Em tempos de pandemia, muito se fala sobre o fim da hiperglobalização de bens e capitais, o recrudescimento da xenofobia e do nacionalismo, e o fracasso das organizações multilaterais como a ONU e a UE em produzir respostas aos problemas de nossa era. Pensadores de vários matizes ideológicos vêm tecendo opiniões sobre como será o mundo no pós-epidemia e a maioria aposta em um provável retraimento mais que passageiro da globalização, com conseguintes danos às chamadas cadeias globais de valor e a possibilidade de reindustrialização de vários países que haviam terceirizado parte de seu tecido produtivo, especialmente no lado ocidental. Concomitantemente, estes variados teóricos preveem aumento do protecionismo industrial, desconfiança para com instituições multilaterais e fortalecimento dos sistemas públicos de saúde e de redistribuição de renda1.
Queremos neste texto contribuir para este debate apresentando a visão de dois autores geopolíticos que percebem a crise do Covid-19 não como o início de uma ruptura na ordem liberal internacional das últimas décadas, mas como o provável desfecho de um processo que já caminhava a passos largos pelo menos desde o início do século XXI. Estes pensadores são Peter Zeihan, um geoestrategista que trabalhou sob a supervisão de George Friedman na plataforma de inteligência Stratfor, e mais tarde criou a própria empresa de consultoria (Zeihan on Geopolitics); e John Mearsheimer, um aclamado cientista político conhecido por sua visão realista no campo das relações internacionais e suas críticas às administrações Bush e Obama. Como veremos abaixo, os dois concordam a respeito do iminente fim da ordem liberal que regeu o mundo até recentemente, e os dois se anteciparam aos mais recentes prognósticos sobre esta crise.
Numa série de três obras de fácil e acessível leitura, Peter Zeihan busca nos convencer de que o mundo em que vivemos nos últimos 70 anos é, do ponto de vista histórico, absolutamente anormal2. Quando os aliados avançaram sobre Berlim em Maio de 1945, os EUA se depararam com uma situação preocupante: a URSS havia liberado 30 vezes mais território que os norte-americanos no final da II Guerra e ameaçava tornar realidade o antigo medo de Mackinder, o domínio do continente Eurasiano por uma potência do Heartland. Para combater o pesadelo russo, os EUA, de longe a maior e mais poderosa economia do mundo em 1945, efetivamente criaram o sistema internacional como nós o conhecemos. Nesta nova ordem pós-1945, todo mundo que fosse um aliado dos EUA poderia comprar matéria-prima em qualquer um dos cantos do mundo, trabalhá-la e transformá-la em bens acabados, e vendê-los em troca de moeda forte, principalmente no próprio mercado norte-americano. Nas palavras de Zeihan, “geography was turned off”. Nem mesmo o Império Britânico no auge de seu poder podia garantir acesso a mercados em todo o mundo, pois os britânicos eram “apenas” um entre vários impérios com suas excludentes zonas econômicas de proteção.
Com esse suborno econômico em troca da aceitação de sua agenda de segurança, os norte-americanos foram, um por um, “comprando” antigos inimigos de guerra como a própria Alemanha e o Japão, reconstruídos com seu dinheiro, e transformados em protetorados militares e aliados econômicos preferenciais do gigante americano. Até mesmo a China, quando do histórico encontro entre Nixon e Mao em 1972, torna-se participante desta globalização antissoviética criada pelos Estados Unidos.
O problema, continua Zeihan, é que um dia os alemães derrubaram o Muro de Berlim e a Guerra Fria acabou. Numa série de seis mandatos subsequentes (Clinton, Bush e Obama), os presidentes norte-americanos fizeram política externa em um modus operandi quase inercial, ignorando que as instituições e alianças criadas na época da Guerra Fria já não faziam mais sentido agora que a ameaça nuclear soviética pertencia ao passado. As primeiras fissuras neste sistema de alianças vieram – após 10 anos de incontestável unipolaridade e hegemonia cultural estadunidense – após a Guerra ao Terror, que nunca conseguiu convencer aliados como a França e a Alemanha de que o terrorismo era uma ameaça existencial. No mesmo ano (2001-2) se dá a implementação do Euro, concebido para “retirar” um continente inteiro do sistema do dólar, algo que para os EUA só poderia ter soado como o segundo alarme da traição, já que a existência de 15 economias capitalistas democráticas vivendo em coexistência pacífica na Europa parecia ter sido obra, em primeiro lugar, da própria garantia de segurança dada pelos norte-americanos.
