Indicador do funcionamento do capitalismo nos últimos trinta anos e das escolhas irresponsáveis dos governos da América Latina
“Um mal que espalha terror,
Mal que o céu em sua fúria
Inventa para punir os crimes da terra
…
Nem todos morreram,
mas todos foram atingidos”
Jean de la Fontaine – Os animais doentes de peste.
O Covid-19 está provocando uma crise de proporções incomparáveis no mundo: a produção cai em todas as partes, o desemprego aumenta e a renda diminui. Depois de atingir os países do extremo oriente, em seguida a Europa e, tardiamente, os Estados Unidos, ela chega agora na América Latina e amanhã na África.
Os governos, em todas as partes, intervêm fortemente modificando os princípios sagrados aos quais eles se agarravam anteriormente. E, dessa forma, ampliam o déficit público, assume o controle parcial do desemprego através do Estado, levam a cabo as nacionalizações possíveis dentro dos setores considerados estratégicos…. Amanhã, provavelmente, esses governos que, ainda ontem, eram adeptos de uma intervenção cada vez menor do Estado na economia e de um alinhamento dos serviços públicos com as regras de mercado, aceitarão infringir essas regras e pensarão em como redefinir as fronteiras entre o mercado e o Estado a fim de obter um mínimo saudável de soberania. Vejamos, de maneira mais ampla, indústria, se sermos capazes de lembrá-los desses compromissos.
O discurso intervencionista não predomina na América Latina, principalmente no México onde o discurso oficial consiste em privilegiar despesas sociais, mas sem liberar recursos para isso; ou no Brasil, onde as decisões do ministro da saúde são frequentemente obstaculizadas pelo presidente da República.
Nós somos confrontados com uma evidente crise da globalização. A pandemia é um indicador do não-funcionamento do capitalismo desenfreado; em que os Estados cedem cada vez mais espaço ao mercado e as firmas multinacionais; e, novamente, o retorno dos Estados/Nações ganha importância.
I. A globalização não será mais aquela que era
1/ Os termos “ganhador” e “perdedor” são frequentemente utilizados na literatura econômica. Os países que “ganham” são os que experimentam um aumento da sua participação no comércio mundial e os que “perdem” o inverso. Alguns países, sobretudo os asiáticos, aumentaram a sua participação relativa no produto interno bruto (PIB) mundial entre 1980 e 2008. Os países da América Latina, ao contrário, viram sua participação diminuir muitos pontos. Considerando apenas o comercio mundial de produtos manufaturados, em 2007, somente o México se encontra entre os dez países que mais exportaram mundialmente (na 10ª posição), o Brasil se encontra na 30ª, segundo a OMC.
É simplista considerar os países poderosos ganhadores e os demais perdedores. Limitar os países às nações não é, em si, pertinente. A globalização é acompanhada da fragmentação territorial dentro dos Estados/Nações. Ela tem consequências negativas inclusive nas nações que aparentemente ganham e, consequentemente, nas suas diferentes camadas sociais. As nações são, de fato, compostas de alguns territórios que concentram os ganhos decorrentes da globalização e de outros onde dominam as perdas. Nos territórios que ganham com a globalização a proporção dos que experimentam uma evolução favorável de seus salários é mais importante que nos territórios que perdem, onde se concentram pessoas de baixa e média qualificação, salários baixos, ameaças ao emprego e acentuada precarização do trabalho.
Com a globalização comercial a divisão internacional do trabalho mudou profundamente. Alguns países do sul da Ásia se tornaram as oficinas do mundo, outros, da América Latina, se especializaram novamente na exploração de seus recursos naturais, exceto o México e alguns países da América Central1. Eles se reprimarizaram. As exportações de produtos manufaturados compunham 51% do conjunto das exportações de 2006 no Brasil – 70% as importações –, o restante das exportações era composto de produtos agrícolas e matérias primas (minérios e combustíveis). Um pouco mais de dez anos depois, em 2017, as exportações de produtos manufaturados totalizavam apenas 36% – 74% as importações – (fonte: IEDI, nº 892, 2018). A evolução é, portanto, rápida e, de fato, começa no final dos anos 1990. Ao contrário, a nível mundial as exportações de produtos manufaturados eram de 70% em relação ao conjunto de exportações em 2017, ao que é necessário acrescentar os 12% correspondente à categoria “outros produtos manufaturados”, segundo a OMC. Por fim, 80% das exportações mundiais são realizadas por dez países, entre os quais se encontra, no fim da fila, o México.
