Pierre Salama ²
Os países latino-americanos são mais ou menos diferentes, mas têm características comuns. Alguns têm uma população grande (o Brasil tem 207 milhões de habitantes, o México 132 milhões), já outros, como o Uruguai ou os países da América Central, são relativamente pouco populosos. O PIB per capita é elevado no Brasil, na Argentina, no México (entre um quarto e um terço daquele dos Estados Unidos), etc., um pouco menor na Colômbia e no Peru, muito menor em outros. Certos países são ricos em recursos naturais, outros não. Nem todas as populações têm a mesma origem, no cone sul da América Latina predominam as de origem europeia, nos países andinos, na América Central e no México as de origem indígena, no Brasil e no Caribe, são maioria as de origem africana. Suas histórias não são exatamente as mesmas, como também não são as lutas pelas suas respectivas independências. Entretanto, eles têm numerosos pontos em comum, os quais constituem, de alguma forma, as 7 chagas da América Latina.
1/ São países profundamente desiguais e aqueles que eram menos desiguais (Argentina, Chile…) se tornaram mais nesses últimos trinta ou quarenta anos. A distribuição de suas rendas é muito mais desigual que aquela dos países avançados. Pior, depois de impostos e transferências sociais, enquanto o índice de Gini – indicador de desigualdade – baixa de 10 a 15 pontos, numa escala de 1 a 100, nos países avançados, sua redução na América Latina é de apenas dois pontos. Nenhum dos países efetuou uma reforma fiscal que permitisse uma redução das desigualdades. O sistema tributário é regressivo e as transferências sociais demoram para compensar esta regressão, algo particularmente grave na Colômbia e no México.
2/ Os empregos formais em 2015, incluindo empregos públicos, variaram 30%, em termos de empregos totais, na Bolívia, 37% no Peru, 42% na Colômbia, 53% no Brasil, 54 e 62% respectivamente no México e na Argentina e, ao contrário, os empregos informais foram muito mais importantes ³. A informalidade e a pobreza absoluta diminuíram nos anos 2000, sobretudo nos países dirigidos por governos progressistas, mas com a recente crise, elas aumentaram novamente principalmente na Argentina, no Brasil e na Venezuela, esta última profundamente afetada por uma crise econômica sem precedentes. As despesas sociais (saúde, educação, aposentadoria) foram mais (Argentina, Brasil, Venezuela…) ou menos (Colômbia, México…) aumentadas, contribuindo para uma baixa estrutural da pobreza e para o quase desaparecimento do analfabetismo entre os jovens. Contudo, com a crise ou a desaceleração do crescimento, a expansão da corrupção na maioria dos países e o tráfico de drogas; a violência aumentou novamente assim como a pobreza e as desigualdades.
3/ Os últimos quarenta anos se caracterizam por uma tendência à estagnação de seus PIBs per capita, particularmente no México. Contrariando a uma ideia relativamente difundida, estas economias foram pouco ou nada emergentes, à exceção da primeira década dos anos 2000. Elas não convergiram ou pouco convergiram em direção ao nível de renda per capita dos países avançados, diferente do que ocorreu em muitos países asiáticos. O Brasil, país emblemático pelo seu peso econômico, pela difusão da política conduzida pelo presidente Lula (2003–2011) e pelo resultado das últimas eleições presidenciais que conduziram a extrema direita ao poder em 2019; não conheceu esta convergência. Seu PIB per capita, medido em termos do PIB dos Estados Unidos dos Estados Unidos, é aproximadamente o mesmo que em 1960, ainda que nos anos 1960-1970 e na primeira década dos anos 2000, eles tenham se aproximado⁴.
4/ Nas últimas décadas, a maioria dessas economias voltaram a se primarizar, suas exportações compondo-se cada vez mais de matérias-primas. Os comportamentos rentistas se acentuaram. Um cenário insuficiente para promover um crescimento elevado e sustentável, passível de facilitar uma melhora importante e durável da situação social de grande parte de suas populações. Em contrapartida, com a reprimarização, as restrições externas recuaram fortemente nos anos 2000. A exportação de matérias-primas aumentou sensivelmente as receitas de exportação de tal forma que, apesar do crescente déficit da balança comercial de produtos industriais em numerosos países, a balança comercial continuou frequentemente positiva mesmo se em alguns países a baixa do preço das matérias-primas e dos volumes exportados nos anos 2010 deixaram esta situação mais tensa ou conduziram, à partir de 2016, a um déficit da balança comercial⁵. Este último tende a ser compensado pela vinda de capitais, atraídos pelos diferenciais das taxas de juros e pelas perspectivas de lucro, quando estas aparecem robustas. Por fim, a reprimarização é feita não só com desrespeito ao meio ambiente, como também com uma reconsideração quanto aos direitos recentemente obtidos pelas populações indígenas cada vez mais remetidas à sua condição de subcidadãos nos países andinos, bem como com uma degradação dos camponeses e dos mineiros⁶. Ela é então “justificada”, embora não seja correto,pelos recursos financeiros provenientes da exploração destas matérias-primas, estas aqui servindo, no melhor dos casos, para financiar uma alta das despesas sociais (educação, saúde) de tal forma que o sacrifício da presente geração possa ser benéfico para as futuras gerações…
5/ Uma política levando em consideração o conjunto dos pilares do desenvolvimento sustentável (meio ambiente, economia, sociedade) não é, absolutamente, fácil de ser concebida sem suscitar conflitos de interesses. O desenvolvimento sustentável levanta, de fato, em sua base, várias questões essenciais referentes ao “buen vivir”: 1/ Devemos sacrificar o presente em nome de melhorias futuras, mais precisamente, devemos aceitar que os direitos dos índios, suas condições de vida, de saúde, suas culturas e o simbolismo através do qual eles se expressam sejam parcialmente ou totalmente amputados porque os recursos financeiros gerados pela exploração das minas e a construção de estradas para transportar as matérias-primas, poderiam financiar despesas em educação, em infraestrutura, em saúde cujas estas populações, atualmente pobres, fortemente necessitam para superar suas pobrezas de maneira sustentável? Conflito entre presente e futuro que, neste caso, ganha relevância devido ao passado de exclusão que sofreram estas populações e ao engajamento mais ou menos nítido dos governos de romper com este passado. 2/ Podemos conceber o desenvolvimento sustentável respeitando a lógica capitalista tendo em conta as particularidades da situação dos índios e os danos que provocam a exploração das megaminas, danos que incluem o conjunto das dimensões ecológicas, sanitárias, sociais e culturais? Mais precisamente, devemos nos inspirar em uma abordagem estatalista, mais do que na plurinacionalidade? Ou em uma abordagem que não aceite a modernidade no que ela tem de submissão, de efeitos de dominação; para insistir sobre a descentralização, sobre a importância dos poderes locais, sobre uma recusa à mercantilização plena e absoluta, sobre um respeito a ecologia e uma aspiração verso o decrescimento (Carbonnier G.e alii, 2018)? De fato, além das promessas, é a posição desenvolvimentista que se impôs em detrimento dos interesses imediatos das populações indígenas⁷.
