A desinformação existente em relação à situação brasileira quanto às vacinas e à campanha nacional de vacinação contra a COVID é muito grande. O presidente da república desinforma, desinforma o governador de São Paulo, desinforma o Ministério da Saúde e, não menos importante, desinforma também boa parte da imprensa. Neste último caso, a desinformação objetiva criticar governantes, no que há mérito, mas o panorama oferecido não é adequado.
Numa situação ordinária de campanha de vacinação, os fatos, grosso modo, acontecem do seguinte modo. O fabricante (não um governo) solicita o registro à Anvisa que, concedido, autoriza a entrada do produto no mercado brasileiro. No caso dos dois institutos isso resultará na venda da vacina ao Ministério da Saúde. Esta será realizada após um contrato que leva em conta, essencialmente, preço, número de doses e cronograma de entrega*. No momento em que essas providências são tomadas, o planejamento da campanha nacional já deve estar desenvolvido em fase adiantada pelo PNI, com a organização do calendário da campanha, da infraestrutura (salas de vacinação e logística de distribuição), da aquisição dos dispositivos para aplicação da vacina e do pessoal envolvido nos estados e municípios. Essa mecânica já está integralmente absorvida pela grande experiência do PNI.
Muito importante, a campanha publicitária também deverá estar planejada e desenvolvida. Ela é essencial para a adesão da população. O melhor exemplo de marketing ocorreu nas campanhas que eliminaram a poliomielite mediante a vacina Sabin, alcançada em 1994. Nela, foi criado um personagem – Zé Gotinha – que conquistou o imaginário das crianças e das suas famílias e tornou-se o ícone mais importante de várias campanhas no país. Enfatizo este fato para registrar que a cobertura insuficiente de algumas campanhas recentes (sarampo, p.ex.), deveu-se, entre outros determinantes, à falta de uma boa publicidade. E, vale lembrar que desta vez teremos o presidente da república trabalhando contra. O papel do CONASS e CONASEMS, assim como da imprensa, será indispensável.
Mas, o fato é que não estamos vivendo uma situação ordinária. A politização do enfrentamento da pandemia aliada à desorganização do Ministério da Saúde oferece um panorama de grande confusão. Partes de um plano de campanha foram recentemente apresentados após grande pressão por parte da opinião pública. A organização concreta da campanha no interior do ministério é desconhecida, entre outros motivos pelo ambiente de sigilo e desconfiança lá instituídos pela militarização. A tradicional colaboração de especialistas externos na organização da campanha foi muito prejudicada em função desse ambiente.
O Brasil está, certamente, atrasado na organização da campanha, muito embora seja equivocado, como faz uma parte da imprensa, afirmar que tenhamos nos omitido na busca precoce de vacinas. É um erro afirmar que houve omissão quando, precocemente, por iniciativa do Butantã e de Biomanguinhos/Fiocruz, foram abertas negociações para a compra de duas vacinas promissoras, com o benefício da existência de transferência de tecnologia. Foram os dois institutos que tiveram essa iniciativa, sendo que no caso de Biomanguinhos, o Ministério da Saúde aprovou a negociação com o empenho de recursos financeiros. No que se refere ao Butantã, a lamentável politização do tema por parte do presidente da república e a reação igualmente desastrada do governador de São Paulo fizeram com que a vacina Coronavac passasse a ser considerada uma vacina “de São Paulo”. Também por orientação da Fiocruz, o ministério associou-se à COVAX Facility da OMS. Ainda no caso do Butantã, a politização resultou, entre outras coisas, na lamentável negativa do governo federal em apoiar financeiramente a infraestrutura do instituto para a produção de sua vacina.
Até onde se conhece, as três iniciativas compreendem inicialmente 46 milhões de doses da Coronavac/Butantã, 100 milhões de doses da vacina AstraZeneca/Biomanguinhos e 42 milhões de doses de uma das vacinas aprovadas pela COVAX Facility. Biomanguinhos e Butantã poderão produzir mais doses das respectivas vacinas posteriormente, de acordo com as necessidades da campanha. Essas quase 190 milhões de doses são suficientes para imunizar todos os segmentos das populações mais vulneráveis elencadas pela maioria dos países. No Brasil, pouco mais de 80 milhões de pessoas.
É muito necessário entender que essas são as duas vacinas que deverão compor a espinha dorsal da campanha brasileira. Seus ensaios clínicos de fase três têm sido acompanhados por relatórios parciais enviados à Anvisa e a solicitação de registro será realizada em algum momento do mês de janeiro de 2021, assim que os dados dos ensaios forem consolidados pelos respectivos detentores das patentes dos produtos (Sinovac e AstraZeneca) e desde que os resultados dessa consolidação atestem níveis adequados de eficácia e segurança, como é esperado.
Insisto que é essencial compreender que essas duas vacinas são aquelas que mais importam para o Brasil. Outras vacinas podem vir a ser somadas a elas como um complemento, algumas delas inclusive liberadas para serem aplicadas por entes privados, caso obtenham registro na Anvisa. Há um poderoso lobby global em curso, patrocinado principalmente pela empresa Pfizer e, infelizmente, setores da imprensa embarcaram nesse lobby. Além de ser muito mais cara e exigir uma cadeia de frio extremamente rigorosa (-70o C), não haverá disponibilidade de doses da mesma para vacinação em massa entre nós. No meu entendimento, ela não será a principal vacina nas campanhas em nenhum dos países em desenvolvimento com grandes populações (o México, que poderia ser colocado nessa situação, tem um estatuto especial junto ao governo norte-americano – fronteira com os EUA, imigrantes, etc).
Recentemente, tem sido veiculada notícia que a Coronavac teria apresentado mais de 90% de eficácia na Turquia. Seria conveniente esclarecer (o que a imprensa não faz) que esse número deriva de testes em pouco mais de mil voluntários, expressando um resultado muito parcial de seu ensaio fase 3. Provavelmente, a Coronavac não chegará ao nível de 95% de eficácia, o que em nenhuma circunstância a invalida como ferramenta essencial na nossa campanha.
Nossa campanha deve ser nacional, coordenada pelo PNI e executada pelas três esferas do SUS. A logística mais complexa da mesma, com duas vacinas cada uma imunizando com duas doses, reforça esse caráter nacional e não há sentido na insistência do governador de São Paulo insistir na “campanha de São Paulo”. Além desses aspectos ligados à logística, campanhas estaduais quebram a espinha do SUS e do PNI e isso é inaceitável. Vamos entender que a vacinação contra o SARS-CoV-2 entre nós depende de um quadrilátero que deve atuar em perfeita harmonia, como vem fazendo há muitos anos. Seus vértices são PNI, a Anvisa, o Instituto Butantã e Biomanguinhos/Fiocruz. Qualquer outro caminho significa desinformação, politização e lobby: receita para um desastre.
Foto: Marcelo Camargo/ ABr
Reinaldo Guimarães é Professor do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da UFRJ e Vice-presidente da Abrasco.
* Por economia de espaço, deixo de fora o importante papel da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) e da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (CONITEC)