Por Allysson Lemos
Enquanto o mundo debate o tratamento e as mazelas provocadas pela pandemia do Covid-19, a Bolívia vive uma situação de transição em sua política doméstica, agravada pela atual crise sanitária. A denúncia de fraude nas eleições, nunca confirmadas pela então auditoria da OEA, levou a renúncia do presidente Evo Morales e sua fuga para o México, após ataques a políticos de seu partido e ameaças contra sua família. O desfecho de tal situação se deu com a posse de Jeanine Añez como presidente interina, sob polêmica execução ou não dos ritos oficiais, o que dividiu o povo boliviano, com parcela significativa exigindo a volta de Evo Morales.
Para entender melhor a situação no contexto atual, realizamos esta entrevista com Frany Gómez, licenciado em Antropologia e mestre em Filosofia e Política pela Universidad Mayor de San Andrés. Gómez foi também importante colaborador em minha dissertação de mestrado “Para Além do Estado-Nação? Disputas políticas sobre a ideia de plurinacionalidade na Bolívia.”, defendida na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Na ocasião, o entrevistado trabalhava como antropólogo no Ministério das Autonomias Indígenas, e hoje realiza consultorias.
Nesta conversa abordamos as esperadas eleições presidenciais no contexto da pandemia; as posições da esquerda, da direita e dos movimentos sociais; e, também, o tratamento dado pelo governo interino à saúde pública e as medidas que envolvem o combate ao novo corona vírus.
1- Em novembro de 2019 o presidente Evo Morales renunciou à presidência da Bolivia, mas os ritos oficiais não foram respeitados como está na Constituição. Como observa os fatos políticos de novembro? Foi um golpe político, como diz o MAS-IPSP, partido do então presidente Evo Morales?
Bom, segundo meu ponto de vista foi um golpe cívico, policial e militar, planejado, com o apoio da OEA e da Embaixada dos EUA. Os argumentos foram que o governo de Evo era ditatorial e autoritário.
Os cívicos se autoidentificavam como parte de uma classe média mestiça que se sentia retirados do poder político de Evo Morales. Para legitimar sua posição recorreram a ideias racistas e discriminatórias dos indígenas, desqualificando-os. Uma vez no poder, a autoproclamada presidente Añez está procedendo com perseguição política acusando aos masistas ou a qualquer um que questione a “Revolução democrática dos pititas1” de inssureição2 e terrorismo.
A suposta fraude monumental nunca foi provada, somente foi uma desculpa para consolidar o golpe. Na realidade os comitês cívicos são organizações que representam os interesses dos que se consideram classes médias e mestiças da Bolivia, no qual se agrupam principalmente empresários grandes e pequenos…
Um fato político importante foi a mobilização dos comitês cívicos. Que são essas agremiações? Sempre foram importantes na Bolivia? Como Luis Camacho se converteu em uma liderança tão importante?
Camacho, representa esta elite empresarial crucenha, que liderou este movimento graças ao apoio desses comitês cívicos. Antes dos fatos, Camacho não era nada conhecido, na realidade quem motivou as mobilizações foi Carlos Mesa, e Camacho lhe tomou a palavra.
Camacho e Pumari de Potosí3, logo quando da consolidação do golpe, se apresentaram como candidatos para as próximas eleições, mas os movimentos políticos que fizeram os desqualificaram em suas lideranças e, só se mostraram como oportunistas que buscavam seus interesses, de maneira que atualmente já não têm apoio político nem mesmo dos próprios pititas.
A questão racial é um elemento importante?
Está mais forte que nunca. Sempre esteve presente desde a conquista, mas agora se usa o indígena-camponês4 em sentido racial. Inclusive se usa masista como sinônimo de selvagem, ignorante. Corrupto.
Muito se fala da importância do neopentecostalismo no crescimento da direita na América Latina. Como é na Bolivia?
Hummmm, aqui se conhece mais os “evangélicos”, mas eles tiveram importantes votos, foram terceiro, atrás de Mesa nas últimas eleições. Seu representante foi um boliviano de origem coreana. Um tal Chi5, apoiado por todas as seitas cristãs, mas muito criticado pelo movimento feminista. Surpreendentemente teve muito apoio eleitoral. Mas agora creio tem problemas e conflitos internos.
Claramente está ao lado da direita, porque foram muito críticos com Evo Morales. O candidato, dizia que Bolivia devia ser como a Coreia do Sul. Apoiam fortemente o neoliberalismo.
Quais foram as discussões com as feministas? E Camacho, também é cristão, não?
As discussões giraram em torno ao machismo e ao aborto. Claramente muito conservadores. As feministas estão contra o machismo, o patriarcado e a favor do aborto.
Camacho e Añez entraram no palácio do governo durante o golpe com a bíblia na mão, isso te diz tudo.
Quem é Jeanine Añez? Ameaçou tirar as whipalas* dos edifícios oficiais. Como fica a discussão do plurinacional e do Bem Viver6 nessa conjuntura?
