Introdução
O quadro econômico atual tem se mostrado de complexa transição, haja vista a ocorrência de diversos marcos de esgotamento dos processos amadurecidos até a virada do século. A crise do mercado subprime americano de 2007-8 trouxe o que os economistas têm chamado Grande Recessão e agora tem no protecionismo sua face mais atual. A introdução e a crescente difusão de inovações tecnológicas de alto e amplo impacto, das quais a inteligência artificial é um ícone, têm acelerado as transformações produtivas. O alcance de níveis limítrofes de poluição e aquecimento global têm exigido medidas transformadoras da produção e do consumo, contrastando com a pouca significância das medidas até então adotadas.
Nesse contexto, a China, maior economia emergente do planeta, também tem rebalanceado seus elementos dinamizadores, num esforço de continuar respondendo aos desafios de seu desenvolvimento. Em primeiro lugar, porque essa trajetória tem sido alicerçada na economia global, havendo a China se beneficiado dos capitais, das tecnologias, dos recursos naturais e dos mercados consumidores mundiais. Em segundo lugar, porque o tipo de crescimento econômico tem tensionado severamente as variáveis ambientais chinesas – e globais -, com implicações negativas sobre as condições de vida de sua população, bem como mostrando os limites de sustentabilidade do seu desenvolvimento. Por fim, porque o ciclo de urbanização e mobilização de sua enorme população como força de trabalho industrial naturalmente alcança seus limites, à medida que gradativamente diminui a disponibilidade populacional para essa realocação produtiva.
Em vista disso, na década que se encerra, a China tem envidado[1] esforços de reorientação de seu desenvolvimento, cuja consolidação agora se resume na expressão “economia de circulação dual”, incorporada nos documentos utilizados na quinta seção plenária do 19º Comitê Central do Partido Comunista Chinês, ocorrida em outubro último. Desse evento resultará elaborado o 14º Plano Quinquenal para o Desenvolvimento Econômico e Social (2021-2025), excepcionalmente acrescido dos Objetivos de Longo Prazo para o Ano de 2035 (meio termo do período de alcance da segunda meta centenária).
Dada a importância da China – economia e sociedade – em nível global, importa acompanhar suas transformações, posto que, como a própria imprensa chinesa aponta: se a China está se ajustando, isso requererá do mundo algum grau de ajustamento. Nesse sentido releva explorar as possibilidades de interpretação do modelo de circulação dual, com vistas ao amadurecimento dos desafios e das oportunidades que se apresentam às economias latino-americanas.
Como a China apresenta sua concepção de Economia de Circulação Dual
A China apresenta o conceito de Economia de Circulação Dual como um modelo econômico que toma por base o componente geográfico representado por dois campos: a economia doméstica e a economia internacional. Nesse sentido, a implementação desse modelo implica no rebalanceamento da matriz econômica chinesa, nela considerada suas interfaces externas. Trata-se, portanto, de uma estratégia que buscará a reconfiguração da riqueza produzida internamente ao território chinês, bem como da relação da China com a riqueza produzida externamente. É importante destacar que o país tem reiterado sua postura globalista, no contexto da disputa comercial com os Estados Unidos. Na divulgação da Economia de Circulação Dual esse discurso foi incorporado no sentido de que a China não reduzirá sua interdependência com a economia mundial. Porém, fica claro que essa relação será reorganizada.
A circulação dual pode referir a um rebalanceamento pelo lado da oferta, em vários aspectos. Num plano mais geral, pode compreender o aprofundamento da transição já em curso de uma economia baseada na incorporação da força de trabalho – mobilização de fatores, nos termos da teoria de W. A. Lewis, e como abordado por Celso Furtado – para uma economia baseada em inovação. À medida que os ganhos de produtividade derivados da realocação de um trabalhador rural para a indústria vão perdendo fôlego, necessário se faz articular outros motores para a sustentação do crescimento da produtividade. Isso comumente se faz com a conformação e a consolidação de um sistema nacional de inovação capaz de aperfeiçoar métodos, técnicas e insumos, bem como de introduzir novos produtos com potencial econômico emergente. Certamente não implicará numa mudança relevante nas próximas décadas. Contudo, parece claro que a China não está disposta a esperar os problemas se agigantarem para só então enfrentá-los.
