A agenda e os desafios da política exterior mexicana, por Diego Angelino

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Introdução

Durante a segunda metade do século XX, a política exterior do México obteve um grande reconhecimento internacional. Ao longo desse período, a diplomacia mexicana foi implacável na defesa da soberania, da autonomia dos povos, de uma solução pacífica para as controvérsias e da não intervenção.

Ao considerar os marcos dessa forma de atuar, destacam-se: o impulso e o papel de liderança mexicana nas negociações de paz na América Central, a sua defesa do governo revolucionário cubano e a condenação das ditaduras na América do Sul. Uma atuação que se deu sempre tomando posições firmes e que contaram com o brilhante desempenho do corpo diplomático desse país. Entretanto, essa forma de atuar esteve em absoluta contradição com o que acontecia dentro do México, onde o regime de governo se caracterizou por seu autoritarismo assassino e por um sistema político extremamente corrupto e sem nenhum interesse pela defesa dos direitos humanos.

Um exemplo foi a condenação do golpe de Estado no Chile, em 1973, em que vários documentos atestam a atuação heroica dos funcionários da embaixada mexicana para salvar a vida de muitos chilenos e chilenas. Contudo, nesse mesmo período, o México viveu um dos períodos de guerra interna mais intensos da sua história recente. Apenas na província de Guerrero, durante os anos 1970, ocorreram numerosas desaparições, torturas, assassinatos indiscriminados e, inclusive, o desaparecimento de comunidades inteiras.

No ano 2000 chegou ao poder o Partido Ação Nacional (PAN), partido conservador de direita que deu início a um período de mudanças na tradicional política exterior mexicana. A principal delas foi distanciar o México da narrativa progressista latino-americana e, especialmente, de sua posição tradicional em defesa do regime revolucionário cubano.

Contudo, a agenda de política exterior, ainda que com princípios distintos, seguiu dissociada da agenda política interna. Os governos do PAN (2000-2012) e o governo de Enrique Peña Nieto (2012-2018) se destacaram internacionalmente pela capacidade de organizar fóruns e conferências internacionais sobre temas como economia sustentável e cooperação econômica, entretanto, no interior do país esses 18 anos representaram uma compilação de práticas corruptas de governo. Corrupção extrema, roubo de bens públicos, nepotismo e um rastro de morte foi o legado desses governos.

E essa dissociação se converteu no eixo do governo em matéria de política exterior desde que chegou à presidência Andrés Manuel Lópes Obrador (AMLO), que repete constantemente “a melhor política externa é a interna”. No presente artigo, revisarei algumas tendências e prioridades em distintas regiões no contexto da chamada Quarta Transformação (4T), como é conhecido o governo de AMLO, destacando, especialmente, a dissociação do discurso interno-externo e seus desafios mais importantes.

1. Fóruns multilaterais e a cooperação sul-sul

O México tem um peso geopolítico considerável por sua demografia, economia (13 tratados ou acordos comerciais com 50 países) e riqueza cultural. Nesse sentido, é normal que o seu posicionamento seja acompanhado com interesse nos distintos fóruns internacionais de que participa. Durante o governo de AMLO se apresentou uma situação peculiar, ele se negou a participar de alguns fóruns e espaços de negociação importantes no sistema internacional.

No seu primeiro ano de governo, AMLO decidiu não assistir ao Fórum de Davos, a reunião do G20 e a Assembleia Geral das ONU, a qual decidiu enviar seu chanceler Marcelo Ebrard. Embora alguns tenham celebrado esse dar as costas aos poderosos do sistema financeiro global, é necessário recordar que AMLO também se ausentou do Fórum Intergovenamental de Marrakech, no qual foram discutidos temas de grande importância para a defesa dos direitos dos imigrantes e que foi sabotado por personagens como Donald Trump.

A perda de protagonismo nesses fóruns foi acompanhada de uma longa demora em diversificar suas alianças e reforçar o multilateralismo a partir de uma visão sul-sul. Nesse sentido, o distanciamento do governo de AMLO das organizações da sociedade civil dentro do país também significou uma perda de influência nos fóruns no tocante a matérias como desenvolvimento sustentável e igualdade de gênero.