Os 15 anos subsequentes viram, pouco a pouco e acelerando-se com o governo Obama, um retraimento dos norte-americanos em direção a assuntos internos e uma falta de disposição para intervir diretamente em tabuleiros distantes. Trump coroou o processo com a rápida retirada de tropas norte-americanas do exterior, a descrença nas instituições multilaterais e nos tratados de segurança (como a OTAN), e a disposição de fechar o seu mercado até mesmo para antigos aliados. O mais importante, no entanto, é que Donald Trump foi o primeiro presidente norte-americano em 25 anos a repensar o papel da grande potência em um mundo onde não havia mais, explicitamente, grandes ameaças à segurança norte-americana e onde, portanto, os subsídios econômicos dados a aliados geopolíticos da época da guerra fria passavam a parecer caros demais.
Bom para os norte-americanos, nem tanto para os demais. Para muitos países, conclui Zeihan, o abandono por parte dos EUA da globalização que eles mesmos gestaram não poderia ser mais catastrófico. Países como Alemanha, China, Coreia do Sul, Arábia Saudita e Irã, só para citar alguns, simplesmente não conseguem sustentar economias modernas e dinâmicas fora da Pax Americana. O que seria da Alemanha sem a implícita garantia de segurança e guarda-chuva nuclear norte-americanos? O que seria da Coreia e China sem o acesso à energia, matérias primas e mercados garantidos pela marinha norte-americana? O que seria da Arábia Saudita e Irã se os Estados Unidos retirassem totalmente as suas tropas da região? Em um mundo em que a geografia “is turned back on again”, só prosperarão aqueles países que já conseguiam funcionar relativamente bem anteriormente à Pax Americana, isto é, países que possuem relativo isolamento geográfico ao mesmo tempo que dispõem de boa infraestrutura de comunicação interna (ex: vias navegáveis), além de ser capazes de obter com pouco esforço – produzindo em casa ou apoderando-se de vizinhos – os recursos básicos à existência de modernas economias industriais, como alimentos, minérios e energia. A lista é pequena.
Em Bound to Fail: the rise and fall of the liberal international order3, o cientista político John Mearsheimer parte de pressupostos diferentes, mas chega a conclusões parecidas com as de Peter Zeihan. Em contraste ao geoestrategista, Mearsheimer acredita que a ordem liberal internacional é ainda mais recente, datada do fim da Guerra Fria. Só após a Guerra Fria a ordem mundial teria se tornado efetivamente internacional, pois antes o mundo estava dividido em duas “bounded orders” rivais, e a ordem soviética não fazia parte, in toto, da globalização norte-americana. Com a vitória norte-americana, no entanto, o mundo passou a ser regido por uma ordem internacional em que o hegemon tinha três objetivos explicitamente liberais: (1) disseminar pelo mundo as democracias, (2) promover a abertura econômica, (3) e integrar Estados às instituições multilaterais. Exemplos deste comportamento podem ser encontrados na política Clintoniana de alargamento da OTAN e envolvimento (engagement) com a China, e na doutrina neoconservadora de Bush filho, de tentativa de construção de democracias liberais no Grande Oriente Médio.
Infelizmente, para Mearsheimer os anos dourados desta ordem global liberal duraram pouco, de aproximadamente 1990 a 2004. A partir de 2005, no mais tardar, as ocupações no Iraque e Afeganistão davam sinais de que seriam caras e impopulares. Em 2008 vinha a grande crise financeira internacional e no início da década seguinte livros sobre a “volta da geopolítica” começavam a abundar4: havia ficado claro que a integração de potências como a China e a Rússia à ordem mundial não necessariamente vinha acompanhada da transição democrática sonhada pelos liberais.