6/ As economias latino-americanas são relativamente fechadas, com exceção do México e de alguns países da América Central. Elas se abriram ao ritmo médio da abertura mundial, ao contrário de alguns países asiáticos, como os dragões (Hong-Kong, Singapura, Coréia do Sul), os tigres (Filipinas,Tailândia, Malásia, etc.,) e a China.
A maioria dos países latino-americanos são pouco integrados nas cadeias internacionais de valores. A CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina) distingue dois tipos de integração: pelo montante, que mede, para um dado país, a parte dos bens intermediários importados, incorporados em suas exportações, e pela jusante, que mede a parte dos bens intermediários exportados por países que são incorporados nas exportações de outros países. A participação pelo montante é de 11,4% em 2000 e 10,7% em 2011 no Brasil ao invés de, respectivamente, 37,2% e de 32,1% para a China. A baixa do índice chinês revela o esforço da China para integrar suas linhas de produção. A participação pela jusante é mais importante para o Brasil (17,1% em 2000 e 24,5% em 2011) que para a China (10,8% e 15,6%), pois o Brasil exporta mais matérias-primas para a China que as incorporam em suas exportações⁸.
7/ Enfim, todas as economias latino-americanas conhecem uma desindustrialização precoce, inclusive o México, embora este seja especializado na exportação de bens manufaturados agregados, algo que voltaremos a tratar. A desindustrialização no México diz respeito a indústria da qual a produção é destinada essencialmente ao mercado interno e apresenta um profundo desequilíbrio de suas transações internacionais com a China.
Não podemos compreender estas evoluções se não levarmos em conta o contexto internacional no qual elas ocorrem. Sejam as economias relativamente fechadas comercialmente (e abertas financeiramente) ou completamente abertas, elas sofrem alguns dos efeitos deletérios da globalização, mesmo se sob certos aspectos chegaram a deslanchar durante governos progressistas da década passada.
– 1.A globalização não é mais aquela que era, a América latina está em um momento de mudança
– Os termos “ganhador” e “perdedor”, são frequentemente utilizados na literatura econômica. As nações que “ganham” seriam aquelas que conhecem um aumento de suas participações no comércio mundial e as que “perdem” o contrário. Alguns países, sobretudo asiáticos, aumentaram suas participações relativas no PIB mundial entre 1980 e 2018. Os países da América Latina, ao invés disso, viram suas participações diminuírem vários pontos. Se consideramos apenas o comércio internacional de produtos manufaturados, em 2017, entre os dez primeiros exportadores mundiais, somente o México está presente (10⁰ lugar), o Brasil se encontra em 30⁰ lugar tanto para as exportações como para as importações segundo a OMC. Dito de outro modo, o aumento do potencial de exportações de matérias-primas da América Latina eliminou apenas fracamente sua relativa marginalização.
Quadro 1: Comércio internacional de produtos manufaturados, exportações e importações em trilhões de dólares, ranking e porcentagem em relação ao comércio destes produtos, 2017.
Fonte : Carta IEDI, n 892, 2018 conforme os dados da OMC.
Abertura mais ou menos controlada, globalização e fragmentação
Nós não tiramos conclusões a respeito das supostas vantagens do livre comércio sobre o crescimento assim como é feito frequentemente nas instituições internacionais. Elas pressupõem que a crescente abertura ao comércio internacional foi a causa do dinamismo do crescimento e, inversamente, a fraca abertura a causa primordial do fraco crescimento na América Latina. Esta relação é contestada não somente teoricamente, mas também factualmente. Em sua abordagem teórica, assim como em suas análises descritivas, falta uma variável entre a abertura e o crescimento: o papel desempenhado pelo Estado (Salama P. ,2006, para uma apresentação da literatura, páginas 87-112 e para uma análise histórica, ver Bairoch P.,2005). A abertura pode ser controlada por uma política industrial. É o que fizeram e fazem ainda os países asiáticos. Ao contrário, a abertura, sem política industrial, sem controle, pode não favorecer o crescimento; é o que aconteceu no México, por exemplo.
Enfim, limitar os países às nações não é por si só pertinente. A globalização é acompanhada de fragmentações territoriais. Ela produz, de fato, consequências negativas em determinadas regiões dentro das nações, inclusive naquelas que são aparentemente ganhadoras, e, por consequência sob segmentos de classes sociais. De fato, as nações são compostas de territórios onde se concentram os ganhos provindos da globalização e outros onde são as perdas que predominam. Nos territórios que ganham com a globalização a proporção daqueles que experimentam uma evolução favorável de seus salários é mais importante que nos territórios que perdem; onde se concentram baixa e média qualificação, baixos salários, ameaças quanto ao emprego e precariedade acentuada.
Esta evolução possui duas causas essenciais: a primeira é a forte concorrência dos novos países emergentes, baseada em baixos salários, que não compensa suficientemente o diferencial de produtividade; a segunda é que os ganhos financeiros não vêm de “ parte alguma”. Eles são obtidos pelo valor agregado e como este pode ser insuficiente para satisfazer os apetites dos acionistas, a “solução” pode ser encontrada em uma redução relativa de massa salarial no valor agregado produzido. Quando o crescimento é fraco, é um jogo de “soma zero” que tende a se impor: maior lucro, e no seio destes lucros, principalmente destinado às finanças (dividendos, juros), consequentemente, menor salário. Um aumenta e outro diminui de maneira absoluta. Quando o crescimento é mais elevado, a alta da parte dos lucros não significa necessariamente uma baixa de salários, mas um crescimento mais fraco em relação aos lucros.
