As eleições no Equador, marcadas para 7 de fevereiro de 2021, podem constituir uma contribuição para fortalecer a virada regional para a retomada dos rumos populares da política regional e, também, dos processos de integração latino-americana-caribenha. Os esforços em ambas as direções foram prejudicados nos últimos anos por um número significativo de governos de direita em nosso subcontinente, com o apoio dos Estados Unidos. Mas nossa região mais uma vez surpreende, pela luta e organização popular, com o fortalecimento de buscas que muitos já entendiam como moribundas.
O processo que a Bolívia viveu recentemente para reverter o golpe de 2019, pela primeira vez desde que começou na região aquela modalidade denominada por alguns de “golpes suaves”, foi decisivo neste sentido, tanto pelo seu peso político quanto simbólico. A problemática política equatoriana tem algumas relações com os processos bolivianos (Novo Constitucionalismo, protagonismo indígena, polêmica entre o desenvolvimentismo e a proposta do Bem Viver, etc.), embora também tenha claras diferenças. Mas o possível triunfo de qualquer uma das expressões do que podemos chamar de “esquerda” no Equador, pode dar continuidade e consolidação a essa recomposição regional de forças que vivemos. Esse panorama que abre possibilidades de governo a forças reconhecidas no campo popular tem diferentes elementos explicativos, mas um deles é, sem dúvida, a luta popular de outubro de 2019, que foi liderada principalmente pelo movimento indígena, como já aconteceu repetidamente na história deste belo e sofrido país.
Se as expectativas de mudança que aparecem em outros cenários nas mãos de rebeliões populares (Haiti, Chile, Peru, Guatemala) se situam nesta tendência, ainda que parcial e relativamente, a extensão desse processo surge como um horizonte possível para a nossa região, que tem uma história onde caminhos políticos comuns aparecem muitas vezes.
Candidatos, pesquisas e tendências
O registro de candidatos presidenciais para estas eleições caracterizou-se por duas coisas: um número impressionante e uma série de idas e vindas políticas e judiciais para sua concretização.
Mesmo com um panorama ainda não definido no jurídico, podemos falar de quatro candidaturas com possibilidades, em meio a dezessete fórmulas. Duas poderiam ser classificadas como de esquerda, e outras duas podem ser, sem dúvida, como direita. Nas duas primeiras podemos situar a que representa a continuação do projeto do ex-presidente Rafael Correa que concorre com Andrés Arauz e Carlos Rabascall e a do Movimento Unidade Plurinacional Pachakutik – braço político do movimento indígena – que concorre por Yaku Pérez e Virna Cedeño. Os dois candidatos da direita que mostram possibilidades são de velhos conhecidos da política equatoriana. Um deles é Guillermo Lasso, empresário identificado como banqueiro -por causa de seus vínculos com o Banco de Guayaquil- que contando com seu próprio partido Creando Oportunidades (CREO), aliou-se também com o tradicional Partido Social Cristão (PSC). O outro, que ainda não conseguiu comprovar a legalidade da candidatura, é ainda mais velho: Álvaro Noboa, da família ligada à exportação de banana e uma das tradicionalmente mais ricas do país.
A pesquisa de Clima Social[1] de dezembro dá 23,3% para Arauz; 13,9% para Lasso; 12,8% para Pérez e 10,8% para Noboa, com uma diferença muito grande em relação aos demais candidatos. Os indecisos somam 13,1% e os que desejam anular o voto ou votar em branco somam 8,6%. No levantamento do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (CELAG)[2], Arauz também lidera com 36,5%, mas seguido por Noboa com 22,9%, seguido por Pérez com 21,2% e Lasso com 13,6%. O diretor do CELAG, Alfredo Serrano Mancilla, vê ainda a possibilidade de vitória do Arauz no primeiro turno. Devemos lembrar que no Equador se pode ganhar no primeiro turno obtendo mais da metade dos votos ou 40% com uma diferença de dez pontos sobre o segundo colocado. Este último seria um cenário possível na opinião deste sociólogo espanhol. Entre as pesquisas mais conhecidas, apenas CEDATOS sustenta uma possível vitória de Lasso.