Nos anos 1990 e, sobretudo, 2000, viu-se uma modificação da divisão internacional do trabalho na indústria mundial graças ao desenvolvimento da internet, a diminuição do custo de transporte e a capacidade de certos países asiáticos de adaptar, muito rapidamente, sua oferta às bruscas mudanças na demanda mundial.
Dessa forma, passou-se de uma relação entre dois atores a uma relação entre um ator, que dá ordens, e “n” outros atores; situados em diferentes países, principalmente no Sul, mas também no Norte. O que se traduz num boom da cadeia internacional de valor.
O comércio Sul-Sul de bens industriais se desenvolveu. Entretanto, os países latino-americanos, em geral, participaram pouco desse boom da cadeia internacional de valor. Eles continuam relativamente fechados; exceto, em certa medida, o México e alguns países da América Central. Contudo, em seu conjunto os países latino-americanos tiveram a vantagem de se abrir ao exterior sem o peso da restrição externa como no passado. Isso, graças aos ganhos advindos da exportação de matérias primas, principalmente para a China, o que permitiu que eles importassem mais bens manufaturados. Essa fase parece ter acabado e as restrições externas reaparecido com força nas economias que se tornaram menos industriais e mais vulneráveis a evolução do volume de exportações e aos preços das matérias primas.2
Enquanto os países da América Latina continuam presos numa conjuntura caracterizada por uma densidade industrial per capita baixa e uma parcela da indústria (valor agregado) no PIB igualmente baixa; os países asiáticos avançam apostando numa industrialização baseada cada vez mais em produtos de alta-tecnologia e na exportação de bens complexos.
Com a abertura crescente, o emprego e o trabalho são submetidos a restrições externas progressivamente mais elevadas. O emprego tende a se precarizar e, com o avanço da internet, a “uberização” das atividades se torna cada vez mais importante, salvo se a vontade política de proteger os assalariados se afirma. Esse foi o caso de alguns países da América Latina graça a chegada ao poder de governos progressistas nos anos 2000: a informalidade caiu; os salários reais aumentaram mais rapidamente que a produtividade do trabalho e a proteção social se desenvolveu, em detrimento, é verdade, da competitividade; as reformas estruturais necessárias não foram realizadas; enfim, os governos progressistas pararam no meio do caminho. Agora, com o retorno da direita, algumas conquistas são colocadas em questão. O fato é que a precarização do trabalho cresce e as desigualdades de renda aumentam. Por quanto tempo essa situação será sustentável do ponto de vista político?
A partir de 2008, a globalização enfraquece; o crescimento das exportações não ultrapassa mais, largamente, o crescimento do PIB mundial, ele é por vezes inferior. Depois de 2008 a globalização parece perder o fôlego. Medidas protecionistas passam a se multiplicar a partir de 2012. Com a chegada de Trump à presidência dos Estados Unidos (2017), elas se tornam ainda mais importantes e com uma tendência a se generalizar.
A globalização parece estar cedendo espaço a desglobalização por duas razões: uma de ordem tecnológica: é possível realocar certas atividades produtivas nos países avançados graças ao avanço da revolução digital, a mesma revolução que anteriormente permitiu o deslocar essas atividades para outros países. A outra razão diz respeito aos efeitos deletérios da globalização sobre a coesão social: aumento da desigualdade de renda, diminuição dos postos de trabalho e redução da mobilidade, o que se traduz frequentemente num protecionismo cada vez mais acentuado.
2/ A ironia da história é que a crise da globalização chegou onde nenhum economista, sociólogo ou político tinha previsto. Nenhum. Mesmo que agora alguns tentem fazer crer o contrário. Certamente, as críticas à globalização; quer tenham vindo da direita, geralmente extrema, ou da esquerda; foram numerosas. Alguns, apresentando sua concepção de nação, preconizaram um retorno ao protecionismo, por vezes, comparável a uma autarquia. Outros, mais de esquerda e de matiz ecológico, reivindicavam uma globalização alternativa, renunciado as fronteiras e buscando a cooperação entre os Estados para impor normas éticas (como o trabalho digno) e ambientais bem mais rigorosas. Contudo, ninguém poderia pensar que as novas formas assumidas pela globalização, ou seja, o boom da cadeia de valor e da produção, pudessem fragilizar diferentes economias a ponto de torná-las extremamente vulneráveis.