Um movimento nessa direção estaria associado ao objetivo de lograr um desenvolvimento de alta qualidade para o que a auto-suficiência em ciência e tecnologia é componente-chave. A área de semicondutores é citada como estratégica para o alcance de posição segura e privilegiada nos segmentos de inteligência artificial, comunicação 5G e supercomputação – inclusive computação quântica. Pela abordagem das cadeias globais de valor, o novo modelo envolveria a internalização de etapas ou elos considerados sob diversos aspectos relevantes para a economia do País, como por exemplo, elos estratégicos em termos de conhecimento e inovação; ou em termos de agregação de valor e de geração de emprego e renda; da otimização do uso de materiais e energia; ou ainda em termos de sua maior ou menor capacidade para dominar e orientar as cadeias produtivas nas quais estão inseridos.
Esse objetivo é apresentado juntamente com a reafirmação de compromissos associados aos interesses dos capitais internacionais, quais sejam o de promoção do comércio e a consolidação de garantias e benefícios ao investimento estrangeiro no País. Dessa forma, o novo modelo reforça a posição chinesa de promotora da globalização – que lhe tem sido bastante favorável nas últimas décadas -, mormente no que tange ao comércio e ao investimento externos, não obstante o contexto de crescente conflituosidade das relações comerciais internacionais, bem como de refluência do investimento.
Em segundo lugar, pode referir-se a um rebalanceamento de sua matriz produtiva no sentido de recomposição de atividades, com a relativa redução de atividades mais intensivas em recursos naturais e trabalho e o aumento relativo das atividades intensivas em capital e em conhecimento. Embora este enfoque guarde estreita relação com o acima abordado, trata-se, aqui, de analisar as possibilidades de ajuste da matriz produtiva pelo recorte de composição de fatores. Por certo, num país com forte necessidade de gerar empregos, qualquer movimento na recomposição do tecido produtivo deverá vir combinado com medidas atenuantes do desemprego estrutural e tecnológico. Na análise sob esse prisma, também deve ser observado que pode haver indistinção entre o caráter doméstico ou internacional das atividades chinesas, haja vista o crescente investimento externo do País.
Um desdobramento particular desse recorte diz respeito aos segmentos produtivos voltados à alimentação e que são significativamente influenciados por diretrizes relacionadas à segurança alimentar e nutricional chinesa. Sendo o país detentor da maior população mundial; possuindo baixo percentual de terras agricultáveis; sendo um dos maiores importadores de alimentos do mundo; e já tendo enfrentado historicamente situações dramáticas de desabastecimento e fome, é de se esperar que o alcance de um determinado grau de segurança alimentar e nutricional adquira destacada importância numa eventual reorganização dos setores envolvidos, com a preservação de atividades-chave em território doméstico, bem como com o aprofundamento dos investimentos no exterior nos segmentos relacionados às fontes alimentares relevantes.
Um recorte analítico importante diz respeito à formação bruta de capital fixo. Dado o conjunto de prioridades elencadas no campo tecnológico, um possível rebalanceamento deve se dar do investimento em capital fixo para o investimento em pesquisa e desenvolvimento. Nesse sentido, os segmentos de semicondutores conformam um bom exemplo, dado que os esforços para a formação de capacidades nessa área requerem maiores inversões em pesquisa e desenvolvimento para, posteriormente, serem viabilizadas inversões em capital fixo destinadas à produção de componentes e aparelhos eletrônicos.
Pelo lado da demanda, a nova estratégia econômica chinesa vem ao encontro de seu duplo desafio. Desde a Grande Recessão, as baixas taxas mundiais de crescimento econômico, potencializadas com a crise sanitária de 2020, acenam com uma capacidade de demanda global incompatível com as taxas de crescimento econômico da China das últimas décadas. Isso representa um problema de absorção da riqueza gerada pela “fábrica do mundo”. A isso se soma o conjunto das tensões comerciais, das quais a guerra comercial com os Estados Unidos é a faceta mais evidente de que os mercados de consumo serão cada vez mais utilizados pelas nações como instrumento de desenvolvimento econômico. Por outro lado, a participação do consumo das famílias na demanda agregada chinesa historicamente apresenta níveis inferiores aos dos países de renda semelhante. Nesse cenário, a circulação dual pode significar um rebalanceamento da demanda agregada chinesa tal que reoriente a absorção privilegiando a absorção doméstica.
