo tem relação direta com “Atlas Network”, que é uma organização ultraconservadora com sede nos Estados Unidos, originalmente chamada “Atlas Economic Research Foundation”. Ele é seguidor das ideias de Friedrich Hayek e tem conexão com a “State Policy Network” que por sua vez trabalha com a ala da ultradireita do Partido Republicano. Dessa forma, existe uma relação ideológica fundamental e imutável que explica muitas das ações tomadas pelo governo de Guillermo Lasso.

Enquanto a lua de mel com o Congresso durou, o governo começou a falar de mudanças fundamentais na legislação equatoriana que seriam propostas mediante um projeto abrangente chamado “Lei de Criação de Oportunidades”. O nome não foi suficiente e foi inventado um neologismo para designá-lo: “megalei”.  As mudanças que essa lei prevê, na  maior parte, são inaceitáveis e atacam muitos dos direitos que o povo equatoriano obteve ao longo dos séculos. O projeto ataca duas frentes, a do trabalho e a tributária.

Nas questões de trabalho, ele propõe criar uma lei específica para todos os que não estiverem amparados pelo Direito do Trabalho, ou seja, se projetam dois sistemas de trabalho. O primeiro, que conserva os direitos do trabalhador, e o segundo, que os destroi em nome de uma flexibilização que, de acordo com o que o governo imagina, serviria para criar novos postos de trabalho. Assim, desempregados deverão aceitar, de maneira obrigatória, diversas condições exploratórias e precárias, muitas delas contrárias às disposições da Organização Internacional do Trabalho. Por exemplo, se preconiza um contrato de experiência de quatro anos; se estabelece que o trabajador possa ser despedido por “justa causa” sem necessidade de notificação a nenhuma autoridade trabalhista, e nesse caso a pessoa despedida deve indenizar o empregador; se mencionam como causas de demissão dois atrasos sem justificativa, ou “falta de probidade” que não tem que causar prejuízo mas ser subjetivamente considerada pelo empregador. Inclusive se alude à possível “inépcia” do trabalhador que, a critério do empregador, servirá para despedi-lo a qualquer momento.  Como se vê, se trata da prática de abolição dos direitos trabalhistas fundamentais.

Com relação à questão tributária, o projeto retoma a velha prática dos governos de direita do mundo todo. Ele fala de “ampliar a base tributária”, o que quer dizer que visa reduzir os impostos dos mais ricos e cobrir essa brecha com as contribuições dos setores pobres que, até agora, são isentos do imposto de renda. Ao mesmo tempo, a porcentagem desse tributo para as parcelas médias da sociedade é elevada. Para defender o suposto caráter popular das reformas, a alegação é a de que não se mexeu no imposto de valor agregado que é um tibuto único relacionado às vendas. Nosso ICMS?

  • A temporada de luz

Finalmente a luz apareceu sobre as forças políticas que mantinham uma prudente trégua com o regime. Logo elas entenderam que as intenções ultraconservadoras de Lasso eram sérias e que ele estava disposto a colocar em prática suas ideias. Ele mesmo anunciou que essas leis estavam sendo sendo desenvolvidas há dez anos no “Equador livre”, deixando clara sua intenção de aprová-las. Portanto, quando apresentou seu projeto de “megalei”, o Conselho Legislativo o devolveu imediatamente, apontando que era obrigatório que um projeto de lei tratasse sobre matéria única.  Isso levou a uma ruptura entre os dois poderes e inclusive a veladas ameaças de utilização do mecanismo de “morte cruzada”. Morte cruzada é uma ferramenta constitucional que busca eliminar as disputas políticas dissolvendo o parlamento e permitindo que o executivo governe por decretos urgentes até que um novo presidente e novos congressistas sejam eleitos.  

A discussão sobre esses asuntos demonstrou que os grandes meios de comunicação e os setores empresariais têm pouco ou nenhum interesse no bem-estar da população. Nas altas esferas existe um alinhamento unânime em torno à proposta presidencial e uma campanha de desprestígio da Assembleia Nacional. Infelizmente diversos incidentes de aparente corrupção cometidos por três congresssistas, entre os quais está a própria presidenta da Assembleia – Guadalupe Llori – contribuíram para o sucesso dessa campanha. 

A presidenta da Assembleia tem uma longa trajetória política como líder comunitária indígena e como alta funcionária da Província de Orellana, uma das regiões mais importantes da amazônia equatoriana. É membro de Pachakutik, o partido político que é braço eleitoral da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE). Por essas razões, a briga com o executivo ultrapassa as considerações conjunturais e se revela como a contradição essencial entre as oligarquias tradicionais e os setores populares do país.

