Um som de botas sobre os paralelepípedos de Paris está despertando velhos fantasmas adormecidos na sólida República da França. Ele ecoa pelo Palácio do Eliseu desde 21 de abril, quando se completaram 60 anos do golpe derrotado contra o General De Gaulle, organizado por um grupo de militares inconformados com a independência da Argélia, a ex-colônia mais importante do império francês, depois de uma longa guerra sangrenta. Neste dia simbólico, a revista semanal de extrema direita “Valores Atuais” abriu suas páginas a um manifesto encabeçado por 24 generais de pijama, agrupados numa espécie de Clube Militar à francesa, saudosistas dos tempos coloniais. O número de signatários impressiona: além dos generais, mais de uma centena de militares de alta patente e outros 1.500 nomes de diferentes procedências nas forças de defesa e segurança foram tornados públicos, mesmo que seus organizadores reivindiquem mais de 10 mil assinaturas colhidas até o dia 29 de abril.
Ainda que mais sofisticados, e dentro de um contexto bem diferente do nosso, os elementos centrais deste “Apelo aos governantes pela volta da honra e do dever na classe política” guardam alguma similaridade com o discurso oficial no trágico Brasil de hoje: denúncia da “desintegração” nacional provocada pelo “antirracismo”, pelo “islamoesquerdismo”, o “indigenismo” e as “teorias de descolonização”, e pelas “hordas da periferia”, que geram insegurança na nação; da “permissividade” que se expande na sociedade; apelo ao retorno de “valores civilizatórios” que preservem as “glórias militares”; advertência de que militares da ativa serão convocados para conter uma guerra civil que pode explodir diante de “um caos crescente”. As circunstâncias são outras, mas o discurso é o mesmo – racista, homofóbico, perseguidor das esquerdas e das minorias, semeador do medo e propagador do ódio e das ameaças permanentes.
Mas a França é a França, e os autores da bravata antirrepublicana serão punidos, como prometem a ministra da Defesa Florence Parly e o General François Lecomtre, chefe do Estado Maior das Forças Armadas. Será um processo disciplinar longo, que vai exigir fóruns diferentes, com o risco de se estender até as eleições presidenciais de abril de 2022. A idade mínima do generalato que assina o manifesto é de 80 anos, quase todo ligado à extrema-direita, o que sugere consequências simbolicamente políticas, depois de seu julgamento por um conselho militar superior criado especialmente para este fim. A sentença proferida será, por lei, objeto de recurso.
Da extensa lista de nomes VIPS das Forças Armadas há muitos militares na ativa. Sobre eles pesa a ameaça de expulsão, e ainda o risco das penalidades previstas num processo do Judiciário: o líder do partido de esquerda França Insubmissa e também candidato à presidência, Jean-Luc Mélanchon, uniu-se ao Partido Verde para entrar com um pedido junto à Procuradoria de Paris para julgá-los pelo crime de estímulo à guerra civil, passível na França de prisão perpétua e multa de 750 mil euros.
É possível que o governo Macron preferisse ignorar o manifesto e relegá-lo às fronteiras do que os franceses chamam de “faciosphère”, esse espaço difuso e perigoso com que o neofascismo vai se infiltrando nas redes sociais. Mas, antes de ser publicada na revista, ela havia sido gestada num blog de um capitão de reserva da polícia do exército que nos anos 1990 foi membro do serviço de segurança do Front Nacional, refundado recentemente como Encontro Nacional, o partido de Marine Le Pen. Não por acaso, Le Pen foi a primeira a reagir ao apelo dos generais, subscrevendo as intenções do manifesto “como cidadã e como mulher política”, e convidando os signatários a se unirem a ela em sua campanha. E foi respondendo a Marine Le Pen que os integrantes do atual gabinete presidencial finalmente contra-atacaram, com uma semana de atraso, considerando “inaceitável” que uma candidata à presidência da França pudesse apoiar abertamente ideias golpistas.
A um ano das eleições presidenciais, os cenários desenhados pelas últimas pesquisas junto ao eleitorado francês indicam uma reedição do duelo de 2017 entre Emmanuel Macron e Marine Le Pen no segundo turno. Naquele ano, Macron venceu le Pen com o apoio majoritário das forças progressistas, que migraram seus votos para o Movimento em Marcha, a fim de evitar a vitória da extrema-direita. No ano que vem, ainda que o quadro da campanha não esteja ainda totalmente configurado, as chances de uma vitória cerrada de Le Pen sobre Macron são bem maiores. A pesquisa Ifop-Fiducial, realizada em abril, dá à candidata do Encontro Nacional a liderança em seis dos dez cenários com outros candidatos eventuais na corrida presidencial.
Diante de uma sociedade exaurida por confinamentos sucessivos impostos pela pandemia, ameaçada pelos efeitos de uma crise econômica sem precedentes que vai se avolumando e por estranhos crimes de violência cometidos por lobos solitários que não evidenciam uma organização terrorista por trás – como no caso do assassinato da funcionária administrativa da polícia de Rambouillet em 23 de abril- o presidente Macron vai acenando ao eleitorado da direita, e faz passar a boiada de leis de segurança que boa parte dos franceses entende como restritivas às suas sagradas liberdades individuais.
Tempos estranhos, esses. Terreno fértil para semear o medo e propagar o ódio numa das sociedades mais politicamente amadurecidas e esclarecidas do mundo ocidental.
Foto: Divulgação/ Ministère des Armées
Elizabeth Carvalho é correspondente da GloboNews e da TV Globo em Paris