O outro lado da esquerda que – além do Correismo – aparece com força é o de Pachakutik. A figura de Yaku Pérez não tem a mesma associação que outras anteriores tiveram com o mais nuclear do movimento indígena. Ele é presidente da confederação indígena da Serra, a Ecuarunari[3], há seis anos. Mas alguns questionam sua identidade indígena[4] e isso, de forma chamativa, pode ter aberto possibilidades de aceitação em setores que, infelizmente, estão condicionados por preconceitos em relação aos indígenas, mas que concordam na busca por alternativas políticas diferenciadas de governos anteriores e / ou com o discurso de defesa da natureza que Pérez mantém.
Na direita, há dois velhos conhecidos que repetidamente fracassaram em suas tentativas de se tornar presidente. De um lado está Guillermo Lasso. Lasso carrega as consequências de sua aliança com Moreno, que é mal avaliado pela população. Também pesa sobre ele sua associação com os poderes financeiros que, historicamente, estiveram ligados à produção de graves crises econômicas e ao empobrecimento do povo equatoriano. Se Noboa não estiver qualificado para participar da eleição, ele concentraria a maioria dos votos da direita, mas sem poder suficiente para se posicionar como um possível vencedor.
Quanto ao citado Álvaro Noboa, sua figura é um emblema do poder econômico sediado em Guayaquil. Ainda não conseguiu oficializar sua candidatura, que ainda está em discussão nas diferentes instâncias judiciais. Se puder concorrer à presidência, disputará o voto da direita com Lasso, mesmo, aparentemente, com mais possibilidades do que o banqueiro. Sem sua candidatura, seus votos possíveis iriam em sua maioria, quase certamente para Lasso. Mas também, quase certamente nem todos eles. Uma parte pode ser distribuída em votos nulos ou em outros candidatos.
Alianza PAIS, partido que se formou em torno de Correa e do qual Lenín Moreno apoderou-se – e que ainda é seu presidente – apresenta sua candidatura como distanciada do atual presidente e com intenção de voto desprezível, possivelmente por não ter sido possível decolar, na opinião pública, de seus vínculos com o governo. Na pesquisa de Clima Social eles ocupam o quinto lugar com 3%, longe dos quatro primeiros candidatos. Na pesquisa CELAG, ocupa a sexta posição com 1,2%. Devemos lembrar que as pesquisas mostram que nove em cada dez equatorianos rejeitam à figura de Moreno, o que parece ser um dos fatores que afetam a adesão a essa formação política. Sua candidata, Ximena Peña, a única mulher entre os dezessete candidatos presidenciais, faz esforços verbais para se distanciar de Moreno, mas ela não parece ter conseguido, pela sua pessoa, que a candidatura fosse valorizada pelo eleitorado.
Com esse cenário, o mais provável é que haja um segundo turno, embora haja a possibilidade, talvez menos, de uma resolução também no primeiro turno. De uma forma ou de outra, as possibilidades de um governo que, em princípio, podemos chamar de esquerda, são muito concretas.