Essa globalização não controlada, fruto de uma liberdade pactuada de explorar mão de obra barata e de destruir o meio ambiente, produziu o caos. Os teóricos do caos mostraram que o bater das asas de uma borboleta pode causar um colapso em outro lugar da terra… Essa tese, que é, por exemplo, aplicada às finanças, ainda não foi aplicada a globalização. Foi suficiente uma pandemia para que, num piscar de olhos, o sistema econômico atual desmoronasse através de efeitos em cadeia que alimentam uns aos outros. A incapacidade de fornecer produtos a uma cadeia internacional de valor, distribuídos a outros países graças ao baixo custo mão de obra, leva, nesses outros países, a uma parada da produção de produtos mais ou menos importantes, a um aumento do desemprego e, consequentemente, uma queda da demanda, resultando em depressão econômica. Esse bater de asas da borboleta revela, sobretudo, que a desindustrialização; a contraparte dessa globalização, e a perda considerável de soberania, clara e principalmente da indústria farmacêutica; não se traduz somente em custos financeiros, mas acima de tudo em um monte de mortos.
II. Punição dupla para os pobres: a crise e a pandemia que reforça a crise
1/ Os países latino americanos são diferentes uns dos outros. Alguns têm uma população grande (o Brasil tem 207 milhões de habitantes, o México 132 milhões), já outros, como o Uruguai ou os países da América Central, são relativamente pouco populosos. O PIB per capita é elevado no Brasil, na Argentina, no México (entre um quarto e um terço daquele dos Estados Unidos), etc., um pouco menor na Colômbia e no Peru, muito menor em outros. Certos países são ricos em recursos naturais, outros não. Nem todas as populações têm a mesma origem, no cone sul da América Latina predominam as de origem europeia, nos países andinos, na América Central e no México as de origem indígena, no Brasil e no Caribe, são maioria as de origem africana. Suas histórias não são exatamente as mesmas ao longo do século XX, porém os mais importantes entre eles tiveram experiencias parecidas a nível político (Perón na Argentina, Vargas no Brasil e Cardenas no México) e econômico (regime de crescimento baseado no mercado interno, chamado de substituição de importações).
De um ponto de vista estrutural, a maior parte dos países latino-americanos têm vários pontos em comum, os quais constituem as oito chagas da América Latina: 1) grandes desigualdades patrimoniais e de renda; 2) muitos empregos informais e alta taxa de pobreza; 3) reprimarização da economia; 4) séria deterioração do meio ambiente; 5) abertura financeira maior que a abertura comercial; 6) desindustrialização precoce; 7) tendência a estagnação econômica; 8) alto nível de violência, sobretudo no México, no Brasil, em El Salvador, em Honduras e na Guatemala.
Quanto mais baixa é a taxa de crescimento do PIB, menor a mobilidade social, que diminui mais ainda se as despesas com educação continuam insuficientes. Com um tecido industrial frágil, os países latino-americanos poderão mostrar resiliência diante da pandemia de covid-19 e dos seus pesados efeitos econômicos e sociais e, isso, sobre que condições?
A crise tem várias dimensões. Ela não atingiu um “corpo saudável” capaz de se recuperar prontamente após a pandemia passar. Na verdade, 1) quase todos os países da região e, particularmente, os maiores e mais poderosos deles – Argentina, Brasil e México – sofrerem de uma tendência à estagnação das suas taxas de crescimento do PIB.3 Essa tendência à estagnação de longo prazo tem várias causas: acentuada desigualdade de renda e patrimonial, taxas de investimento fracas devido ao comportamento rentista que cada vez mais se manifesta através uma financeirização excessiva, fuga de capitais, consumo ostensivo, desindustrialização mais ou menos forte e despesas com pesquisa e desenvolvimento “reduzida a aquisições” (entre 0,5% e 1,1% do PIB de acordo com o país, quando na França, por exemplo, essas despesas são de 2,4% do PIB e na Coréia do Sul 4,5% do PIB). 2) Já há alguns anos Argentina e Venezuela experimentam uma crise econômica profunda acompanhada de um processo inflacionários mais ou menos incontrolável, sobretudo na Venezuela. O Brasil, após uma grave crise, equivalente a dos anos 1930, apresenta uma incapacidade de se recuperar. O México entrou em recessão. Outros países experimentam uma desaceleração das suas atividades econômicas (Colômbia e etc.). 3) Por fim, o retorno da restrição externa e a diminuição do fluxo de matérias primas e de vendas se acentuou com o alastramento da crise gerada pela pandemia a nível mundial e com a forte queda da demanda dos países asiáticos, grandes importadores de matérias primas.
