Dívida externa argentina: um novo capítulo de uma velha história, por Luiza Valenti e Ben-Hur Petry

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A trajetória da dívida externa da Argentina é um elemento fundamental para a compreensão das crises enfrentadas pelo país nos últimos anos. No último dia 16, o Ministro da Economia Martín Guzmán apresentou uma proposta para renegociação da dívida perante os credores internacionais – já rechaçada por boa parte deles -, iniciando um novo episódio na história econômica argentina. Este episódio, todavia, não é totalmente inédito no país.

Na primeira década do século XXI, após a deterioração das condições macroeconômicas provocada pela crise de conversibilidade de 2001, cujo subproduto foi um elevado endividamento em moeda estrangeira, o então presidente Néstor Kirchner promoveu a maior renegociação entre um país emergente com credores internacionais desenvolvidos.1 Resultando em uma economia de US$60 bilhões, reduzindo a exposição em moeda estrangeira em 60% e ampliando o prazo médio de vencimentos de 12 para 26 anos2, a negociação terminada em 2004 significou o início de um ciclo de substancial crescimento econômico, aliado à promoção do emprego e da renda, dramaticamente afetados pela crise cambial.

Considera-se que a renegociação de Néstor Kirchner foi exitosa, na medida em que 92% dos credores aceitaram os termos propostos. Um fator determinante para este sucesso foi a conjuntura política latino-americana, que permitiu que a posição argentina frente aos credores internacionais – especialmente o FMI – fosse endossada pelos diversos governos progressistas à frente de vários países na época, alguns deles também em processo de renegociação de suas dívidas.3

Cerca de 15 anos mais tarde, a Argentina volta a necessitar de uma reestruturação da sua dívida, porém em condições bastante diversas das do passado.4 O governo de Alberto Fernández enfrentará o seguinte cenário: ausência de alianças estratégicas no continente, tendo em vista o advento de governos conservadores em boa parte da América Latina; finanças públicas deterioradas por um processo de endividamento, iniciado durante o governo Cristina Kirchner pós-crise de 2009, e aprofundado durante o governo Macri; e o pior, a pandemia da COVID-19, que vem demandando esforços do governo para a contenção dos efeitos econômicos da crise. Esse último agravante, mesmo que comum ao resto dos países, é ainda mais delicado em uma economia vulnerável e com fragilidades macroeconômicas como a Argentina.

No dia 17 de abril, em meio a uma quarentena nacional oficializada por Fernandéz5, o governo propôs uma oferta de reestruturação da dívida aos credores privados. O cenário já indicava que os vencimentos não seriam pagos dentro do previsto, fazendo com que o próprio governo já assumisse uma situação de virtual moratória. Guzmán ainda disse que “durante alguns meses, decidimos fazer um esforço para estabelecer um processo e continuamos a pagar com reservas (do Banco Central), mas a Argentina já não tinha capacidade de afrontar os pagamentos da dívida. Com o coronavírus, menos ainda.”6

Com uma proposta de dedução de 5,4% no estoque da dívida e de 62% nos juros dos títulos, a oferta implica em uma redução total de 41,5 bilhões de dólares. Além disso, foi pedido um período de carência de três anos, que permite que o país não faça nenhum desembolso até o ano de 20237. A reação não foi tão positiva quanto na negociação liderada por Néstor: no dia 20 de abril, três dos principais grupos de credores rejeitaram a proposta, alegando que é uma contrapartida desproporcional a longo prazo e que a oferta não foi amplamente discutida com todas as partes envolvidas.

Vale ressaltar que esse desacordo inicial não foi considerado uma resposta final pelos credores, que se mostraram dispostos a negociar. Mais uma vez, o envolvimento do FMI apareceu como decisivo na economia do país, sendo uma das prerrogativas do Comitê de Credores da Argentina para dar seguimento às tratativas8. Entretanto, até nessas informações há um descompasso: especula-se que essa proposta já havia sido apresentada para as partes envolvidas desde março, o que torna injustificável a alegação de surpresa dos credores. O governo, neste contexto, afirma que a proposta não é negociável9.