À esta evolução dos salários e sua dispersão crescente se soma um aumento dos empregos a tempo parcial e sobretudo uma precarização do trabalho. Na América latina, estas tendências foram contrariadas por medidas político-institucionais. Em vários países, o salário mínimo aumentou mais fortemente que a produtividade do trabalho. Isto permitiu uma diminuição das desigualdades no âmbito de 90% da população assalariada – em favor dos mais pobres e em detrimento das classes média-baixa e média –, os 10% restantes viram seus salários, e de uma maneira geral seus rendimentos, fortemente aumentados.
Paradoxalmente, a menor abertura latino-americana foi acompanhada de uma liberalização de suas economias, o Estado intervém menos sobre o mercado do que ele poderia, ao passo que a maior abertura dos países asiáticos, exceto Hong-Kong, foi acompanhada de uma importante política industrial. Dado que, abertura e liberalização são duas coisas distintas. A fraca abertura não significa que não se possa ter efeitos de contágio ou que esta seja de menor amplitude quando ocorre uma crise financeira em países avançados⁹.
Com a globalização comercial, a divisão internacional do trabalho mudou profundamente. Alguns países do Sul, na Ásia, se tornaram oficinas do mundo, outros, na América Latina, se especializaram novamente na exploração de seus recursos naturais, à exceção, notável, do México e dos países da América Central¹⁰. Eles se reprimarizaram. As exportações de produtos manufaturados se elevavam 51% em relação ao conjunto de exportações em 2006 no Brasil – as importações 70% –, o restante das exportações sendo composto de produtos agrícolas e de matérias-primas (minérios e combustíveis). Pouco mais de uma década depois, em 2017, as exportações de produtos manufaturados se elevam 36% – as importações 74% – (fonte IEDI, n⁰ 892, 2018). A evolução é, portanto, rápida e, de fato, teve início no fim dos anos 1990. Ao contrário, a nível mundial, as exportações de produtos manufaturados aumentaram 70% em relação ao conjunto das exportações em 2017, às quais é necessário adicionar 12% correspondendo a categoria “outros produtos manufaturados”, segundo a OMC. Enfim, 80% das exportações mundiais são realizadas por dez países, entre os quais se encontra o México, no fim da fila.
– Amplitude da globalização e mutação de suas formas
a. As exportações mundiais conhecem um ritmo de crescimento largamente superior aquele do PIB mundial (figura 1).
Figura 1: taxa de crescimento do PIB mundial, das exportações mundiais, em valor e em volume, 1980-2017.
Fonte : WTR/OMC.
Nos anos 1990 e, sobretudo, 2000, assistimos uma reviravolta da divisão internacional do trabalho na indústria mundial graças ao desenvolvimento da internet, à baixa do custo dos transportes e à capacidade de certos países asiáticos de adaptar suas ofertas muito rapidamente às bruscas mudanças da demanda mundial.
Passamos, então, de uma relação entre dois atores à uma relação entre um ator que dá ordens e “n” atores situados em diferentes países, sobretudo no Sul, mas igualmente no Norte; o que significa uma expansão da cadeia internacional de valor.
As trocas de bens industriais Sul-Sul se desenvolveram. Entretanto, os países latino-americanos, em geral, participaram pouco do processo de expansão da cadeia de valor. Eles permaneceram relativamente fechados, à exceção, em uma certa medida, do México e de alguns países da América Central. Todavia, em conjunto os países latino-americanos puderam se abrir mais ao exterior sem que pesasse a restrição externa como no passado, graças aos ganhos obtidos pela exploração de matérias-primas, destinadas principalmente à China, o que permitiu importar mais bens manufaturados. Esta fase parece ter terminado e as restrições externas reapareceram com força nas economias que se tornaram menos industrializadas e mais vulneráveis às evoluções dos volumes exportados e dos preços das matérias-primas.
A globalização financeira ganhou impulso. Não conheceu a mesma desaceleração que a globalização comercial e é particularmente importante, desde 1995 no mundo e na América Latina desde 2010, para os investimentos estrangeiros diretos e os investimentos de carteira, mas ainda fraca para os derivativos financeiros¹¹.
Figura 2: Aceleração da globalização financeira.
Com a crescente abertura, o emprego e o trabalho se submeteram a limitações externas cada vez mais elevadas. O emprego tende a se tornar mais precário e, com a expansão da internet, a “uberização” das atividades se torna cada vez mais importante; salvo se uma vontade política de proteger mais os assalariados se afirme. Foi o caso em vários países latino-americanos graças a chegada de governos progressistas nos anos 2000: a informalidade diminuiu, os salários reais aumentaram mais rápido que a produtividade do trabalho e a proteção social se desenvolveu, em detrimento, é verdade, da competitividade. Hoje, com o retorno da direita, estas conquistas são colocadas em xeque. Resta apenas a precariedade, o desmantelamento crescente, como nós vimos, e o aumento da desigualdade de renda. Até onde tais evoluções são sustentáveis em termos políticos?
b. Desde 2008, a globalização enfraquece o crescimento das exportações mundiais que nitidamente não ultrapassa aquele do PIB mundial, ele é por vezes inferior. É uma situação nova para a América Latina, um desafio. Desde 2008 a globalização parece esmorecer. As exportações mundiais crescem, nesse momento, a um ritmo próximo daquele do PIB mundial. Medidas protecionistas se multiplicam desde 2012. Com a ascensão de Trump à presidência dos Estados Unidos (2017), elas puderam mesmo ser mais importantes e se generalizar.