Para Mearsheimer nada disso era surpresa, entretanto. O autor argumenta que a “nova ordem americana” continha as sementes da própria destruição pelos seguintes motivos: (1) para a decepção dos neoconservadores, há alternativas à democracia liberal e guerras intermináveis de propagação quase religiosa dos valores ocidentais estavam fadadas a produzir crescente antiamericanismo; (2) a ordem liberal internacional se opõe ao nacionalismo, uma ideologia muito mais antiga e motivadora da paixão humana; (3) a chamada hiperglobalização causa muitos problemas econômicos e sociais, algo percebido e propagandeado pela campanha que elegeu Donald Trump; (4) por último, os “subsídios econômicos” dos EUA à China, provavelmente o país que mais se beneficiou da globalização, efetivamente minaram a unipolaridade ao criar um rival econômico à altura dos Estados Unidos.
Diferentemente de Zeihan, Mearsheimer é mais otimista em relação à capacidade de a China sobreviver fora da Pax Americana e defende que estamos caminhando em direção a uma nova bipolaridade, que dividirá o mundo em duas esferas concorrentes, a da China e a dos Estados Unidos. De qualquer forma, as duas visões antecipam o fim da globalização como nós a conhecemos, veem o fenômeno Donald Trump como muito mais uma consequência do que uma causa das tensões do sistema internacional, e apontam que os movimentos nacionalistas em resposta ao Coronavírus vieram para ficar.
Algumas palavras sobre o Brasil se fazem bem vindas nesta conclusão. Na leitura de Peter Zeihan, o Brasil infelizmente é um dos muitos países que sofrerão uma “correção econômica para baixo” no cenário pós-pandemia. Muito do nosso desenvolvimento no pós-guerras foi do tipo “a convite”5, e nossa geografia interna não é das mais propícias para a integração econômica em um mundo de escasso e caro capital. De qualquer jeito, o Brasil também se beneficiou muito menos da globalização do que países da Europa e Leste Asiático – muitos dos quais exportam metade de sua produção –, e por isso também temos muito menos a perder. Já na visão de Mearsheimer o Brasil provavelmente terá que escolher – ou ser escolhido – em qual dos dois blocos participará. Já adiantamos, contudo, que pouquíssimos países do mundo têm capacidade de projeção militar em águas azuis e, especificamente, nas águas da América do Sul, e a China não é um deles.
Isto não sugere, é claro, uma adesão automática à polaridade norte-americana, mas lembra os leitores mais afeitos a uma aliança com a China que, em um mundo pós-liberal de revigorados condicionantes geográficos, esta estará preocupada com questões e tabuleiros geopolíticos muito mais determinantes para a sua sobrevivência material.
Tiago Nasser Appel é bacharel em Ciências Econômicas e Mestre em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Federal do Paraná. Doutor em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Foto: Stephanie Chasez/ Casa Branca
1 Ver, por exemplo, Slavoj Zizek (https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/zizek-ve-o-poder-subversivo-do-coronavirus/); José Luís Fiori (https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2020/04/o-virus-o-petroleo-e-a-geopolitica-mundial-por-jose-luis-fiori/); Hélio Farias (https://www.researchgate.net/publication/340601766_Geopolitica_e_Capacidades_Nacionais_de_Defesa_um_olhar_sobre_o_cenario_emergente_em_tempos_de_pandemia); André Lara Resende (https://www.ovale.com.br/_conteudo/_conteudo/brasil/2020/04/101919–sera-uma-oportunidade-de-transformar-o-estado-cartorial-e-patrimonialista-num-estado-eficiente-e-a-favor-da-populacao—diz–um-dos-autores-do-plano-real.html).
2 The Accidental Superpower (Twelve, 2014); The Absent Superpower (Zeihan on Geopolitics, 2017); Disunited Nations (Harper Business, 2020).
3 Em International Security, Vol. 43, N. 4 (2019). Disponível em: https://www.belfercenter.org/publication/bound-fail-rise-and-fall-liberal-international-order
4 Ver, por exemplo, The Next Decade: what the world will look like, de George Friedman (Double Day Books, 2011), The Revenge of Geography, de Robert D. Kaplan (Random House, 2012), e Prisoners of Geography, de Tim Marshall (Elliot & Thompson, 2015).
5 Alusão ao termo desenvolvido pelos professores da UFRJ Carlos Ferreiros e Franklin Serrano em Padrões Monetários Internacionais e Crescimento (In: FIORI, J., L. Estados e Moedas. Vozes, 1999). Por “desenvolvimento a convite” os autores se referem a uma série de políticas comerciais, cambiais e de investimento patrocinadas ou toleradas pelo hegemon para subsidiar um aliado por razões de segurança.