2/ Os países da América Latina vivem várias crises ao mesmo tempo, as quais nutrem umas às outras. Uma crise profunda. Ela é estrutural uma vez que põem em questão os modelos de expansão do capitalismo nessas últimas décadas. Na América Latina, a crise ligada à pandemia se somam as outras crises latentes ou manifestas citadas acima. Essa mistura é ainda mais explosiva, pois vários governos parecem não ter medido o tamanho do perigo ao não adotarem políticas econômicas anticíclicas no auge do evento, chegando mesmo a minimizar o perigo (um amuleto poderia ser a curar para essa pandemia, disse o presidente do México; ela é uma gripezinha para o presidente do Brasil, que pediu aos seus próprios ministros que não implementassem medidas que pudessem derrubar a economia).
As políticas para evitar o contágio ficam, em geral, bem aquém do necessário. São de dois tipos: 1) Medidas preventivas, higienização das mãos e confinamento (salvo pessoas que trabalham em setores ligados a saúde, alimentação e transporte); 2) Medidas de política econômica contracíclica para frear o avanço da crise e, posteriormente, recuperar a economia. O primeiro tipo de políticas encontra dificuldade de ser aplicado nas localidades que reúnem uma maior quantidade de pessoas pobres. Nos casos extremos, as casas não têm água potável, nem mesmo corrente, logo, é difícil lavar as mãos regularmente e a densidade populacional de nesses locais costuma ser alta, o que dificulta a aplicação das medidas preventivas. Além disso, como a maior parte das pessoas que moram nessas regiões têm empregos informais e não são protegidas pelo sistema de sanitário, o confinamento se reduz a escolher entre a cruz ou espada, ou seja, entre respeitar o confinamento e morrer de fome ou ir trabalhar e aumentar consideravelmente a possibilidade de se contaminar e contaminar a vizinhança. A tudo isso se soma a vontade de certos políticos – no Brasil de forma caricata –, mas também de certas seitas evangélicas cuja influência é particularmente forte entre os mais pobres e menos educados, de se opor obstinadamente ao confinamento imposto pelos governos estaduais (no caso das federações) ou pelas autoridades municipais com o pretexto de que a pandemia não é nada além de uma “gripezinha” e que se o confinamento for aplicado levará a uma crise irreparável, produzindo um número de mortes ainda mais elevado que a pandemia.4
As políticas contracíclicas são, geralmente, pouco importantes – exceto na Argentina em plena crise econômica5 – dadas as dificuldades financeiras (menos receitas orçamentárias devido à crise pré-pandemia latente, a redução relativa do valor das exportações de matérias primas, a fuga de capital e a fraude fiscal), ao desejo de reduzir encargos sociais e impostos, ou mesmo suprimi-los6, e a falta de vontade política de certos países de favorecer um aumento da dívida pública devido ao aumento das despesas sem as receitas correspondentes. Essa é a posição ortodoxa – antiquada – do presidente mexicano que embora deseje aumentar as despesas sociais não concorda em aumentar o déficit fiscal, o qual aumentará, de qualquer maneira, com o avanço da crise econômica. Em geral a ajuda aos mais pobres é fraca (pouco mais de US$ 100,00 por mês no Brasil, por exemplo), assim como a ajuda às empresas (o ministro da economia do Brasil emitiu uma medida que permitiria manter os funcionários empregados por quatro meses sem salário e sem trabalho, porém, diante dos protestos políticos, reviu a media sob o pretexto de erro… administrativo). Mesmo essas medidas bastante tímidas despertaram algumas vezes a ira dos presidentes; é, novamente, o caso do presidente brasileiro que demitiu seu ministro da saúde por gastos irresponsáveis.