Os desafios para um eventual governo de Arauz são fortes. Embora tenha chegado ao poder em grande parte pelas mãos daqueles que permaneceram ligados à política de Rafael Correa, é importante que ele aproveite o fato de não ser Correa, para não carregar em todo seu peso os confrontos no campo popular que ocorreram durante as gestões de seu padrinho político. É importante para ele construir pontes com os movimentos indígenas, os sindicatos e os movimentos sociais que ficaram com feridas abertas na fase correista. Possivelmente algo disso está pensando em fazer. Em dezembro, ele se encontrou com a atual prefeita de Azuay, Cecilia Méndez, que pertence a Pachakutik. Méndez tinha acompanhado Yaku Pérez na fórmula como vice-prefeita nas eleições seccionais de março de 2019, eleições nas quais esta fórmula de Pachakutik alcançou a vitória. Quando Pérez renunciou para se candidatar à presidência, ela ocupou a mais alta autoridade na província de Azuay. Afastou-se do anterior companheiro de chapa, mas se reivindica fiel a Pachakutik e solidária com a linha dos dirigentes da CONAIE[5] de maior peso político hoje: Leonidas Iza e Jaime Vargas, também em divergências políticas com Pérez. Se for um fato que Arauz vai para um segundo turno enfrentando um candidato de direita e que Pachakutik tenha uma boa eleição no primeiro turno, isso obrigará o candidato do correísmo a abordar este movimento na campanha. Isso implicará um esforço para se distanciar, ao menos parcialmente, dos traumas que permaneceram entre esses movimentos e a pessoa de Rafael Correa. Esse cenário obrigaria Arauz a se inclinar para a esquerda, a assumir compromissos nessa linha política, buscando uni-la para vencer as eleições. Seu grande elemento conflitivo para isso será o relacionamento com os setores extrativistas da economia. À primeira vista, ele se apresenta como um dos mais aptos a enfrentar o problema financeiro que se complica no Equador, pois terá que lidar com a questão da dívida externa, tanto com o Fundo Monetário Internacional quanto com os detentores de títulos.
Se Yaku Pérez chegar à presidência, é possível que o espere por um lado um processo de reconstrução da unidade entre CONAIE e o Movimento Pachakutik e, por outro, um apelo às forças de esquerda que estão reticentes diante do correísmo. Terá que enfrentar o desafio de realizar sua abordagem ecológica em um país cuja matriz produtiva continua sendo o extrativismo. A coerência com esta proposta exigirá muita força de mobilização para se sustentar e aí terá que cuidar de seus vínculos com os movimentos indígenas que são, como demonstraram os acontecimentos de outubro de 2019, a grande força mobilizadora do país, ainda que sua força eleitoral seja menor. Se o seu governo seguir esse caminho, terá um potencial inovador muito importante, mas terá o enfrentamento dos poderosos setores do petróleo e da mineração e, também, da mídia e do aparato judiciário que o acompanha. Em todo caso, nunca é desarrazoado pensar que, ante a consolidação da probabilidade de que alguma expressão de esquerda ganhe, a ofensiva dos setores de maior poder e, muito especialmente, o assessoramento e os financiamentos americanos, façam sentir toda sua força para evitá-lo.
Contribuição para a integração latino-americana / caribenha
As perspectivas de integração latino-americana seriam fortalecidas com a contribuição de um eventual governo equatoriano comprometido com ela. O triunfo de algumas das versões de esquerda que têm possibilidades daria uma importante contribuição para este caminho de consolidação.
Um caminho importante que precisa dessa consolidação é o da Comunidade de Estados da América Latina e do Caribe (CELAC). Na ausência do impulso do Brasil ao processo de integração, México e Argentina tornaram-se duas referências importantes pelo seu volume e história. O México, que ocupa a presidência da CELAC desde o início de 2020 e cuja liderança foi estendida até 2021, aparece fortemente como um promotor desse espaço. A chegada ao poder do Movimento ao Socialismo (MAS) na Bolívia também pode fortalecê-lo, depois que este país esteve ausente do corpo durante o governo golpista de Jeanine Añez.
A recomposição da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) é um desafio que está dando seus primeiros passos. A ausência do Brasil, embora tire peso dessa organização, dá a ela características diferentes, pois sua liderança será mais equilibrada. O Equador, que já atuou neste espaço mesmo sendo sua sede, pode contribuir para esse processo de recuperação.