Quando tudo isso acontecia, a investigação internacional sobre os “Pandora papers” lançou uma clara luz sobre as finanças presidenciais demonstrando que Guillermo Lasso investiu em paraísos fiscais, fruto dos quais ele ainda mantem determinados fundos fiduciários no exterior.  O que é delicado é que uma lei prévia proibiu que candidatos presidenciais tivessem negócios com esses países. Com relação a isso, Lasso inicialmente se limitou a dizer que cumpriu com a lei equatoriana e que, no momento de sua candidatura presidencial, não estava impedido porque tinha dissolvido as entidades financeiras (empresas e fundações) que mantinha sob o regime jurídico do Panamá. Por outro lado, a Assembleia Nacional iniciou uma investigação sobre o assunto que se espera que seja rigorosa. Em uma entrevista na televisão, Lasso admitiu que mantem parte de seu patrimônio no exterior, mas se defendeu alegando que os equatorianos têm a “liberdade” de administrar seu dinheiro como quiserem e que ele é partidário desse tipo de liberdade.

Essa revelação afetou de tal forma a popularidade inicial de Lasso que agora ele está imerso em uma crescente queda de credibilidade. O presidente parece mais nervoso à medida aparece mais informações sobre a administração do seu dinheiro no exterior. Recentemente apresentou três ideias que não parecem ser compatíveis com os fatos. Em primeiro lugar, a ideia de um complô contra ele cujos autores seriam uma espécie de triunvirato do mal integrado por Rafael Correa, Jaime Nebot (social cristão e ex prefeito de Guayaquil) e Leonidas Iza (presidente da CONAIE). De acordo com essa hipótese, os três políticos estariam conspirando nas sombras para acabar com o regime, e todas as investigações dos “Pandora papers” seriam mero fruto dessa conspiração. Em segundo lugar, acusou o jornal “El Universo” (jornal conservador parte do grupo de investigação que anunciou o escândalo) de jogar sujo com a informação e de emitir notícias descontextualizadas. E, em terceiro lugar, durante uma entrevista na televisão mostrou um artigo de imprensa segundo o qual todas as revelações dos “Pandora papers” seriam orquestradas por George Soros. Tudo isso não contribui para melhorar a credibilidade presidencial.

  • O pior dos tempos

Lasso tem que lidar com heranças indesejáveis do regime anterior. Entre elas está a eliminação progressiva do subsídio aos combustíveis que foi parte de um pacote de medidas negociadas com o Fundo Monetário Internacional. A liberação dos preços dos combustíveis começou com gasolina de melhor qualidade. A gasolina de menor octanagem e a que é misturada com álcool foram subindo o preço aos poucos e isso também têm ocorrido com o diesel. Tudo isso incidiu de várias formas na economia popular, principalmente no setor de transporte que está próximo da falência.  

Por outro lado, as demandas discutidas com os povos indígenas em outubro de 2019 ainda não receberam uma resposta efetiva por parte do Estado. Entre elas estava a manutenção dos preços dos combustíveis, o que, como mencionado, não aconteceu.

Enquanto isso, a ausência de perspectivas de emprego no país foi substituída por um persistente movimento migratório para os Estados Unidos e para a Europa. Segundo dados oficiais, até agora se deslocaram mais de sessenta mil pessoas. Fica claro que a situação atual do Equador está longe desses bons tempos que o processo de vacinação prenunciava e que entrou em cheio nos tempos ásperos que costumam ser característicos dos governos liberais.

Por esses motivos e por causa da iminentes reformas trabalhistas, a central de trabalhadores e a CONAIE chamaram uma greve nacional que inicialmente durou dois días, tendo sido suspensa até depois de 3 de novembro. Tanto os organismos sindicais como os povos indígenas parecem estar preparados para continuar a luta popular; por outro lado, os setores da direita e as elites empresariais desqualificam as reivindicações populares como atentados contra o progresso e contra a recuperação econômica. 

Assim, em um ambiente de instabilidade e incerteza, os equatorianos são exiliados do melhor dos tempos e voltam, como de costume, ao pior deles.

Foto: Presidência da República do Equador

Carlos García Torres Ph.D.
COORDENADOR DA CÁTEDRA UNESCO DE ÉTICA Y SOCIEDAD EN LA EDUCACIÓN SUPERIOR
UTPL – Universidad Técnica Particular de Loja – Equador
Doutor em Saúde e Ciências Sociais (UNED) Espanha.
Doutor em Jurisprudência (Universidade Nacional de Loja) Equador.
Mestre em Gênero, Equidade e Desenvolvimento Sustentável (Universidade Técnica de Ambato) Equador.
Bacharel em Direito (Universidade Nacional de Loja) Equador.
Licenciatura em Ciências Sociais, Políticas e Econômicas. (Universidade Nacional de Loja) Equador.
Bolsista Fulbright na Universidade de Massachusetts, em Amherst.

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