A globalização parece ceder espaço à desglobalização por duas razões: a primeira de ordem tecnológica: é possível realocar a produção de certas atividades nos países avançados graças a expansão da revolução digital, esta mesma revolução que ontem permitia deslocar essas atividades para outros países mais facilmente. A segunda razão diz respeito aos efeitos deletérios da globalização sobre a coesão social: aumento da desigualdade de renda, empregos suprimidos e mobilidade reduzida se traduzem frequentemente em um protecionismo cada vez mais pronunciado.
A guerra comercial que se anuncia é fonte de múltiplos perigos para a América Latina: as medidas anunciadas pela administração americana demandam contramedidas que levem à superação. Contrariamente ao jogo de xadrez onde as regras são fixas e onde os jogadores podem prever as possíveis reações conforme suas decisões e as modular em função das mesmas, aqui as regras não são fixas e o “jogo” pode rapidamente desandar. Ainda mais quando o “jogo” não coloca face à face dois atores (Estados Unidos e China), mas vários atores, tais como a Europa, o Japão e, é claro, os outros países: os efeitos de uns repercutem nos outros, seja diretamente – a China, por exemplo, procurando encontrar novas oportunidades para fazer frente aquelas que se tornaram mais difíceis nos Estados Unidos – , seja indiretamente, via baixa do crescimento, aumento do desemprego, crises políticas que favorecem o populismo de direita. Enfraquecida, a América Latina está pouco preparada para enfrentar todos estes desafios, mas, olhando para sua história, ela pode encontrar saídas para recuperar-se rápido e descobrir politicamente soluções para os desafios econômicos que a agridem.
– 2. Uma desindustrialização precoce
As taxas de crescimento do PIB são levemente mais elevadas na primeira década dos anos 2000 do que nos anos 1990 e acompanhandas de uma desindustrialização mais ou menos pronunciada conforme os países, sobretudo nos setores que produzem bens sofisticados, conduzindo à uma especialização em bens pobres em tecnologia, mesmo estes ameaçados pela concorrência dos países com baixos salários.
Passado um certo estágio de desenvolvimento, é habitual constatar uma baixa relativa da parte do setor industrial no PIB em proveito dos serviços, sem que, no entanto, exista necessariamente desendustrialização. O termo desendustrialização é, em geral, usado para uma baixa absoluta do valor agregado pela indústria e/ou para uma redução relativa do peso da indústria nacional na indústria mundial em economias abertas. Na América Latina, este fenômeno tem tendência de acontecer muito mais cedo do que nos países avançados, daí o uso do qualificativo “precoce”, empregado quando a renda per capita no início do processo de desindustrialização corresponde à metade daquela dos países avançados no momento que ele inicia. A parcela da indústria de transformação brasileira na indústria de transformação mundial (em valor agregado) é de 1,8% em 2005 em seguida, em 2011, de 1,7%, depois de ter sido de 2,7% em 1980; segundo o banco de dados de 2013 da UNCTAD. Segundo a mesma fonte, na China, esta parcela era de 9,9%, em 2005 e de 16,9% em 2011. Ela baixa relativamente no Brasil e aumenta fortemente na China. As exportações de produtos manufaturados decrescem em termos relativos no Brasil, passando de 53% do valor das exportações em 2005 para 35% em 2012, em benefício das exportações de matérias-primas agrícolas e minérios, e é somente a partir de 2016 que elas crescem novamente, decorrente da forte desvalorização e da queda do preço das matérias-primas.
Figura 3: Desindustrialização precoce na Argentina, no Brasil, no Chile e no México. Indústria, valor agregado, índice 100=1965.
Fonte : Castillo M. e Martins Neto A. (2016), “ Premature desindustrialization in Latin America”, Cepal, Série Production Development, n 205, 1-23.
No Brasil, além do sucesso de alguns setores industriais como o aeronáutico, o automobilístico, em certa medida, e a indústria petrolífera; a desindustrialização avança desde os anos 1990 e se acentua nos anos 2000, com uma perda relativa da competitividade da indústria de transformação à qual se acrescentam os deficientes da infraestrutura de transporte (ferrovias, instalações portuárias, aeroportuárias e estradas) e de capacidade energética .
A taxa de câmbio real em relação ao dólar, a taxa de salário e a produtividade do trabalho juntas medem o custo unitário do trabalho e sua evolução. Sendo esta última um indicador da competitividade da economia. Uma competitividade insuficiente se traduz em uma baixa da rentabilidade de algumas empresas, podendo levar a sua eliminação e a demissão dos assalariados e, por fim, a um enfraquecimento do tecido industrial.
Dados médios nem sempre são pertinentes. A dispersão em torno da média é particularmente elevada nas economias semi-industrializadas, mais ainda que nas economias avançadas. Os níveis de produtividade são muito diferentes entre os setores e dentro dos setores, assim como os salários com qualificação equivalentes de acordo o tamanho das empresas e suas nacionalidades. A taxa de câmbio afeta sobretudo os setores mais expostos, mas de forma diferente, conforme a parte das importações seja mais ou menos importante na produção de uma mercadoria.
De qualquer forma: no longo prazo, a taxa de câmbio esteve fortemente apreciada particularmente no Brasil, o custo da mão-de-obra aumentou fortemente nesse país, sobretudo aquele da mão-de-obra pouco qualificada e a produtividade do trabalho aumentou muito pouco, sobretudo na indústria; onde ela passou do índice de 100, em março 2002, a um pico de 115,3, em setembro 2013, para cair para 105,6, em dezembro de 2015 (IBGE, dessazonalizado). O conjunto destas evoluções atua de forma desfavorável em relação à competitividade, favorece uma desindustrialização via uma baixa da rentabilidade do setor exposto à concorrência internacional e constitui in fine um indicador de crise potencial.
Figura 4: Custo unitário do trabalho nas economias latino-americanas, 1990-2010.
Fonte : Frenkel R. e Rapetti M. (2011) : La principal amenaza de America Latina en la próxima década: fragilidad externa o primarizacion?, Working paper, CEDES, 1-30.
Esta desindustrialização precoce se explica desta forma na maioria dos países : 1/ por uma tendência à elevação da taxa de câmbio real em relação ao dólar, entremeada de crises de câmbio brutais, devido seja a um excesso de dólares (Brasil, etc.,)¹², seja a um diferencial elevado da inflação com relação aos países avançados conjugado com uma relativa manutenção da taxa de câmbio nominal (Argentina), seja, ainda, a transferências massivas de rendimentos de trabalhadores que imigraram para os Estados Unidos (México); 2/ pela elevação da taxa de salário real além da taxa de crescimento da produtividade, ela mesma fraca.
