Vale a pena abdicar do controle estatal de um setor tão estratégico quanto a produção e distribuição de energia? O projeto que permite a venda da estatal federal do setor coloca este tema em um novo patamar. A Eletrobras é uma holding de capital aberto, que já conta com a participação acionária de investidores privados. Atualmente, é controlada pelo governo federal e responde por 30% da capacidade nacional de energia elétrica e 44% da sua distribuição (Relatório de Administração e Demonstrações Financeiras de 2021). É uma empresa lucrativa, eficiente operacionalmente e que gera 96% da sua energia a partir de fontes renováveis.
A proposta para a sua criação, em 1954, se deu exatamente em função das graves e estruturais deficiências do setor privado em garantir investimentos e a produção de energia necessária para viabilizar a demanda crescente de um país que se urbanizava e industrializava em ritmo acelerado. A partir de 1962, com seu estabelecimento oficial, a Eletrobras se expandiu e se diversificou, tornando-se o eixo central das subsequentes políticas nacionais no setor. A despeito das dificuldades associadas à instabilidade macroeconômica e aos problemas de governança, dificilmente o país teria logrado atingir a sétima posição global em termos de capacidade instalada de energia elétrica, sendo o terceiro maior produtor de eletricidade de origem hidroelétrica (ver – EPE, Anuário Estatístico da Energia Elétrica 2020), sem a capacidade de planejamento, inovação e gestão da Eletrobras.
A teoria econômica convencional explica a presença ativa do Estado na economia para a provisão de bens públicos – segurança, estabilidade macroeconômica etc. – e a correção de “falhas de mercado”. Assim, por exemplo, quando há monopólios naturais, a solução concorrencial é menos eficiente. Há, nestes casos, custos muito elevados para ampliar o número de empresas que ofertam determinados bens e serviços, dados os elevados investimentos em infraestruturas físicas, como no saneamento, abastecimento de água e energia, serviços de metrôs e trens etc. Nestas condições, para se evitar o abuso do poder monopolistas, o Estado deve atuar por meio da regulação ou da provisão direta do bem ou serviço em tela por meio de entes estatais. O mesmo ocorre diante de externalidades negativas (a poluição, por exemplo) ou positivas (como na produção de conhecimento, treinamento de mão de obra etc.).
Para além da sabedoria convencional, há razões políticas e estratégicas que fundamentam a existência de estatais, tais como a garantia do uso de determinados recursos naturais (minérios, petróleo, água etc.), o desenvolvimento de novas capacidades tecnológicas ou produtivas, a maior inserção internacional das economias, a garantia de acesso de serviços essenciais ao conjunto da população e a segurança nacional. Ao longo da história, foram recorrentes os episódios em que os investidores privados não garantiram a provisão adequada de infraestrutura e serviços de utilidade pública, os quais demandavam volumes elevados de investimentos, riscos operacionais e financeiros muito acima das alternativas e apresentavam, muitas vezes, retornos financeiros insuficientes. O critério da maximização do valor do acionista nem sempre convergiu com o interesse público em áreas complexas e vitais, como no caso da energia, em suas múltiplas modalidades de geração.
Independentemente das razões, há evidências de que, nos países avançados, as estatais foram parte central na recuperação econômica no pós-segunda Guerra Mundial (e mesmo antes). Da mesma forma, têm sido importantes nas estratégias nacionais de desenvolvimento dos países periféricos. Por decorrência, em 1980, as estatais representavam, em média, 8% da produção nas economias avançadas e 15% nos países em desenvolvimento (Monitor Fiscal do FMI, abril de 2020, p. 47). Tais proporções caíram com o advento das privatizações. Entretanto, no século XXI, as estatais ganharam um novo fôlego, dado o sucesso chinês e as recorrentes crises das economias ocidentais. O FMI estima que, atualmente, as estatais respondem por 55% dos investimentos em infraestrutura nos países emergentes e em desenvolvimento. Seus ativos atingem US$ 45 trilhões o que equivale a 20% do ativos totais das grandes empresas com atuação global. Há duas décadas, essa participação relativa era de 5%.