Quase todos os países latino-americanos pagam um preço alto por suas despesas com saúde serem tão baixas em temos de porcentagem do PIB. O conjunto das despesas com saúde pública-privada na América Latina representa 8,5% do PIB, com grandes disparidades tanto entre os países e como dentro deles. Na Argentina, no Brasil, na Colômbia, no Chile e no Uruguai elas são mais elevadas (entre 9 e 10%). No Equador, na Bolívia, na Venezuela e no México elas são mais baixas (entre 3 e 5,5%) segundo a OCDE. Só para recordar, as despesas com saúde pública-privada foram em média de 12,5%, com grandes disparidades, em 2018: 16,9% do PIB nos Estados Unidos, 11,2% na Alemanha e na França, 8,9% no Chile e 5,5% no México. Os sistemas de saúde pública são, na maioria das vezes, fragmentados de acordo com as corporações profissionais (empregados pelo setor de petróleo, funcionários públicos, etc.) e também entre União e estados federados; o que contribui para a ineficácia do sistema e permite que a corrupção se desenvolva. Quando se compara a quantidade de leitos de tratamento-intensivo por cem mil habitantes e a quantidade de respiradores, em 2020, pode-se observar que o Brasil – com fortes disparidades regionais – disponibiliza aos seus doentes um terço de leitos a menos que os Estados Unidos e 3/5 a menos de respiradores. A Argentina é um pouco mais bem dotada de leitos de tratamento-intensivo, o México está bem atrás e o Peru ainda mais longe. É o que pode ser visto no gráfico abaixo (The Econmist, 8 de abril de 2020).7 Se acrescentamos que os 25% mais ricos da população – ou seja, os ricos, a classe média-alta e a classe média – têm acesso sobretudo ao sistema de saúde privado e que este último possui aproximadamente a metade dos leitos de tratamento-intensivo e de respiradores, é fácil compreender que a situação sanitária da maior parte da população é extremamente vulnerável.
Conclusão
A crise gerada pela pandemia é impulsionada pela globalização. Ela se insere em um tecido econômico extremamente fragilizado. É um indicador de todas as disfunções do capitalismo, particularmente na América Latina. E suas primeiras vítimas são os mais pobres…
A informalidade (70% na Bolívia, 63% no Peru, 47% no Brasil) e a pobreza continuam altas na América Latina. Na Argentina, a pobreza atinge 50% dos informais. Nos últimos anos, ambas têm apresentado uma tendência a aumentar novamente, sobretudo no Brasil e na Argentina. Como observaram vários sociólogos e médicos, os doentes pobres decidirão se irão morrer em casa ou “na porta dos hospitais, segundo o professor de medicina Miguel Straougi da USP” (O Globo, 23 de março).
Existe uma relação entre pobreza e obesidade, devido, na maior parte das vezes, ao consumo de junk food. Os pobres no México, nos Estados Unidos, na Grã Bretanha, um pouco menos no Brasil e sensivelmente menos na argentina são, geralmente, mais obesos. Existe uma relação elevada entre obesidade, diabetes, hipertensão e riscos cardiovasculares. Portanto, a pandemia afeta principalmente os pobres e os mais vulneráveis, pois o acesso desses grupos aos cuidados de saúde é mais limitado.
Nos países avançados é sobretudo a população idosa que tem maior risco de sucumbir a pandemia, pois sofre mais que os jovens de diabetes, hipertensão etc. Na América Latina, entretanto, são os pobres e os pobres relativamente jovens os mais afetados. No final de março, um quarto dos pacientes hospitalizados no Rio de Janeiro por causa da pandemia tinham menos de 40 anos.
Muitas vezes é impossível fazer com que o confinamento seja respeitado nas favelas, por razões obvias: a superpopulação torna difícil o distanciamento social, as condições sanitárias extremamente precárias dificultam muito lavar as mãos constantemente e, principalmente, a combinação de informalidade e pobreza fazem com que o direito a ficar em casa se torne algo abstrato, uma escolha entre trabalhar ou morrer de fome. Contudo, o conjunto dessas medidas é necessário, porém para ser minimamente eficaz ele exige uma generosidade maior do Estado, que precisa distribuir renda aos pobres de forma mais consciente e realizar teste para isolar as pessoas contaminadas de suas famílias e do seu entorno.
Quando os governos subestimam o perigo e não adotam políticas de prevenção como o distanciamento social e o confinamento; quando não tomam a decisão de destinar aos mais pobres uma renda mínima ou o fazem de maneira insuficiente; quando os presidentes se opõem aos seus ministros e se empenham em manter o nível de atividade econômica, zombando daqueles que temem a crise sanitária, já que a verdadeira crise seria a econômica; quando seitas religiosas, cada vez mais influentes, dizem que pela oração coletiva será possível expulsar Satanás, o cavalo de troia da pandemia… então, só podemos ser pessimistas. É uma decisão política que designa como criminosos aqueles que se recusam a enfrentar essa pandemia e defendem a volta ao trabalho seja qual for o custo humano, sem nem se quer esperar que a pandemia arrefeça, que o percentual de imunizados atinja um mínimo. É um momento que, por sua escala, pode ter consequências desastrosas sobre certas categorias da população, que pode ser explorado politicamente por partidos políticos e por igrejas, seja através do sectarismo, seja através do populismo, abrindo caminho aos governos de estrema direita. Mas pode também ser uma oportunidade para construir uma sociedade que funcione em outros moldes, além da busca exclusiva do lucro.