Figura 5: Argentina: Taxa de câmbio real multilateral (2011=100) e déficits do balanço da conta corrente em milhões de dólares, 2011-2017.
Fonte: Gerado a partir dos dados da BCRA. Afim de facilitar a leitura do gráfico, lembremos que uma curva decrescente significa uma apreciação da moeda nacional. As taxas de câmbio são expressas em termos reais com o objetivo de levar em conta diferenciais de inflação.
Figura 6: Brasil, taxa de câmbio real efetiva, 1994=100, 1988-2018.
Figura 7: México, taxa de câmbio nominal e real, 2005-2017.
Enquanto os países da América Latina continuam paralisados em um quadro caracterizado por uma densidade industrial per capita fraca e uma participação da indústria (valor agregado) no PIB igualmente fraca, os países asiáticos progridem com base em uma indústria fundamentada cada vez mais em produtos de alta tecnologia e na exportação de produtos complexos¹³.
-3. Por que a indústria deve ser privilegiada?
Economistas se interrogam quanto a necessidade de privilegiar a indústria. Seus argumentos parecem ter bom senso. O crescimento foi mais elevado no início dos anos dois mil que no final dos anos noventa e, acima de tudo, o que importa é o crescimento, quer este provenha da exportação de matérias-primas ou de qualquer outro setor. Desse ponto de vista, a reprimarização das economias latino-americanas não seria um mal: menos dependência apesar de uma alta das importações de produtos industriais, uma restrição externa em vias de desaparecimento (com tanto que o crescimento das vendas em valor de matérias-primas siga o mesmo ritmo), menos inflação graças ao duplo efeito 1/ a apreciação da moeda nacional que provoca uma redução relativa do preço dos produtos importados e 2/ a maior competitividade que implica preços mais baixos.
Quanto a estes argumentos, se poderia observar que a riqueza que provém da renda é aleatória e, sobretudo, não é tão estruturalmente sólida como aquela originária da exploração da força de trabalho, principalmente se esta última se realiza com a ajuda de tecnologias sofisticadas que permitem produzir bens complexos detentores de uma inserção positiva na divisão internacional do trabalho. Ela tende a produzir, ao provocar a apreciação da moeda, uma desindustrialização. Basta que as rendas diminuam para que a dependência externa, que ontem se acreditava superada, reapareça com força. A desvalorização – depreciação da moeda nacional pode não permitir uma recuperação suficiente das exportações industriais em razão do enfraquecimento do tecido industrial.
Um segundo argumento, mais sério, deve ser levado em consideração. O que existe por atrás do termo “indústria”? No Brasil, a indústria é composta pela indústria de transformação e pelas indústrias extrativas; na Argentina, se distingue a manufatura de origem agrícola daquela de origem industrial. Quando fazemos comparações ao longo do tempo, convém levar em conta serviços que antes eram internos às empresas e que agora são terceirizados e frequentemente contabilizados no presente como serviços. É necessário também comparar de forma equivalente, o que nem sempre é fácil quando não se tem uma metodologia. Por razão de comodidade, nós consideramos aqui a indústria de transformação tendo em mente que é cada vez mais difícil não incluir os ICT, sobretudo com a 4⁰ revolução industrial, dita digital, cada vez mais ampla.
Sejam os trabalhos de Kaldor e de Vervoorn sobre a relação entre as taxas de crescimento da indústria e da produtividade do trabalho, sejam aqueles de Hirschman sobre os efeitos de treinamento montante e a fluxo da indústria e de seus setores os mais dinâmicos, ou bem ainda aqueles de Thirwall sobre os limites do crescimento quando as capacidades de importação dos outros países desempenham como limitações ao desenvolvimento destas exportações, todos mostram o papel estratégico da indústria para o crescimento e sua capacidade de gerar empregos nos outros setores.
Quando relacionamos os diferentes setores, classificados segundo a importância relativa da formalidade de seus empregos e do número de empregos indiretos criados, se observa que na Argentina em 2013 para um emprego direto criado na indústria, 2,45 empregos indiretos foram criados, bem mais que no comércio, nos serviços de alimentação ou na construção civil, onde predominam os empregos informais segundo Coatz D. e Scheingart D¹⁴.
De maneira mais geral, segundo Berger T., Chen C. e Frey C. B., 2017¹⁵, os empregos criados indiretamente no setor de serviços graças à criação de um emprego de assalariado “ qualificado” na indústria de manufatura, seriam muito mais elevados nos países emergentes que nos Estados Unidos; pois as desigualdades de remunerações são mais elevadas ali assim como a propensão a consumir, pelo menos nos dois países latino-americanos analisados pelos autores (Brasil e México). As camadas abastadas da população gastam muito em serviços, o que gera empregos em maior número.
O aumento da demanda das famílias, seguido do aumento do seu poder de compra, é cada vez mais satisfeito pela importação de produtos industriais, que se tornou possível graças ao relaxamento da restrição externa, e em detrimento da oferta nacional menos competitiva. O aumento dos salários reais, algo necessário tendo em conta a dimensão das desigualdades, poderia não ter esse efeito negativo se uma política industrial em favor do aumento da produtividade do trabalho tivesse sido implementada e se os governantes tivessem favorecido uma depreciação controlada de suas taxas de câmbio, equivalente ao que fez a China.
Tais modelos se tornaram insustentáveis. A reprimarização das economias conduz na maioria das vezes a danos irreversíveis sobre o meio ambiente, sobre os modos de vida e a saúde das populações desses países. Ela produziu, naturalmente, uma apreciação da moeda nacional, vetor de uma desindustrialização e de uma vulnerabilidade econômica e social crescente.