Utilizando o critério de definição das estatais como sendo a participação de, ao menos, 20% no capital das empresas, o FMI identificou estatais não-financeiras estratégicas em vários países avançados, tais como: Alemanha (Volkswagen, Deutsche Telekom, Deutsche Post, Deutsche Bahn), França (Peugeot, Renault, Electricité de France, ENGIE, Orange), Itália (Enel S.p.A.; Eni S.p.A), Japão (Nippon Telegraph and Telephone), Noruega (Statoil ASA), Coreia do Sul (Korea Electric Power, Posco) e Europa (Airbus). Dentre os países emergentes, predominam as estatais chinesas (China Petrochemical, China National Petroleum, State Grid China, China State Construction Engineering, China Railway, China National Offshore Oil, dentre outras) e empresas de energia e recursos naturais de países como Brasil, Rússia, México, Tailândia, Malásia e Arábia Saudita.
O Banco Mundial indicou que as estatais seguem fundamentais para setores como geração de energia e finanças em países emergentes e em desenvolvimento, onde 90% das reservas e 55% da produção de óleo e gás são controlados por governos. Na composição dos índices setoriais do Morgan Stanley Capital International para países emergentes, elas respondem por 56% do segmento de utilidades públicas e 39% no setor de serviços financeiros. Um levantamento da OCDE, em 2018, indicava que, em média, as empresas estatais eram responsáveis por 40% da geração de energia em seus países membros. Já a International Energy Agency (IAE) estimava que, em 2019, os governos – diretamente ou por meio de empresas estatais – responderam por 36% dos investimentos totais no setor energético.
O FMI (Monitor Fiscal, abril de 2020) calcula que 45% dos investimentos globais em todos os setores de infraestrutura provem de governos e estatais. Para o Fundo, as estatais tornaram-se importantes no mercado global de dívida corporativa e, em muitos casos, aproveitaram o ambiente de elevada liquidez e juros baixos para ampliar investimentos e internacionalizar suas operações. Desde 2008, entre 5% e 15% das aquisições internacionais de ativos produtivos se originam de empresas controladas por governos.
Com a pandemia da Covid 19, as estatais e o investimentos público ganharam importância para reanimar o setor privado. No Monitor Fiscal de outubro de 2020, a avalição empírica do Fundo sugeriu que, na média dos países avançados, emergentes e em desenvolvimento, para cada 1% de incremento nos investimentos públicos, gera-se 10% de novas inversões privadas e 1,2% adicional de emprego. Para cada USD 1 milhão investidos, poder-se-ia gerar de 2 a 8 novos postos de trabalho em setores tradicionais de infraestrutura; e de 5 a 14 novos postos em áreas como energias renováveis, construção de edificações mais eficientes e ambientalmente sustentáveis etc.O Brasil está na contramão das tendências globais?
No dia 17 de junho, o Senado aprovou a Medida Provisória 1.031/2021 que, além de autorizar a desestatização da Eletrobras, introduziu reservas de mercado que podem gerar custos adicionais estimados de R$ 84 bilhões para o conjunto da sociedade. Os técnicos do governo sugerem que a desestatização da Eletrobras poderá reduzir as tarifas ao consumidor final, ampliar empregos e investimentos. Especialistas e entidades setoriais criticam o irrealismo destas projeções, e lembram que a Eletrobras foi criada exatamente para enfrentar os problemas de desabastecimento de energia gerados pelo setor privado que, à época, predominava na geração e distribuição. No passado, os benefícios dos processos de privatização foram sobrestimados, e seus custos, subestimados.
Na onda de privatizações entre os dos anos 1990 e 2000, houve a transferência de ativos públicos e de mercados consumidores em diversos setores, tais como transporte ferroviário e rodoviário, comunicações, energia e serviços financeiros. Em alguns casos, problemas como investimentos insuficientes, baixa qualidade dos serviços prestados e tarifas excessivamente caras diante do poder aquisitivo médio da população persistiram. Ademais, as novas empresas controladoras, usualmente holdings de capital aberto e formalmente privadas, eram, de fato controladas por empresas estatais de outros países. No setor de energia, alguns exemplos ilustram essa realidade: a Engie Brasil S. A. é controlada pela estatal francesa Engie; a EdP Energias do Brasil é controlada pela congênere portuguesa que, por sua vez, tem como acionista majoritária a China Three Gorges, estatal chinesa; a CPFL, anteriormente controlada pelo governo paulista, foi privatizada e adquirida por uma das maiores estatais chinesas deste segmento, a State Grid Corporation of China (SGCC); e a ISA CTEEP, que incorporou ativos da estatal paulista Companhia Energética de São Paulo (CESP), tem como acionista majoritária a estatal colombiana ISA. Desta forma, não se pode descartar que isso também ocorra no caso de eventual desestatização da Eletrobras. Vale dizer, a privatização nada mais seria do que uma nova estatização, só que sem as vantagens do controle nacional dos ativos produtivos e recursos naturais, o que se torna ainda mais crítico no contexto das mudanças climáticas.