Outro elemento fundamental para o processo de integração latino-americana e caribenha é a relação com a Venezuela e Cuba. Com qualquer uma das duas versões de vitória da esquerda, eles podem significar um apoio mais claro para a Venezuela e Cuba. Dois países irmãos que a pressão dos EUA tenta isolar e desacreditar. O correísmo, apesar das suas contradições internas, sempre teve e mantém uma ativa política de solidariedade, principalmente com a Venezuela e também com Cuba. O movimento indígena equatoriano tem relações históricas de solidariedade com esses dois governos que sempre apoiaram principalmente a formação de seus líderes.
Existem contribuições específicas que cada uma dessas versões pode fazer. Por parte de um possível governo de Arauz, existe a expectativa quanto à capacidade de enfrentar o cenário financeiro. Isso é para o país e para trabalhar novamente nos projetos financeiros regionais. Arauz tem atuado ativamente na organização do Banco do Sul e sua dedicação a questões como fuga de capitais e dívida externa pode contribuir para as questões nucleares dos problemas regionais.
Da parte de Pérez e da contribuição de Pachakutik, a possibilidade de levantar com força duas questões fundamentais para repensar o modelo popular implantado, como a questão indígena e a problemática ecológica, ambas frente ao modelo neoextrativista que os governos populares não só não conseguiram superar, mas, em geral, o aprofundaram.
Para finalizar
O Equador não apenas define seu futuro político imediato, mas também pode significar um impulso para a mudança política regional e a renovação do caminho, tantas vezes interrompido e prejudicado, da união latino-americana e caribenha. A vitalidade de um e do outro precisa uma da outra. Os caminhos muito interessantes percorridos neste país, e principalmente aqueles que foram inspirados em seus movimentos indígenas, podem trazer o impulso criativo que a realização política das lutas populares sempre precisa. Como disse José Carlos Mariátegui, o caminho para o socialismo indo-americano é uma criação heróica. Existe a possibilidade de que este processo eleitoral equatoriano resulte em uma contribuição nesse sentido.
Foto: O então prefeito de Azuay e candidato à presidência pelo Movimento pela Unidade Plurinacional Pachakutik, Yaku Pérez, apresentou um novo pedido de Consulta Popular perante o Tribunal Constitucional. Foto de agosto de 2020. Crédito: Divulgação
Felix Pablo Friggeri é Professor Adjunto na UNILA (Universidade Federal da Integração Latino-americana, Foz do Iguaçu, PR) na Área de Relações Internacionais e Integração desde 2012 – Diretor do Instituto Latino-americano de Economia, Sociedade e Política da Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA) desde 2013.- Possui doutorado em Ciencias Sociales – Universidad Nacional de Entre Ríos (2011). Posdoutorado en Marx – Centro de Estudios Avanzados/Universidad Nacional de Córdoba (2011) – Foi professor adjunto – Universidad Autónoma de Entre Ríos.
[1] Clima Social (2020). Elecciones domingo 7 de febrero de 2021. Encuesta Ómnibus III. Del 12 al 15 diciembre de 2020. Disponível em: https://clima.social/wp-content/uploads/2020/12/Encuesta-Ómnibus-III-PÚBLICA_Dic20_Clima-Social.pdf
[2] CELAG (2020). Encuesta: Panorama Político y Social Ecuador. Diciembre 2020. Disponível em: https://www.celag.org/encuesta-ecuador-diciembre-2020/
[3] A Ecuarunari (Equador Runakunapak Rikcharimuy) é a sigla que identifica a confederação de movimentos indígenas da Serra do Equador. Foi e é uma das organizações-chave para o crescimento da liderança indígena no país.
[4] Alguns meios de comunicação o questionam ou tentam ridicularizá-lo em sua auto-identificação como indígena, destacando, por exemplo, que mudou seu nome há pouco tempo (de Carlos Randulfo para Yaku Pacha), que pratica ioga diariamente e que tinha uma relação divulgada com uma acadêmica e militante franco-brasileira.
[5] A CONAIE é a Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador e agrupa as três confederações regionais: a do litoral, a do altiplano e a do Amazonas. É a maior organização guarda-chuva do Movimento Indígena no país.