O grande desafio para a reestruturação da dívida argentina se assemelha a um conhecido entrave político-econômico do país e levanta o questionamento do porquê a Argentina repete a trajetória de um endividamento insustentável10. Enquanto os credores privados apontam para a necessidade de políticas de austeridade, o novo governo segue por outro caminho. Diferentemente do seu antecessor Maurício Macri – que pôs em marcha uma série de medidas liberalizantes e que defendia a reinserção do país no mercado global -, Alberto Fernández prioriza o campo social e defende um maior investimento estatal11. Cabe ao novo governo manter a saúde econômica do país sem deixar de lado as necessidades evidentes de atuação do Estado perante as consequências da pandemia. O primeiro passo, ironicamente, consiste em uma das maiores dificuldades para sua vice-presidente Cristina Kirchner: o diálogo com setores não tão alinhados na esfera política e ideológica. Já o segundo, um ponto fraco do seu antecessor Mauricio Macri: entender as consequências de priorizar o mercado em detrimento do bem-estar social.

Foto: presidente da Argentina, Alberto Fernández, durante videoconferência com os líderes do G20. Divulgação/ Casa Rosada

Luiza Pecis Valenti – Doutoranda em Economia do Desenvolvimento pelo PPGE/UFRGS, mestre em Estudos Estratégicos Internacionais com ênfase em Economia Política Internacional pelo PPGEEI/UFRGS e especialista em Finanças, Investimento e Banking pela PUCRS. Pesquisadora do Núcleo de Estudo e Pesquisa dos Países da América do Sul (NEPPAS) – FCE/UFRGS e coordenadora da sub-área de estudos sobre a Argentina.

Ben-Hur Petry – Mestrando em Economia do Desenvolvimento pelo PPGE/UFRGS e graduado em Ciências Econômicas pela mesma universidade. Pesquisadora do Núcleo de Estudo e Pesquisa dos Países da América do Sul (NEPPAS) – FCE/UFRGS e Sócio-proprietário da Gestor Um Consultoria Financeira

1 LEVITSKY, Steven; MURILLO, Maria Victoria. Argentina: From kirchner to kirchner. Journal of Democracy, v. 19, n. 2, p. 16-30, 2008.

2 HEIDRICH, Pablo. Argentina buscando una salida: Kirchner, el FMI y la renegociación de la deuda externa. Chroniques des Amériques, v. 5, n. 21, 2005.

3 WAINER, Andrés Gastón. La renegociación de la deuda durante el kirchnerismo. 2017. https://ri.conicet.
gov.ar/bitstream/handle/11336/79401/CONICET_Digital_Nro.1f9b8fe1-700b-4bdc-86a4-6599c936dece_A.pdf?sequence=2&isAllowed=y

4 Em 2010, em decorrência da crise do subprime, o país também passou por um processo de negociação de sua dívida externa, porém em montantes bem menores que em 2004.

5 https://www.thenation.com/article/politics/coronavirus-argentina-humane-response-to-covid-19-look-like/

6 https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/04/22/argentina-nao-deve-pagar-hoje-juros-da-divida -e-segue-rumo-ao-calote-total.htm?cmpid

7 https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/04/16/argentina-apresenta-proposta-de-reestruturacao-de- divida-com-corte-de-62percent-sobre-juros.ghtml

8 https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/04/20/grupos-de-credores-rejeitam-proposta-da-argentina- para-renegociar-divida.ghtml

9 https://www.cronista.com/columnistas/Canje-de-deuda-por-que-el-Gobierno-considera-que-la-oferta-es-definitiva-y- cual-es-la-zanahoria-20200418-0001.html

10 https://www.cronista.com/columnistas/Tomalo-o-dejalo-la-formula-para-acordar-o-entrar-a-un-nuevo- default-20200421-0089.html

11 Nesse momento de incertezas, o governo argentino assegurou a interrupção das atividades lançando mão de garantias para micro e pequenas empresas, para grupos de risco e população de baixa renda. Além disso, já investiu cerca de 2% do PIB para mitigar os efeitos da crise. Algumas das medidas adotadas foram a suspensão por 180 dias cortes de energia elétrica, água, gás encanado, telefone fixo, móvel e internet por falta de pagamento e congelou todos os aumentos de aluguel até setembro.

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