Também o modelo a seguir, passa por um fortalecimento da indústria através de um apoio aos setores de alta tecnologia, o que implica, consequentemente, esforços em pesquisa e desenvolvimento, equivalente ao que fazem países como a Coréia do Sul. A hipótese deste trabalho é que somente a indústria, compreendida em sentido amplo – incluindo também os serviços ditos dinâmicos – oferece a possibilidade de saída por cima da crise que os afeta. Apenas ela pode assegurar uma integração positiva na divisão internacional do trabalho. Contudo, ir nesta direção é afrontar o comportamento rentista. Existem possibilidades de recuperação, mas para que elas possam ser duráveis não é necessário que repousem exclusivamente sobre desvalorizações massivas, ainda que estas possam ser necessárias.
Possibilidades de recuperação existem, mas elas são cada vez mais fracas. Uma retomada sustentável do crescimento é possível se paralelamente são empreendidos esforços para melhorar a produtividade do trabalho. Tal melhora passa por um fortalecimento dos setores promissores e não por seu enfraquecimento. É necessário, igualmente, que a demanda interna seja mais dinâmica e que a competitividade seja elevada para que o crescimento da demanda não seja satisfeito somente por importações. Isto parece um paradoxo. É, entretanto, a única via para sair da crise e/ou da desaceleração econômica de forma sustentável. A redução das desigualdades deveria passar por uma redução das desigualdades sociais, o que permite impulsionar a demanda. Esta redução das desigualdades poderia ser feita por uma reforma fiscal “progressiva”. Passar de um sistema fiscal regressivo a um sistema fiscal progressivo é uma revolução e pressupõe que numerosos conflitos sejam resolvidos. Algo difícil. Para evitar que o crescimento da demanda conduza a um aumento das importações, é necessário desvalorizar a moeda impedindo que ela se reaprecie por mecanismos de esterilização e, ao mesmo tempo, definir uma política industrial que permita aumentar a produtividade do trabalho. O caminho é íngreme, mas é o único possível.
-4. Os efeitos da globalização e da reprimarização sobre a distribuição dos rendimentos
A globalização tem efeitos sobre o volume do emprego (tempo integral versus tempo parcial em aumento), a estrutura dos empregos (baixa qualificação versus alta qualificação), as formas de emprego (precariedade vide uberização, desfiliação) e a distribuição da renda do trabalho (distorção da curva de Lorentz¹⁶). A inserção na divisão internacional do trabalho pode conduzir à um processo de desmantelamento quando são privilegiadas as atividades rentistas em detrimento daquelas que exigem uma qualificação importante. Esses desdobramentos podem ser revertidos com as políticas econômicas seguidas pelos governos. Foram, em parte, na América latina.
Os dados oficiais sobre a distribuição de renda mostram que a parcela de renda dos 1% mais ricos cresce nos países avançados, mas diminui nos países emergentes latino-americanos e, ao contrário, aquela dos 40% mais pobres diminui nos primeiros e aumenta nos segundos. Se sabe hoje que a realidade é mais complexa. Não é tão claro que as desigualdades tenham diminuído na América Latina nestes últimos vinte anos, mas é certo que de trinta à quarenta por cento da população mais pobre viu sua remuneração relativa aumentar. Por causa disso, a pobreza relativa diminuiu de maneira mais ou menos importante dependendo do país. Contudo, é certo também que o rendimento dos 1% mais ricos aumentou de maneira relativa, como nos países avançados, desmentindo as afirmações dos governos. Enfim, é certo que as classes média-baixa e média conheceram uma deterioração relativa dos seus padrões de vida. Essas evoluções são bem mais pronunciadas que nos países avançados. Algumas dentre elas foram negadas, particularmente no Brasil onde, inclusive numerosos intelectuais, exaltaram o advento de um país de classes médias (o que é relativamente inexato), a diminuição da pobreza (o que é exato) e a relativa redução da renda dos mais ricos (o que é errado), tornando o discurso inaudível.
Com a reprimarização da economia e, consequentemente, sua desindustrialização, a demanda de trabalho qualificado pelas empresas se tornou relativamente menor, caiu abaixo da oferta de jovens provenientes das escolas e das universidades. Em outras palavras, a reprimarização favoreceu a criação de empregos não qualificados mesmo a qualificação aumentando, daí um desmantelamento real e sentido mais vivamente pelos jovens que ascendem ao status das classes médias. Os dados são eloquentes: 38% dos assalariados tendo ensino superior completo ocupam empregos menos qualificados que os que eles poderiam ter, esta porcentagem aumenta para 44% para a faixa de 24 a 35 anos. Estas porcentagens eram menores em 2012, 33,4% e 38,4% respectivamente, no Brasil (O Valor 13 de dezembro de 2018, segundo os dados do IPEA e da PNAD, ver Salama P., 2012, Rocha S., 2014, Amarante V. e Colacce M., 2018, p.24)¹⁷. A diminuição das desigualdades de renda do trabalho pode esconder uma redução relativa de parte dos rendimentos das classes média-baixa e média.
-O mercado de trabalho explica o essencial da diminuição das desigualdades de renda do trabalho e da tolerância, mas também das frustrações e da cólera futuras (Salama P., 2012, Rocha S., 2014, Amarante V. e Colacce M., 2018, p. 24)¹⁸. Esta vem essencialmente da alta relativa da renda dos 40% os mais pobres da população, mas esta redução das desigualdades de renda do trabalho esconde frequentemente uma redução relativa da parte dos rendimentos das classes média-baixa e média.
Mais precisamente, a indexação do salário mínimo sobre a inflação e o crescimento do PIB, como é o caso do Brasil, é efetivamente a causa principal da redução da pobreza bem como da redução das desigualdades de salários e de remunerações. A combinação da alta do salário mínimo e a inadequação entre oferta e demanda de trabalho, ela mesma gerada pela escolha em favorecer a reprimarização da economia, explicam o essencial da modificação da distribuição da renda do trabalho.