Esse quadro externo se combina com os desafios internos chineses associados ao alcance de um nível médio de renda, naquilo que os economistas chamam de “armadilha da renda média”. Com a redução do contingente disponível para a incorporação ao mercado laboral e a elevação dos rendimentos do trabalho e do custo de vida nos centros urbanos, as vantagens das quais a China tem tirado proveito nas últimas décadas começam a estreitar-se. A obtenção de elevadas taxas de acumulação de capital proporcionadas pela exploração de uma mão-de-obra muito mal remunerada não parece apresentar longo horizonte, havendo a remuneração do trabalho na China já ultrapassado a de alguns de seus vizinhos asiáticos.
Ainda outros elementos estão compreendidos na concepção de Economia de Circulação Dual, nos termos sintéticos apresentados, cujo destaque representa não apenas a assunção da devida complexidade do processo, mas também o fato de que os desafios assumem novo patamar de dificuldade. Nesse contexto se insere a demarcação de objetivos associados às variáveis ambientais, cuja demanda por recursos e a carga sobre eles tem se tornado particularmente sensível na China – recursos hídricos e atmosfera. A questão ambiental pode influir particularmente na organização da estratégia de reposicionamento nas cadeias produtivas, dado o diferencial de potencial poluente das atividades econômicas. Nesse sentido, o rebalanceamento poderá implicar na externalização de segmentos de maior potencial poluente e na internalização daqueles cujo potencial é menor. A título de ilustração, já nos anos 1990 o então florescente complexo coureiro-calçadista chinês priorizava a aquisição de couros brasileiros em estado inicial de curtimento, cujos processos produtivos apresentam os maiores potenciais poluentes da cadeia coureira.
Os dois elementos acima referidos – demanda e meio ambiente – estão entre os mais prementes desafios domésticos, contemplados na concepção do novo modelo. A eles se soma, contudo, o objetivo de avanço na internacionalização do Renminbi, num desafio internacional chinês que denota tanto o alcance global da sua economia quanto a complexidade das questões que estão sendo enfrentadas.
Outros elementos interpretativos do novo modelo chinês
Apesar de o conceito de Economia de Circulação Dual ser apresentado com a ênfase depositada sobre a questão geográfica, outros elementos interpretativos são possíveis. A combinação dos recortes organizativos da proposição – externo/interno, oferta/demanda – com variáveis transversais – sustentabilidade ambiental e segurança, entre outras – abre diversas possibilidades de ação. Por exemplo, ações de modernização tecnológica voltadas ao aumento da eficiência energética e à diversificação da matriz energética respondem a desafios de sustentabilidade tanto econômica quanto ambiental. A China atualmente já ganha destaque pela elevada competitividade de sua indústria de painéis solares, bem como pela liderança na tecnologia de transmissão de energia elétrica de ultra alta voltagem. Essas capacidades econômicas produzem notórios efeitos positivos internos, mas também são instrumentos de alavancagem da posição chinesa no exterior, com a universalização de seus produtos e serviços. Por outro lado, o aumento da geração de energia por meio de fontes renováveis contribui para atenuar a crescente demanda chinesa por petróleo, com reflexos sobre seu grau de dependência externa desse insumo estratégico, além dos benefícios ambientais.
Outro elemento interpretativo diz respeito aos investimentos que a China realiza no exterior. Havendo se tornado uma economia exportadora líquida de capitais, a expansão da economia chinesa não pode mais ser entendida como um fenômeno que ocorre apenas dentro de seu território. Nesse sentido, quaisquer reflexões sobre internalização e externalização de atividades econômicas chinesas precisam ser consideradas não apenas como uma relação entre o País e o “mercado internacional”, mas também como um desdobramento da atuação econômica da China fora do seu território. Uma consequência disso é que as estratégias de inversões chinesas no exterior – que são predominantemente realizadas por empresas estatais – poderão estar ainda mais condicionadas pelos propósitos de desenvolvimento do País, com efeitos a serem analisados nos respectivos países de destino dessas inversões.