Jeanine é a autoproclamada presidente da Bolivia através do golpe cívico militar e policial.
Queimaram a whipala* para deslegitimar aos movimentos sociais indígenas e camponeses, sem levar em conta que essa bandeira já é reconhecida constitucionalmente.
O plurinacional e o Vivir bien são ignorados totalmente por este regime de fato. Em seu lugar falam somente de democracia como se o governo de Evo fosse ditatorial.
Quais são as posições dos movimentos sociais sobre o que se passou nos últimos meses? E os intelectuais das tradições indianistas e kataristas, como Luís Tapia, Silvia Cusicanqui e Raul Prada?
Os movimentos sociais estão na clandestinidade, mas se expressam nas redes sociais contra o regime, ainda que o governo de fato tenha anunciado uma “ciber patrulha” para detectar os “insurgentes e terroristas informáticos”.
A posição dos movimentos é ganhar contundentemente as eleições, encabeçados por Luis Arce e Choquehuanca. Mas a pandemia está configurando outro cenário político. Parece que o regime golpista tenta usar a pandemia como desculpa para reprimir, controlar aos opositores e perpetuarem-se no poder. Atrevo-me a dizer que fará qualquer coisa para que as eleições não se realizem e assim se prorrogar mais no poder…
Porém, a ineficiência e a negligencia para enfrentar a pandemia está desnudando o caráter oportunista do governo.
Há vozes intelectuais que recomendaram que Añez renuncie à sua candidatura para enfrentar a pandemia, outros mais radicais a renuncia à presidência
Mas, em geral, os intelectuais estão calados. Há um estigma: se crítica este regime, rapidamente te definem como masista, ou se o apoia como pitita. Os intelectuais que você menciona, não estão se pronunciando publicamente sobre a situação, percebo muita cautela…
Antes da quarentena assisti a uma mesa redonda de intelectuais do CIDES UMSA, e muitos apoiam a este regime indiretamente. Dizem que não foi um golpe de Estado…
As eleições foram adiadas frente à pandemia do Covid-19? Isso favorece o governo atual? Como estão as posições da direita e do MAS frente às eleições?
Exato, a pandemia está permitindo que surjam propostas de postergação de parte deste regime, mas o MAS defende que se adiante, inclusive Mesa está de acordo com isto.
A pandemia claramente está favorecendo à direita, pois justifica a repressão e a prorrogação do regime, mas o MAS está questionando as medidas políticas do regime por considerá-lo negligente e que é urgente adiantar as eleições para enfrentar a pandemia.
Como o governo está tratando a pandemia de Covid-19?
Humm… até agora muito ruim, muita improvisação, o regime está aproveitando a pandemia e a ajuda à população como campanha política.
O regime crê que somente convocando a polícia e os militares durante a quarentena se enfrentará a pandemia. Não complementa garantindo a alimentação das famílias e pessoas que não podem ficar em casa. No Facebook subiram videos de gente que não está acatando à quarentena porque não têm alimentos para estar em quarentena.
Os médicos se queixam que não têm equipamento nem recursos para tratar os pacientes e infectados do covid 19.
Culpam à Añez por não por em quarentena aos recém chegados da Europa e EUA desde o principio.
Reproduz-se o racismo e discriminação no tratamento da pandemia. O governo contrata vôos solidários para bolivianos que chegam do Chile, mas não deixa entrar bolivianos de origem indígena na fronteira com o Chile, em Pisiga.
Está cerceado o direito de manifestação e de reunião? Como está a repressão aos movimentos sociais?
Sim, durante a pandemia está proibido. Quando alguém critica ou se manifesta contra o regime, rapidamente é rotulado por tentativa de insurreição e terrorismo, estão criminalizando o protesto e a livre expressão.
1“Pititas” é um termo que foi designado aos manifestantes de novembro que pediam a anulação das eleições. Refere-se à “pita”, nome em espanhol para “barbante”, instrumento que era utilizado nos protestos.
2O nome utilizado em espanhol é sedición, definido da seguinte forma pelo entrevistado: O governo o entende quando alguma pessoa chame ou convoque publicamente a derrotar o governo, convocando marchas, reuniões, ou manifestações populares. Não estaria permitido que nenhum boliviano se manifeste publicamente contra o regime. Seria como induzir a um golpe de Estado.
3Marco Pumari, presidente do comitê cívico de Potosí em novembro de 2019
4Indígena-originário-camponês é a forma como a Constituição boliviana trata alguns segmentos sociais, os quais são entendidos como prioritários no acesso à propriedade da terra, pelo princípio da ancestralidade.
5Chi Hyun Chung, médico coreano-boliviano , pastor evangélico e cientista político.
6Política e concepção de mundo desenvolvida na Bolívia e no Equador, que visa uma relação de reciprocidade entre homens e natureza e ressaltar o modo de vida comunitário, numa crítica à sociedade do progresso e do consumo.
Foto: Senado da Bolívia
Allysson Lemos. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
*O que é e o que representa a bandeira Wiphala? Leia em Jornalistas Livres.