Estados Unidos: o exemplo de poder ou o poder do exemplo? Por Andrés Ferrari Haines e Guilherme Ziebell

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“O século XXI será o século dos EUA porque lideramos não só pelo nosso poder exemplar, mas também pelo poder do nosso exemplo”, declarou o atual presidente dos Estados Unidos, em 2016, perante uma multidão, na Convenção do Partido Democrata. Expressando, assim, apoio à candidata Hillary Clinton contra o republicano Donald Trump, que “não tem ideia do que torna os Estados Unidos grande”.

Para Joe Biden, eleger Trump era trair os valores do país. Na semana passada, voltou a criticar Trump a esse respeito, afirmando que: “o momento em que um presidente se afasta disso, como fez o último … é o momento em que começamos a perder nossa legitimidade no mundo”.

Ao detalhar essa legitimidade global, Biden apontou para a disputa entre EUA, China e Rússia afirmando que “esta é uma batalha entre democracias e autocracias no século XXI… Temos que mostrar que a democracia funciona”. Isso porque, desde o seu nascimento, os Estados Unidos tomaram sua democracia como o modelo universal que o mundo deve seguir.

Como Ishaan Tharoor, analista de assuntos internacionais do Washington Post, explica, Biden representa aqueles que veem a agenda “América em Primeiro Lugar”, de Trump, como uma traição ao legado do país enquanto promotor de um mundo democrático. Nessa visão, o papel global do país seira pressionar ativamente para que esse mundo democrático surja, com base na “crença implícita na superioridade dos valores estadunidenses e nos ideais liberais”.

Esta visão particular baseia-se no funcionamento exemplar da sua própria democracia. Ao assumir a presidência em 20 de janeiro de 1989, George Bush exaltou o fato de se repetir ininterruptamente o juramento inaugurado há dois séculos pelo primeiro presidente do país, George Washington. Essa prática continuou até que Biden a repetisse no início deste ano.

Assim, ao afirmar que o líder chinês Xi Jinping não tem “um único osso democrático em seu corpo” – como já havia feito com o líder russo, Vladimir Putin, ao chamá-lo de “assassino” –, Biden dá continuidade à política externa tradicional de seu país, entendendo que “para mostrar que a democracia funciona” é necessário que os outros países também sejam democráticos.

Nesse sentido, na semana passada, o Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, expressou sua preocupação com o crescente “comportamento antidemocrático e a politizador do sistema jurídico” na Bolívia devido às “dúvidas sobre a legalidade das prisões” de integrantes do governo anterior do país, pedindo a libertação destes. Para Blinken, as prisões ameaçam minar a democracia na Bolívia.

Ao mesmo tempo em que o governo Biden se ocupava desse assunto, o governador republicano do estado da Geórgia aprovou uma lei que restringe o acesso ao voto.

A obrigatoriedade apresentar um documento com foto para votação à distância e a atribuição de novos poderes ao Conselho Eleitoral Estadual, permite a intervenção deste nos gabinetes eleitorais dos estados e aumenta significativamente o seu poder de influenciar e controlar a gestão do processo eleitoral.

Além disso, a lei impede que os funcionários estaduais enviem cédulas não solicitadas pelo correio, bem como proíbe que grupos organizados enviem aos eleitores os formulários para solicitar tais cédulas ou mesmo facilitem a devolução deste preenchidos.

Também busca retirar o direito permanente de voto de quem não o exerceu por determinado período e criminaliza a entrega de qualquer coisa, inclusive comida e água, a pessoas na fila de votação.

As filas são cada vez mais longas em bairros com população majoritariamente negra. De acordo com Ruth Marcus, “Os locais de votação em bairros de maioria negra representam apenas um terço dos locais de votação da Geórgia, mas corresponderam a dois terços dos que tiveram de ficar abertos até tarde para dar conta das longas filas nas eleições de junho”. Ela afirma ainda que “o tempo médio de espera na Geórgia, após o fechamento das urnas, foi de seis minutos em bairros em que pelo menos 90% da população era branca e de 51 minutos em bairros em que ao menos 90 % da população era de não brancos “.

É por isso que os líderes negros afirmam que a lei tem como alvo, claramente, os eleitores negros e pardos.

Grupos como o The New Georgia Project, Black Voters Matter e Rise Inc. entraram com uma ação contra o Secretário de Estado e o Conselho Eleitoral do estado da Geórgia, alegando que a nova lei viola a Primeira e a Décima Quarta emendas constitucionais, bem como a Lei Federal de Direito ao Voto, que proíbe aos estados cercear o direito ao voto aos eleitores negros.

“Essas medidas injustificadas, individuais e cumulativas vão contribuir para impor obstáculos inconstitucionais ao direito de voto, ou mesmo para negar ou restringir drasticamente esse direito dos negros da Geórgia, impedindo esses eleitores de terem oportunidades iguais de participar do processo eleitoral e eleger os candidatos que quiserem”.

Para o New York Times, a Geórgia deu apenas o pontapé inicial da luta pelos direitos de voto, que “se apresenta como um dos conflitos da era Biden”, e que os líderes negros dizem ser “uma luta vital por representação”.