É importante que a participação nesse tipo fórum seja percebida não apenas como uma potencial tribuna para fazer propaganda de políticas internas, mas, também, como uma oportunidade de aprendizagem coletiva, negociação e influência em temas de grande importância para a agenda global como são a crise climática e a defesa dos direitos humanos.

2. América Latina

Por sua demografia e sua importância econômica, histórica e cultural o México é uma potência regional dentro da América Latina. Seu vínculo político com a história latino-americana transcende as relações formais entre os Estados, representa um diálogo transformador. Pelo México transitaram líderes políticos importantes da história desse continente, criadores e criadoras, que ali nutriram suas lutas e ideias.

A chegada de AMLO a presidência foi vista por muitas pessoas como o início de uma segunda onda neoliberal, um retrocesso para a agenda progressista que há vinte anos dominava sobre toda a América do Sul. É muito cedo para avaliar se essa visão estava correta, porém é possível revisar o que aconteceu e o que se anuncia a partir desses dois anos que AMLO já está no poder.

Devido a limitação de espaço, este artigo revisa de forma breve duas regiões do continente latino-americano – a América Central e a América do Sul – sem se aprofundar em temas vitais e suas complexidades.

2.1. América Central

O México considerou a América Central como sua zona natural de influência. Isso se reforçou quando, já no início do governo, AMLO assinou com os chefes de Estado de El Salvador, Guatemala e Honduras, o Plano de Desenvolvimento Integral da América Central e do México um projeto ambicioso de desenvolvimento que, no entanto, em poucos meses parece ter sido subordinado à narrativa de ser uma opção para a “contenção” da migração.

Dois anos depois da assinatura, ainda não se sabe quanto da meta de investir 10 bilhões de dólares em projetos de desenvolvimento foi cumprida e, para opinião pública, o principal ponto continua sendo a legitimidade ou a manipulação que está por trás da preocupação com as caravanas de migrantes.

Um ponto importante referente a agenda imigratória é que a implementação de políticas externas por parte do México é totalmente dependente das negociações bilaterais com os EUA. Em meados de 2019, ocorreu uma das negociações mais tensas da história recente. Donald Trump ameaçou impor uma tarifa de 5%, que aumentaria gradativamente, sobre todos os produtos mexicanos enquanto as medidas que foram determinadas para conter o fluxo imigratórios não fossem cumpridas. Houve vozes que descreveram esse episódio como chantagem, chegando a usar palavras como “sequestro” para definir o processo de negociação a que foi submetido o corpo diplomático mexicano. O México se tornou, na prática, um terceiro país seguro, no qual os solicitantes de refúgio junto aos Estados Unidos precisam permanecer no durante o processo. Além do México ter se comprometido a destinar militares para a fronteira sul do país, Trump disse que conseguiu que esse destacamento fosse de 10.000 soldados.

Isso, em princípio, é contrário a qualquer postulado de desenvolvimento regional e copia a fórmula do NAFTA, que prevê uma integração comercial, financeira, energética e de segurança, mas sem fluxo de pessoas, sem possibilidade de trânsito entre o México e da América do Norte.

O grande desafio é que o discurso de política interna se reflita na América Central e mude a visão sobre esta região, que ela deixe de ser vista como uma área de contenção e passa a ser enxergada como uma região de desenvolvimento integrado, como um espaço de integração econômica onde se prioriza o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Para isso, pode-se aproveitar seu grande potencial em termos de desenvolvimento conjunto de energias limpas, recuperação e cuidado dos ecossistemas e a possibilidade de cooperação entre nações indígenas.

2.2 América do Sul

O eixo geopolítico progressista formado por Lula da Silva, Nestor Kirchner, Rafael Correa, Hugo Chávez, Evo Morales e Tabare Vázquez foi a antítese do regime mexicano durante os primeiros anos do terceiro milênio. Nesse período, o México concentrou suas relações com Colômbia, Chile e Peru, formando a chamada Aliança do Pacífico.

