EUA presos em seu labirinto libertário neoliberal, por Andrés Ferrari Haines

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“A versão atual dos Estados Unidos poderia ter vencido a Segunda Guerra Mundial?”, perguntou David Brooks, em maio, no New York Times. Sua resposta foi negativa: “Aquela vitória exigiu coesão nacional, sacrifício voluntário pelo bem comum e confiança nas instituições e entre elas. A resposta dos Estados Unidos à Covid -19 sugere que não temos mais quantidades suficientes de qualquer uma dessas coisas.”

Simultaneamente, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, estava confiante de que, com uma ampla vacinação até 4 de julho, o país celebraria o Dia da Independência tendo superado a pandemia e todos os americanos poderiam participar das festividades sem máscara. Mas a situação se agravou com o surgimento da variante Delta, principalmente pelo fato de 25% da população (quase 80 milhões de pessoas) se recusar a ser vacinada, embora Biden afirme que “a vacina é segura, eficaz e gratuita”.

Na quinta-feira, 9 de setembro, em um pronunciamento contundente, Biden anunciou um novo plano, afirmando que “temos as ferramentas para combater o vírus”. Trata-se de um plano de seis eixos para derrotar a pandemia.

UM PLANO DE SEIS EIXOS

  • Primeiro, aumentar a vacinação entre aqueles que ainda não foram vacinados. Isso inclui exigir que todos os funcionários e prestadores de serviços do executivo sejam vacinados e que as empresas com mais de 100 funcionários façam o mesmo.
  • Em segundo lugar, disponibilizar doses extras aos vacinados para aumentar sua proteção.
  • Terceiro, proteger as crianças e adolescentes, estimulando a vacinação dos maiores de 12 anos e proteger os menores de 12 anos, ainda não indicados para vacinação, exigindo a vacinação dos responsáveis nas escolas e solicitando aos governadores que façam o mesmo.
  • Quarto, aumentar os testes e o uso máscaras.
  • Quinto, proteger a recuperação econômica disponibilizando mais recursos públicos destinados a pequenas e médias empresas.
  • Sexto, melhorar o atendimento às pessoas infectadas pelo vírus.

Contudo, a eficácia das ‘ferramentas’ de que fala Biden depende de “se podemos nos unir como um país” – precisamente o que Brooks diz que os EUA alcançaram na segunda guerra mundial, mas que agora parece improvável.

REPUBLICANOS EM FÚRIA

As propostas de Biden geraram imediatamente uma reação feroz na oposição. O colunista do New York Times, Max Boot, observou que a Fox News acusou Biden de ser “autoritário” e de ter declarado “guerra a milhões de americanos”.

O governador republicano da Geórgia, Brian Kemp, disse que Biden cometeu um “exagero flagrantemente ilegal”, enquanto vários outros ameaçam processar o presidente.

O governador da Carolina do Sul, Henry McMaster, declarou que lutará contra Biden e os democratas “até as portas do inferno”. O site de extrema direita Breitbart afirma que Biden se tornou “totalitário”, enquanto El Federalista afirmava que ele deu início a um “movimento fascista”.

Boot observa que essas reações refletem a oposição de libertários que se tornaram prisioneiros da própria politização que fizeram no início da pandemia.

Começando com Donald Trump no ano passado, eles se opuseram ao isolamento social, argumentando que isso destruiria a economia. Seus argumentos, agora silenciados, eram de que a pandemia “desapareceria rapidamente” ou “praticamente não afetaria ninguém”, afirmavam que “não seria pior que uma gripe” e faziam comparações numéricas com outras formas de morte, como acidentes de trânsito. Sem contar o incentivo a usar medicamentos sem respaldo científico, como a hidroxicloroquina ou a ivermectina.

Paradoxalmente, um dos principais argumentos de Biden para justificar suas medidas foi que a disseminação do vírus estava prejudicando a recuperação econômica. Contudo, mesmo tendo obtido a vacina em tempo recorde, os libertários continuam a argumentar contra as campanhas de vacinação, em nome da “liberdade individual”.

LIBERTÁRIOS SEM COERÊNCIA

Os seus argumentos, todavia, não têm coerência lógica e se revelam políticos, precisamente, por sua aplicação seletiva.

Por exemplo, o governador republicano Greg Abbott, do Texas, afirma que está protegendo o direito individual dos texanos de escolher se querem ou não receber a vacina conta a COVID-19, mas, ao mesmo tempo, ele acaba de assinar uma lei que proíbe efetivamente o aborto. Abbott cita o twitte do The Daily Beast em resposta a Jong-Fast: “Então, os conservadores querem garantir que as mulheres não façam aborto, mas são contra a vacina compulsória, porque ‘meu corpo, minhas regras?’”.

Os republicanos denunciam a decisão de Biden de tornar obrigatório o teste semanal de Covid, em empresas com mais de 100 funcionários, e a apresentação de comprovante de vacinação como interferências na liberdade individual por parte da Administração de Segurança e Saúde Ocupacional do Departamento de Trabalho. Criado em 1970, durante a presidência do republicano Richard Nixon, esse órgão emitiu inúmeras regulamentações que não foram denunciadas como ataques à “liberdade” – nenhuma, dessas delas, cabe destacar, foi questionada.