Em mais de 24 estados os líderes republicanos estão promovendo projetos de lei nesse sentido. A mídia descreve esse fenômeno como “o ataque mais agressivo ao direito de voto desde o movimento pelos direitos civis dos anos 1960”. A esse movimento se soma o fato de que muitos membros do partido republicano continuam não reconhecendo a vitória de Biden como legítima.

Os democratas em nível nacional estão promovendo uma lei para prevenir eventos como o da Geórgia. Mas em um movimento simultâneo “legisladores republicanos em mais de 40 estados apresentaram centenas de projetos de lei que tratam do acesso ao voto e visam se apoderar da autoridade de administrar eleições”, gerando “lutas amargas pelo direito de voto, que envolvem até mesmo estados com governadores democratas, que pode vetar tais leis”, tais como Michigan, Pensilvânia e Wisconsin, os quais podem adiantar essas restrições se governadores republicanos forem eleitos no próximo ano.

Para Jocelyn Benson, Secretária de Estado do Governo Democrático de Michigan, “as eleições de 2020 ficaram para trás, mas a guerra pelo futuro de nossa democracia está se intensificando”, disse em referência às inúmeras propostas para restringir o voto que os republicanos estão apresentando.

Os republicanos, por sua vez, argumentam que estão tornando a votação mais fácil e limitando a fraude – tornando “mais fácil votar e mais difícil trapacear”, de acordo com o governador da Geórgia, Brian Kemp.

O NASCIMENTO DE UMA NAÇÃO

“É doentio, doentio”, exclamou Biden sobre o caso, acrescentando que se tratava de “um ataque flagrante à Constituição”, de “uma atrocidade”. Detalhando que nas medidas propostas “tudo é projetado” para restringir a votação, ele insistiu que o Congresso aprove os projetos de lei apresentados “para facilitar o acesso às urnas a todos os cidadãos e evitar ataques ao sagrado direito de voto”.

Biden afirma que a proibição de fornecer comida e água aos eleitores se destina a diminuir as “filas que os próprios funcionários republicanos criaram ao reduzir o número de locais de votação desproporcionalmente em bairros negros”. Afirma tratar-se de leis Jim Crow do século XXI, algo “antiamericano”.

Chama atenção a associação que Biden faz entre “Jim Crow” e “antiamericano”. Isso porque por “Jim Crow” são as conhecidas leis de segregação racial que os estados do sul implementaram nas décadas finais do século XIX, após serem derrotados pelo Norte, e que representaram em forma de entendimento entre norte e sul. Para o historiador Greg Grandin, essas leis faziam parte do ‘Pacto de 1898’ que legitimaria o uso da bandeira dos Estados Confederados derrotados como expressão da ‘supremacia branca’, a aceitação do linchamento e da Ku Klux Klan, a qual contava com dois milhões de membros na década de 1920 e era conhecida como “o império invisível”. As leis de Jim Crow impunham a segregação racial como forma de remover os direitos que os escravos libertos passaram a ter.

Esse quadro começou a ser enfrentado, pelo movimento negro, em meados da década de 1950 com protestos e só foram extintos em 1964/65. Quando o líder negro Martin Luther King foi assassinado em 1968, Grandin conta que alguns soldados americanos comemoraram no Vietnã agitando a bandeira confederada. Embora Biden destaque os republicanos, os criadores de Jim Crow foram os democratas do sul.

Um dos que apoiaram essa visão foi o presidente democrata Woodrow Wilson, que, de acordo com o historiador James Loewen, de Harvard, foi “certamente o ocupante mais racista da Casa Branca”. Nela, Wilson exibiu uma sessão do filme The Birth of a Nation (O Nascimento de uma Nação, 1915) que celebrava a Ku Klux Klan que surgiu após a guerra civil e apresentava a frase do próprio Wilson “Os homens brancos foram movidos por um simples instinto de autopreservação … até que, finalmente, surgiu uma grande Ku Klux Klan, um verdadeiro império do sul, para proteger o país do sul”.

No momento em que começa o julgamento do assassinato de George Floyd, um colunista do Washington Post, Eugene Robinson, expressa dúvidas de que Floyd receba justiça, porque “já deveríamos saber, depois de tantas esquetes …, que perfeitamente possível convencer os jurados a culpar a vítima se ela for um homem negro”. Ele conclui afirmando que o mundo inteiro viu os seus últimos minutos de vida e agora verá se ele receberá justiça.

Em outras palavras, se os Estados Unidos são um exemplo de poder ou um poder de exemplo.

Foto: Joel Kowsky/NASA

Andrés Ferrari Haines é professor Adjunto do Departamento de Economia e Relações Internacionais, Faculdade de Ciências Econômicas e do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-UFRGS). Integrante do Núcleo de Estudos dos BRICS (NEBRICS-UFRGA) e Poder Global e Geopolítica do Capitalismo (aferrari@ufrgs.br).

Guilherme Ziebell é Bacharel em Relações Internacionais e Ciências Econômicas. Mestre em Estudos Estratégicos Internacionais e Doutor em Ciência Política. É Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI) da UFRGS.

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