A oferta e a demanda do trabalho conhecem uma evolução em tesoura na maioria dos países. A oferta de trabalho é cada vez mais qualificada graças à extensão da duração dos estudos. A demanda por trabalho, ao contrário, é menor, por duas razões: a/ A indústria de transformação perde importância em termo relativo. O peso das ramificações caracterizadas por um baixo nível tecnológico cresce em relação aquelas de alta e de média-alta tecnologia que, relativamente, declinam. As empresas utilizando técnicas pouco sofisticadas tendem a privilegiar os empregos nada ou pouco qualificados em detrimento dos outros; b/ os setores de serviços e de comércio, setores naturalmente protegidos da concorrência internacional, absorvem cada vez mais empregos e estes últimos que, salvo alguns setores, utilizam igualmente mais empregos pouco qualificados. Emerge desta tesoura, entre a oferta e a demanda, um processo de desfiliação e de desmantelamento. Um assalariado qualificado tendo um emprego não correspondente à sua qualificação recebe um salário superior àquele que ele teria tido se ele tivesse estudado na escola por menos tempo. As pessoas com muitos anos de estudo, em relação aquelas com menos, ganham certamente mais, mas a diferença entre as remunerações destas duas categorias se reduz, à exceção das mais altas faixas.
Com a reprimarização da economia e, consequentemente, sua desindustrialização, a demanda de trabalho qualificado pelas empresas se tornou relativamente menor, caiu abaixo da oferta de jovens provenientes das escolas e das universidades. Em outras palavras, a reprimarização favoreceu a criação de empregos não qualificados mesmo a qualificação aumentando, daí um desmantelamento real e sentido mais vivamente pelos jovens que ascendem ao status das classes médias.
Conclusão, um futuro pouco promissor salvo se….
A América Latina não conheceu um milagre econômico. A reprimarização de suas economias causou uma maior vulnerabilidade e acentuou uma desindustrialização precoce. A pobreza diminuiu – se trata de uma medida em termos absolutos, o que significa que ela pode desaparecer –, mas as remunerações relativas das classes média-baixa e média diminuirão, levaram, no final, a uma frustração. As categorias mais ricas enriqueceram e quando a crise chegou os partidos progressistas foram muito facilmente designados como bodes expiatórios, uma vez que eles haviam negado o enriquecimento dos mais ricos, bem com o empobrecimento relativo de uma grande parte das camadas médias e foram atingidos, assim com outros partidos, pela gangrena da corrupção. O presente é preocupante, as perspectivas futuras são melhores? A resposta não é, absolutamente, otimista, salvo se…..
A difusão das novas tecnologias pelo mundo é mais rápida que no passado, mas ela é mais igualmente desigual entre as nações e dentro delas. Ela é menos rápida na América Latina, inclusive nos países mais poderosos do subcontinente americano como o Brasil, o México, a Argentina, a Colômbia e o Chile. Desse ponto de vista, a América Latina acentua seu atraso em relação aos grandes países asiáticos a aos países avançados. Ela é desigual. Algumas empresas adotam rapidamente novas tecnologias, outras ou freiam suas adoções ou se revelam incapazes de adotá-las suficientemente rápido. A dispersão dos níveis de produtividade, já bastante elevada no setor industrial, definido em sentido amplo, se acentua. É bastante preocupante o crescimento das desigualdades de renda do trabalho (medidas em salário médio) entre as empresas, aquelas que adotam novas tecnologias e aquelas que não o fazem à altura das necessidades para permanecerem competitivas. À estas desigualdades crescentes entre as empresas se juntam aquelas geradas pela utilização dessas tecnologias. Os empregos que consistem em realizar tarefas repetitivas são, em parte, substituídos por uma crescente automatização em determinados setores; o que leva a uma bipolarização dos empregos (muito qualificados – pouco qualificados) que tente a acentuar a bipolarização dos rendimentos do trabalho.
As revoluções industriais não levaram a médio prazo a uma alta do desemprego porque, precisamente, numerosos empregos foram criados para fabricar novas máquinas. Se novas máquinas não são produzidas – é o caso da América Latina – o risco de não conseguir evitar uma alta do desemprego é real. Na medida em que a América Latina se atrasa, estes efeitos tardam a aparecer mesmo se em certos setores, como a indústria automobilística ou a financeira, começam a se manifestar. Mesmo se esta difusão é mais lenta do que em outros lugares, ela tende a se acelerar e seus efeitos a aparecer mais claramente. Diferente dos países avançados e de alguns países asiáticos a América Latina é, ainda que parcialmente, consumidora destas tecnologias que ela não produz. Também as oportunidades de empregos criadas pela produção destas tecnologias são raras, restando somente aquelas geradas por suas utilizações. Também é possível que as atividades ditas informais aumentem com resultado, desta vez, da incapacidade relativa de criar novos empregos suficientes nos setores com uma produtividade crescente¹⁹.
A revolução digital está em curso, não se sabe como freia-la, e da mesma forma que ontem com a revolta das luddites britânicas ou dos canuts de Lyon, seria um erro ver numa revolução tecnológica a causa da perda de empregos, destruídos pelas máquinas e o pelo progresso técnico.
Forçosamente se constata que os países latino-americanos passaram ao largo da nova revolução industrial, adotando uma atitude relativamente passiva face à globalização e aos rendimentos que eles poderiam ter. Esta via fácil deve ser abandonada. Os limites dos modelos rentistas foram atingidos. É hora de encontrar uma nova maneira de se inserir na divisão internacional do trabalho. Isto passa por novas alianças de classes, as únicas capazes de assumir politicamente uma reforma fiscal substancial, uma distribuição dos rendimentos menos desigual e uma política industrial menos clientelista.
Foto: Divulgação/ Envato
Tradução: Maria Trippia, Revisão Técnica: Bruno Roberto Dammski
Referências
¹ Em homenagem e referência ao artigo de Diaz Alejandro C., 1985 : “ Goodby financial repression, hello financial crisis “, Journal of development Economic, vol 19, n 1, 1-24.
² Professor emérito Universidade de Paris XIII, CEPN-CNRS UMR 7234, último livro, 2014, Des pays toujours émergeants ?, edição La documentation française, coleção : Doc de bolso, aberto ao debate, sob impressão, com Mylène Gaulard, 2019, Economie politique de l´émergence, l´Amérique latine, coleção referência, edição La découverte.
³ Schteingart D (2018) ” El rompezadas del mercado laborial latino-americano”, Nueva sociedad n 275, 92-106.