Ao mesmo tempo, os libertários se opõem a um governo que exige a vacinação dos empregados de uma empresa. Pelo menos seis estados republicanos (Alabama, Flórida, Iowa, Montana, Dakota do Norte e Texas) proibiram a maioria das empresas de exigir “comprovantes de vacinação”. Em outras palavras, diz Boot, “exigir que o comprovante de vacinação seja solicitado” é um atentado à liberdade, mas “exigir que o comprovante de vacinação não seja solicitado” não é. Muitas empresas privadas querem exigir que seus funcionários sejam vacinados. Mesmo assim, a Abbott afirma que Biden está promovendo um “ataque as empresas privadas”.

Da mesma forma, revela Boot, a oposição do governador do Texas à exigência da vacina contra a Covid não se estende às outras sete vacinas – poliomielite, hepatite, sarampo, caxumba e rubéola – exigidas de qualquer aluno da rede pública ou privada de ensino. Nenhuma dessas vacinas levou a um movimento de oposição. Se o argumento for que a exigência de vacinação contra a Covid-19 é uma interferência na liberdade, então, esse argumento deve ser válido para qualquer outra vacina.

LIBERDADE ILIMITADA

Na verdade, alguns republicanos declararam que se oporão a qualquer vacinação obrigatória. Um deles foi Jim Banks, que alegou tratar-se de algo “antiamericano”.

Contudo, atualmente, essa postura encontra apoio político apenas no que se refere as vacinas contra a Covid-19, porque é a única que pode causar danos sociais. Se apenas pessoas não vacinadas corressem risco de vida, a força política dessa oposição seria muito baixa.

Segundo as estatísticas, os não vacinados têm muito mais probabilidade de sofrer os efeitos do Covid-19, e, ao mesmo tempo, contribuem para o surgimento de novas variantes não cobertas pelas vacinas. Consequentemente, a decisão individual tem efeitos sociais, ao colocar em risco aqueles que concordam em ser vacinados. Assim, como as consequências da pandemia deixam de ser individuais e passam a ser sociais, ficam sujeitas à instrumentalização política.

O objetivo político dos argumentos libertários é observado em sua aplicação seletiva. A baixa qualidade dos argumentos é evidenciada por sua insustentabilidade lógica. O argumento de ataque às “liberdades” deveria ser aplicado não apenas a todas as vacinas, mas também a todas as determinações do poder público.

A lista é interminável e basta dar uma volta no quarteirão para encontrar inúmeros casos. Por exemplo, também constituiria um ataque à ‘liberdade individual’ não poder “apostar um racha”, mesmo próximo a um jardim de infância.

Obviamente, a vida em sociedade não seria possível sem limitações legais.

Mas ser “um lutador pela liberdade” na lógica libertária não é nem mesmo discutir o que essas limitações deveriam ser ou como deveriam ser estabelecidas – o que seria uma discussão válida. É simplesmente definir ‘liberdade’ como ‘ninguém me impõe limites’. Mas esse argumento, além de ser inviável, só pode ser uma “pedra de discórdia” porque, em última instância, trata-se de impor uma determinada lista de limitações e não aceitar outras.

PATRIOTAS?

O New York Times, em seu editorial, pede aos antivacinas “um pouco de patriotismo” e a adesão à vacina.

Isso ocorre 20 anos após o ataque às Torres Gêmeas que motivou o “Ato Patriota” para “unir e fortalecer os Estados Unidos, fornecendo as ferramentas necessárias para prevenir e impedir o terrorismo”, entre as quais está o direito de monitorar, espionar, grampear telefones e autorizar detenções por tempo indeterminado e sem julgamento. Essas leis, renovadas duas vezes desde 2001, não provocaram a indignação de parlamentares ou movimentos libertários – muitos dos quais, diga-se de passagem, vêm promovendo medidas para reduzir a possibilidade de voto nas eleições.

O jornal afirma que “aqueles que resistem às vacinas alegando violação da liberdade, ignoram o fato de que não vivem em uma bolha e que sua decisão de permanecer sem vacina atenta contra a liberdade de todos: a liberdade de movimento, a liberdade de visitar com segurança amigos e familiares, a liberdade de permanecer vivo”.

Ele então relata o caso em que a Suprema Corte que multou um homem de Massachusetts, há mais de um século, por se recusar a receber a vacina contra a varíola. Naquela época, o juiz John Marshall Harlan escreveu: “Não pode existir liberdade real para todos se o direito de cada indivíduo de usar a sua, seja com relação a sua pessoa ou a sua propriedade, independe do dano que tal uso possa causar para os demais”.

Biden exorta seus compatriotas: “Somos os EUA. Não há nada, nem uma única coisa, que não possamos fazer se o fizermos juntos”. Mas os EUA estão há quase meio século presos no labirinto neoliberal que postula “que não há sociedade, há apenas indivíduos”.

Brooks implora: “Pedimos apenas que você vá se vacinar e não que vá a Iwo Jima”, em referência à batalha sangrenta em que os Estados Unidos derrotaram o Japão na Segunda Guerra Mundial, cuja fotografia icônica de seis marinheiros erguendo a bandeira do país se tornou uma das principais imagens de sua história.

Tradução: Bruno Roberto Dammski

Foto: Creative Commons

Andrés Ferrari Haines é professor Adjunto do Departamento de Economia e Relações Internacionais, Faculdade de Ciências Econômicas e do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-UFRGS). Integrante do Núcleo de Estudos dos BRICS (NEBRICS-UFRGA) e Poder Global e Geopolítica do Capitalismo (aferrari@ufrgs.br).

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