Por fim, no que tange ao aspecto geográfico, importa considerar que a forte presença econômica mundial chinesa – comércio, investimento e, embora em menor escala, moeda – conforma territorialidades econômicas que são componente-chave da estratégia chinesa. Nesse sentido, o lançamento da Iniciativa do Cinturão e da Rota em 2013 reflete a importância da construção de territorialidades econômicas, do que o complexo sistema de infraestruturas energéticas e de transportes no entorno asiático constitui-se num rico exemplo. Esse componente estará presente nos movimentos de ajuste econômico chineses do âmbito da Economia de Circulação Dual.
Considerações finais
O período que se inicia em 2021 marca, para China, um processo de afunilamento para o alcance do desenvolvimento econômico e social projetado já em vários de seus planos quinquenais. A etapa de crescimento, por assim dizer, “extensivo”, com a mobilização de fatores humanos e de capital,[1]trouxe às portas do século XXI uma China “fábrica do mundo”, com o aumento da prosperidade nacional, embora com elevados custos ambientais que corroboram sua insustentabilidade.
A sinalização do esgotamento desse modelo já aparece com bastante clareza nos documentos oficiais chineses, bem como nas iniciativas para a transição a um novo referencial de desenvolvimento. As recentes diretrizes e as ações têm se mostrado simultaneamente voltadas ao alcance de patamares mais elevados de desenvolvimento econômico e social, bem como ao equacionamento de problemas decorrentes da implementação do modelo anterior.
Paralelamente, o modelo até então vigente implicou numa China significativamente aberta para o mundo, resultando numa grande e multifacetada interdependência. Agora que a China inicia um processo de aprofundamento de sua transição econômica, o mundo inteiro estará nele implicado. Por outro lado, o quadro de crise econômica, financeira e sanitária que marca o início do presente século inaugurou um período de mudanças da ordem global, o que aumenta as incertezas sobre o futuro.
É nesse cenário que cada país – e a América latina, em especial – cotejará seus desígnios de desenvolvimento com o conjunto de oportunidades e ameaças que se conformará daqui para a frente, naquilo que Aldo Ferrer se referiu, à época com uma grande dose de pessimismo, à capacidade de proporcionar respostas eficazes ao dilema de desenvolver-se em um mundo global.
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Alberto Nogueira é Doutorando no Programa de Pós Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-UFRGS). Possui graduação em Ciências Econômicas (1994) e mestrado em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1998). Pesquisa comércio e investimentos chineses na América do Sul.
FONTES:
INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. Wages, productivity and labour share in China. Bangkok: ILO Regional Office for Asia and the Pacific, 2016. Research Note. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—asia/—ro-bangkok/documents/publication/wcms_475254.pdf. Acesso em: 14 nov. 2020.https://news.cgtn.com/news/2020-10-26/The-CPC-s-fifth-plenum-and-China-s-14th-Five-Year-Plan-2021-2025-USRK8dzcpa/index.htmlhttps://news.cgtn.com/news/2020-11-03/Main-economic-takeaways-from-CPC-s-proposals-for-14th-Five-Year-Plan-V7INDT6pFe/index.htmlhttp://www.china.org.cn/china/2020-11/03/content_76872613.htm
FERRER, Aldo. História de la globalización: orígenes del Orden Económico Mundial. 2a ed. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2014. E-book.
LEWIS, W. A. Economic Development with Unlimited Supplies of Labour. The Manchester School, v. 22, n. 2, may/1954.https://amp.economist.com/china/2020/11/07/chinas-dual-circulation-strategy-means-relying-less-on-foreigners?__twitter_impression=truehttps://www.economist.com/china/2020/11/07/chinas-dual-circulation-strategy-means-relying-less-on-foreigners
Notas de Rodapé
[1] Para Lewis e Furtado, mobilização de fatores. Para Aldo Ferrer, os fatores tangíveis (população e território) e aqueles intangíveis (acumulação em sentido amplo).