Desde 2000, ampliou-se consideravelmente a reestatização de serviços de utilidade pública, locais ou nacionais, em áreas sensíveis, como saneamento, abastecimento de água, fornecimento de energia, e equipamentos de lazer, esporte, cultura, saúde e educação.
O levantamento realizado pelo Transnational Institute (TNI) – “Reclaiming Public Services” – identificou 835 destes eventos em 45 países e 1,6 mil municípios. Problemas como a baixa qualidade dos serviços prestados, preços excessivamente elevados e os níveis inadequados de investimentos foram recorrentes, tanto em países de alta renda, quando nos de renda média e baixa.
Em um momento em que o mundo revaloriza a ação estatal e o controle nacional de recursos naturais, o Brasil caminha no sentido contrário e abdica de graus de liberdade para conduzir seu próprio processo de desenvolvimento. Desde 2015, reformas que hoje podem ser consideradas anacrônicas e potencialmente ineficientes se sucedem com velocidade desproporcional ao debate racional sobre custos e benefícios de cada medida. A ideologia e os interesses empresariais específicos, mais do que a observação criteriosa da realidade, parecem conduzir tal processo. Pelo menos é isso o que sugere a economista Elena Landau, que foi responsável pelo programa de desestatização do governo Fernando Henrique Cardoso, e que segue como uma expoente na defesa das privatizações. Em recente entrevista ao jornal “O Estado de São Paulo” apontou para as fragilidades do projeto aprovado pelo Senado.
“A MP da Eletrobras é um retrocesso … Acaba com a concorrência e a alocação eficiente de custos … E acho que estão subestimando o desestímulo que essa proposta traz para os investimentos futuros no setor. Todo o setor, a academia, os liberais, a esquerda, os funcionários, os consultores estavam contra. Só estavam a favor o governo, os lobistas interessados em reserva de mercado e gasodutos e Paulo Guedes, que quer receber uma estrelinha por ter privatizado uma estatal jogando todo o prejuízo para a sociedade.”
A contraposição entre Estados e Mercados é uma simplificação ideológica que não traduz a realidade das economias avançadas e emergentes mais dinâmicas. As empresas estatais podem ser ineficientes ou mesmo capturadas por interesses políticos, corporativos ou privados. Da mesma forma, grandes empresas privadas podem ter influência desproporcional na definição de políticas públicas que lhe beneficiam, em detrimento dos consumidores e contribuintes. Nos dois casos, a sociedade perde. Para resolver problemas de eficiência, transparência e governança não parece ser necessário acabar com os conglomerados privados nem, tampouco, abdicar do caráter estratégico das estatais. As experiências bem-sucedidas de desenvolvimento se caracterizam pela presença destes dois atores. Por isso, a realidade contemporânea está impondo uma releitura crítica sobre os resultados efetivos das políticas neoliberais. As principais economias avançadas e emergentes estão fazendo o dever de casa e realinhando interesses privados e públicos, tendo por norte a recuperação do dinamismo econômico e da coesão social. Infelizmente, tal tendência ainda não se materializou no Brasil. Seguimos na contramão da história.
Esta é uma versão resumida e sem as referências bibliográficas do artigo homônimo disponível no Portal da FCe
Foto: Agência Brasil
André Moreira Cunha é Doutor em Economia pela Unicamp e Professor Associado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS.
Andrés Ferrari Haines é professor Adjunto do Departamento de Economia e Relações Internacionais, Faculdade de Ciências Econômicas e do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-UFRGS). Integrante do Núcleo de Estudos dos BRICS (NEBRICS-UFRGA) e Poder Global e Geopolítica do Capitalismo (aferrari@ufrgs.br).