Os tempos mudaram na América do Sul e, também, no México, onde a narrativa progressista de uma plataforma de esquerda voltou. Nesse sentido, o governo AMLO se distanciou do agora dominante Grupo Lima, grupo de países cujo objetivo principal é conseguir a queda do governo de Nicolás Maduro. A Venezuela continua sendo um tema polêmico e complicado. Por um lado, o intervencionismo e o papel desestabilizador dos Estados Unidos e de outros países da região são evidentes. Por outro, o procedimento democrático do regime de Maduro é cada vez mais questionável. Seu governo é totalmente diferente do governo do saudoso Hugo Chávez, que desenvolveu uma política externa de apoio ao multilaterialismo, a qual teve impacto global na criação e fortalecimento de organizações regionais como a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC).

Em termos de política externa, a ação mais representativa do governo da AMLO na região foi a condenação do golpe contra o governo boliviano de 2019. Episódio em que chegou a intervir para garantir a segurança de Evo Morales e sua família.

Vale destacar a relação estratégica estabelecida com a Argentina e o governo de Alberto Fernández. O México tem acompanhado a Argentina na renegociação da sua dívida externa, ao que se soma a opção de compra conjunta de vacinas para o COVID19, além do recente o anúncio, também em conjunto, da criação da Agência Espacial Latino-Americana e do Caribe. Espera-se que sua política externa continue fortalecendo as relações com o atual governo da Argentina e com o recém-eleito governo boliviano.

Internamente, AMLO afirma se inspirar politicamente em personagens como José Martí e Salvador Allende, bem como sua intenção de fortalecer a posição de defesa da autodeterminação dos povos. Isso, entretanto, pode ser perigoso para suas relações com os países da América do Sul, especialmente em casos que envolvem violação dos Direitos Humanos – Nicarágua, Chile, Colômbia e Venezuela –, mas também em outras questões como a defesa ambiental diante da destruição da Amazônia.

3. Europa

O México tem um acordo de livre comércio com a União Europeia e condição preferencial em várias questões de cooperação. Recentemente, o México e o Conselho Europeu estabeleceram uma Associação Estratégica. Esta associação pactuou um conjunto de intenções e a “ampliação do diálogo e do intercâmbio de boas práticas em benefício de ambos”. Igualdade de gênero, direitos humanos, democracia e Estado de Direito foram identificados como pontos importantes de colaboração. No entanto, destaca que o Governo do México dispensou atenção especial à ratificação da Convenção de Nicósia sobre o tema dos bens culturais.

Os desafios desta administração serão ter um relacionamento firme nas negociações e poder aproveitar as vantagens da recém-formada associação estratégica para aprofundar o diálogo efetivo sobre questões como: transição energética, digitalização, inteligência artificial, indústria 4.0, melhoria do transporte público, manuseio e gestão de cidades pequenas e médias, entre outras.

Existem questões específicas que dependem da agenda bilateral com determinados atores, dentre os quais se destacam: Espanha, Alemanha, França e Reino Unido, nesta ordem. Mas, não há espaço neste artigo para discuti-las.

4. Ásia

No caso dos países asiáticos, existem abordagens diferenciadas, dependendo do ator ou mesmo da sub-região dessa vasta porção do planeta. O Acordo Transpacífico continua sendo o principal mecanismo político de cooperação econômica, a ponte marítima entre o México e a Ásia. Porém, esse acordo não deixou de ser um tema polêmico, principalmente pelo seu evidente caráter neoliberal, o que implica uma clara contradição com a política (pelo menos no discurso) anti-neoliberal da AMLO.

Quanto ao relacionamento com a China, paradoxalmente, a questão passa por Washington. Assim como acontece com o resto do mundo, os EUA pressionam seus parceiros comerciais mais próximos para limitar a cooperação estreita com o gigante asiático.