⁴Carlos Luque, Simão Silber e Roberto Zagha, 2019, “ Retomar o crescimento deve ser objetivo central”, O Valor, 14 fevereiro.
⁵Para uma análise aprofundada, ver Salama P. , 2018 “ Argentine, Brésil, Venezuela, Populisme progressiste des années 2000, l´heure des bilans “, revista Contretemps, 84-119.
⁶ A literatura é abundante atualmente sobre o assunto, ver principalmente Svampa M., 2017, Del cambio de época al fin de ciclo, gobiernos progressistas, extrativismo y movimientos sociales en America latina, Ensayo Edhasa.
⁷ Um exemplo importante é aquele fornecido pelo projeto “Iniciativa-ITT” (2007-2013) no Equador. As promessas não tendo sido respeitadas à nível internacional, o governo decidiu em 2013 empreender os trabalhos para a exploração do petróleo, bem como se opor, na Bolívia, às comunidades indígenas contrarias ao projeto de construção de uma estrada ocupando território indígena e o parque nacional Isiboro-Sécure (TIPNIS).
⁸OCDE (Organização de cooperação e de desenvolvimento econômicos), CAF ( Corporacion Andinade Fomento) e CEPAL (2016), Latin American Economic Outlook (2016), Towards a New Partnership with China.
⁹Pôde-se observar isto em 2008-2009. A crise financeira nos países avançados provocou um “creditcrunch” (uma falta importante de liquidez), de modo que as filiais das empresas multinacionais repatriaram uma importante parte de seus lucros para suprir a falta de liquidez das matrizes nos países avançados, provocando, assim, uma mutação da economia mundial. Os fundamentos dos países emergentes latino-americanos, embora fossem relativamente bons, e seus fracos graus de abertura não foram muralhas suficientes face a “solidariedade” dos balanços das empresas transnacionais (filiais e matriz). Ver Toose A., 2018, Crashed, Comment une décinnie de crise financière a changé le monde, Les Belles Lettres.
¹⁰O México se especializou na exportação de produtos manufaturados destinados principalmente aos Estados Unidos e ao Canadá. Entretanto, diferente de numerosos países asiáticos, o México e os países da América Central se limitaram essencialmente a atividades de montagem, com exceção, em parte, de alguns setores como a indústria automobilística, onde o número de fornecedores aumentou graças não a uma política industrial, mas a vinda de empresas transnacionais. A abertura crescente não teve efeitos positivos sobre o crescimento, os efeitos multiplicadores sobre o PIB se mostraram fracos, o que explica que, dentre os grandes países latino-americanos, tenha sido aquele cujo crescimento foi o mais fraco nestes últimos vinte e cinco anos. A complexidade de seu tecido industrial é igualmente fraca e/ou aparente e enganosa.
¹¹Ver Abeles M., Perez Calvantey E., Valdecantes S., 2018, Estudios sobre finaciarizacion, Cepal.
¹²Provocadas ao mesmo tempo pela entrada líquida de dólares, devido à bonanza oriunda da venda de matérias-primas e à entrada de capitais, e pela transferência de renda dos imigrados aos Estados Unidos (caso do México, para o período anterior a 2012).
¹³A complexidade de uma economia depende do esforço empregado em pesquisa e desenvolvimento, quanto mais elevado é esse esforço, maior a probabilidade que a economia possa produzir produtos de alta complexidade. As exportações possuem duas características: sua ubiquidade e sua diversificação. A ubiquidade depende da escassez, a qual depende seja dos recursos naturais que o país tem ou não, seja da capacidade de produzir bens sofisticados que somente alguns países possuem. Afim de isolar esta última e construir um indicador de complexidade, se procura utilizar a diversidade das exportações para medir o grau de ubiquidade e, então, de complexidade. Por exemplo: Paquistão e Singapura tem um PIB parecido e exportam cada um 133 grandes produtos, a diversidade de suas exportações é, portanto, semelhante; mas os produtos exportados pelo Paquistão são igualmente exportados por 28 outros países, cujas exportações são além disto pouco diversificadas. Tal situação não é o caso de Singapura: somente 17 outros países exportam produtos similares aos seus e suas exportações são muito diversificadas. O grau de complexidade da economia de Singapura é, portanto, mais elevado que aquele do Paquistão, cujo renda per capita é bastante inferior. A partir destas duas variáveis, diversidade e ubiquidade, é possível construir um indicador. O grau de complexidade das exportações latino-americanas é fraco e decrescente, o inverso do que se pode observar em numerosos países asiáticos. Hausmann, Hidalgo e allii (2014), The Atlas of EconomicComplexity, Mapping Paths to Perspectives, Center for International Development, Harvard University, Harvard Kennedy School, Macro Connections MIT Media Lab.
¹⁴Coatz D. e Scheingart D. “La industria argentina en el siglo XXI: entre los avatares de la coyuntura y los desafíos estructurales”, Boletín informativo Techint, n 353, 2016, PP. 61-100, p. 37.
¹⁵Berger T., Chen C. e Frey C. B., 2017: “Cities, Industrialization and Job Creation: Evidence from Emerging Countries”, mimeo, Oxford Martin School, p.1-25.
¹⁶O cruzamento das ordenadas (porcentagem da população) e abcissas (porcentagem do rendimento distribuído) define uma linha curva nomeada curva de Lorentz, que representa a distribuição pessoal das remunerações.
¹⁷Salama P., 2012, op. cit,; Rocha S., 2014, Allocations sociales et pauvreté au Brésil, Ed. FMSH; Amarante V. e Colacce M., 2018: “Mas o menos desigualidades ? una revision sobre la desigualidad de los ingresos a nivel global, regional y nacional.” Revista de La Cepal, n 124, 7-35.
¹⁸Salama P., 2012, Les économies émergentes latino-américaines, ed. A. Colin; Rocha S., 2014, Allocationssociales et pauvreté au Brésil, ed. FMSH; Amarante V. e Colacce M., 2018: “Mas o menos desigualidades?
¹⁹Salama P., 2018, “Nuevas tecnologias: ¿bipolarización de empleos e ingresos del trabajo?” Revista Problemas del desarrollo, México, 1-24.