É uma crise que pede uma renovação completa da maneira de pensar a economia e a política. Hoje, a solidariedade tem primazia, embora, infelizmente, não na América Latina, nos Estados Unidos e em alguns outros países. Amanhã, quando as condições sanitárias permitirem, será a hora de voltar ao trabalho; espero que a solidariedade se mantenha e que o modelo econômico não consista em uma retomada do anterior, se não a história se repetira como tragédia…
Pierre Salama é professor emérito Universidade de Paris XIII, CEPN-CNRS UMR 7234, último livro, 2014, Des pays toujours émergeants?, edição La documentation française, coleção : Doc de bolso, aberto ao debate, sob impressão, com Mylène Gaulard, 2019, Economie politique de l´émergence, l´Amérique latine, coleção referência, edição La découverte.
Tradução: Bruno Roberto Dammski
Foto: Alan White/ Fotos Públicas
1 O México se especializou na exportação de produtos manufaturados destinados, essencialmente, aos Estados Unidos e ao Canadá. Entretanto, diferentes de numerosos países asiáticos, o México e os países da América Central se limitaram essencialmente a atividades de montagem e, com exceção de alguns setores como a indústria automobilística onde o número de fornecedores aumentou. Isso graças, não há uma política industrial, mas sim a vinda de empresas transnacionais. A abertura crescente não teve efeitos positivos sobre o crescimento do México, os efeitos multiplicadores sobre o PIB foram fracos; o que explica que dentre os grandes países latino-americanos tenha sido aquele cujo crescimento foi o mais fraco nestes últimos vinte e cinco anos. A complexidade de seu tecido industrial é igualmente fraca ou aparente e enganadora.
2 Ver o artigo da revista Recherches Internationales, n° 115, 20020, dirigida por Posado Th, Rogalski M., et Salama P., intitulada L’Amérique latine en bascule avec les écrits de Gaudichaud F., Destremau B., Gaulard M., Salama P., Svampa M., Chaponnière JR. e Ventura Ch. Ver também o último livro de Gaulard M et Salama P. , 2020, L’économie de l’Amérique latine, ed. Breal (não disponível por causa da pandemia, as livrarias estão fechadas…), para os aspectos mais políticos, ver Gaudichaud F., Modonesi M., Weber JR, 2020, Fin de partie, Amérique latine, les expériences progressistes dans l’impasse 1998-2019, ed. Syllepse.
3 Um exemplo: a taxa de crescimento do PIB per capita mexicana foi de apenas 0,8% por ano em média entre 1983 e 2017, bem inferior à dos Estados Unidos no mesmo período.
4 Esse último argumento reapareceu nos países avançados, mas após semanas de confinamento. Ele também foi apresentado por aqueles que consideravam que a imunização de massa (60% da população) passava pelo contágio, esquecendo o número considerável de mortes que ele provocaria. Essa é a razão pela qual a Grã Bretanha, os países baixos e, particularmente, os Estados Unidos abandonaram tal ideia.
5 O explica a forte alta da popularidade do presidente Fernandez, recentemente eleito, no final de março (74% de apoio) e a queda da do presidente mexicano, que ainda permanece elevada (58,4%) e superior àquela do presidente brasileiro (que está em tono de 30%, o que corresponde a sua base evangélica e a classe média alta – conquistas desafiadas por seu posicionamento no que se refere a pandemia).
6 Ver um artigo importante publicado no Financial Times, dia 13 de abril, intitulado: Four Mexico states call for new tax deal de López Obrador.
7 Os países que têm mais de 10 leitos hospitalares por mil habitantes (aqui não se trata de leitos de tratamento-intensivo, também chamados de leitos de reanimação) têm as taxas de mortalidade provocadas pela pandemia mais baixas, Hong Kong, por exemplo, tem 14,5 leitos por mil habitantes e o Japão 10. Esse não é nem de longe o caso do Brasil que possui 1,95 leitos por mil habitantes. Nos últimos dez anos o Brasil eliminou entre 40.000 e 50.000 leitos, por falta de recursos para mantê-los (O Globo, 23 de março, ver também Financial Times, 13 de abril). Para dados mais completos, veja Barceno A., Coyntura, escenarios y proyecciones hasta 2030 ante la presente crisis de covid -19, 3 de abril de 2020, 1-65, CEPAL.