Com o Japão, existe uma cooperação histórica em questões comerciais e de gestão de desastres, especialmente no que diz respeito aos desastres sísmicos. A partir de 2005, entrou em vigor um acordo econômico que mantem o investimento japonês crescente no país, acordo esse reafirmado por uma visita de empresários em fevereiro de 2019.

A recuperação e o desenvolvimento econômico em tempos de pandemia de COVID19 podem significar uma grande oportunidade para fortalecer as relações econômicas com os atores asiáticos. China, Japão, Indonésia e Coréia do Sul têm grande interesse em manter suas relações com o México. No entanto, a maior dificuldade reside na lacuna em termos de desenvolvimento tecnológico que implica para o México uma dificuldade crescente em se manter um parceiro atraente para a cooperação econômica, algo importante por ir além de ser um lugar com condições favoráveis ​​para seus produtos acessem o mercado norte-americano.

A segunda dificuldade será reforçar os princípios da “solução pacífica de conflitos” em uma área que parece estar em fase de hostilidade crescente. Isso exigirá dos atores uma postura de construtores da paz, de promotores de diálogo e não membros de alianças geopolíticas. Nesse ponto, o México pode desempenhar um papel de destaque.

Conclusão

A dissociação característica entre os princípios da política externa e o exercício da política interna parece estar resolvida no México. Embora haja uma recuperação dos princípios da autodeterminação dos povos e da defesa pacífica das controvérsias, há grandes desafios ligados a relação bilateral desequilibrada com os EUA e ao reduzido interesse em fazer parte dos fóruns e espaços de decisão e negociação do sistema global.

A questão mais urgente de política externa deste, e de qualquer governo, é a crise climática e a busca pelo desenvolvimento sustentável. No entanto, no México a visão energética ainda está ancorada no uso de hidrocarbonetos. Os projetos de energia verde são dominados por concepções de grande escala e de interesse privado, tanto é assim que chegaram a ser comparados a ações de expropriação territorial. O fato é que temas como crise climática, perda de biodiversidade, inclusão e gênero não tem papel de destaque na política externa mexicana.

Na definição da política externa do Plano de Desenvolvimento Nacional não há menção específica a visão da política externa fora do continente americano. Porém, há uma grande inclinação para fortalecer as relações de troca de práticas com países do continente africano, da região do Oriente Médio e do Sudeste Asiático.

Deve-se reconhecer dois grandes marcos recentes em termos de política exterior: a resolução da ONU para o acesso universal a medicamentos e vacinas para o tratamento de COVID19 e a cadeira de membro não permanente no Conselho de Segurança da ONU para o período de 2021 -2022. A partir dessa posição é grande a possibilidade do México implantar uma política externa que influencie duas questões fundamentais para o seu projeto governo (4T): o combate à corrupção e o combate às desigualdades.

Em termos de política regional, conseguir um impacto positivo sobre o desenvolvimento sustentável da região centro-americana pode representar uma conquista importante para a política externa mexicana. Não só pelo impacto positivo na agenda de desenvolvimento sustentável, mas também pelo impacto geopolítico de longo prazo que significaria assumir a liderança regional nesse tema.

Mesmo assim, é necessário reforçar a visão geoestratégica do papel que o México pode ter nas demais regiões do mundo, bem como o uso do multilateralismo como forma de aprimorar sua agenda política interna.

Tradução: Bruno Roberto Dammski

Foto: o presidente do México, Andrés Manuel Lópes Obrador, na Casa Branca, onde se encontrou com o presidente americano, Donald Trump. Crédito: Tia Dufour/ Casa Branca

Diego Angelino é Mestre em Cooperação para o Desenvolvimento Internacional pelo Instituto Mora do México. Ele tem especialização em Governança Global pelo Instituto Alemão de Desenvolvimento e participou do programa de treinamento International Futures para jovens diplomatas no Ministério de Relações Exteriores da Alemanha. Tem sido colaborador de instituições de cooperação internacional e também membro de grupos de trabalho e pesquisa em vários centros de estudos em economias emergentes. Atualmente é consultor independente em questões de sustentabilidade.

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