A Grã-Bretanha acaba de enviar dois navios ao Índico-Pacífico que irão se juntar ao porta-aviões HMS Queen Elizabeth, que já está na região há sete meses. A mudança faz parte do projeto Global Britain de Boris Johnson, que propõe reposicionar o Reino Unido (UK) no mundo após o Brexit.
Como chanceler, Dominic Raab anunciou, em março, que se trata do país cumprir “sua missão de ser uma força do bem no mundo” porque é o que “uma nação líder” deve fazer. Para Johnson, “2021 será um ano de liderança britânica”.
Contudo, os navios britânicos não atraem atenção por suas capacidades militares, nem se espera que eles influenciem os acontecimentos na região. No quase oficial Chinese Global Times, o especialista militar Song Zhongping afirma que eles são “como navios de guarda costeira”.
A intenção de Johnson, mais do que militar, é apoiar a disputa com a China ao lado dos Estados Unidos, afirmando que os dois países preservam “a relação especial” que estabeleceram há mais de um século.
O analista da Carnegie Europe, Peter Kellner, diz que a saída dos EUA do Afeganistão revelou que essa ligação é pura ilusão, já que Biden a ignorou totalmente ao decidir se retirar. Sendo que Johnson havia convocado uma reunião virtual do G7 para persuadir Biden a adiar a data de partida de 31 de agosto.
Para Kellner, o pior não é o desprezo que Johnson recebeu de Biden, mas a “a surpresa do primeiro-ministro que se agarra à ilusão de que Londres tem acesso único aos corredores do poder em Washington”.
Johnson vinha se gabando de que o “relacionamento especial” ainda era forte devido à conversa telefônica que teve com Biden depois que este assumiu o cargo de presidente dos Estados Unidos. Mas “quando se tratava de ligações que importam no que se refere ao Afeganistão”, diz Andrew Rawnsley, no The Guardian, sua capacidade de influenciar “é menor do que a do cachorro de Biden”.
De fato, a surpresa foi tanta que os acontecimentos em Cabul deixaram Johnson e Raab de boca aberta. Rabb teve que passar de chanceler a secretário de Justiça por causa da pressão social.
O mais duro, argumenta Rawnsley, é aceitar que pouco teria mudado “se os dois homens estivessem acorrentados às suas mesas”. Até porque “praticamente todas as nossas tropas de combate se retiraram há sete anos”.
A ex-primeira-ministra Theresa May, expressando a raiva dos conservadores, repreendeu Boris Johnson: “Onde estava a Global Britain nas ruas de Cabul?”. Para tornar a Global Britain viável, Johnson rompeu com a UE deixando uma questão delicada em espera: a fronteira irlandesa com a Europa.
Pelo protocolo da Irlanda do Norte, os controles alfandegários entre a Irlanda do Norte e a Grã-Bretanha foram estabelecidos no mar da Irlanda, a fim de manter aberta a fronteira terrestre entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda. Porém, alguns controles e proibições alfandegárias e sanitárias tiveram um período de carência para permitir um ajuste.
Esta decisão de Johnson reacendeu na Irlanda a disputa entre aqueles que querem se separar do Reino Unido e aqueles que querem continuar. Em 1998, favorecidos pelo contexto de fazer parte da UE, os confrontos sangrentos entre os dois grupos cessaram no Acordo da Sexta-Feira Santa. Agora, os sindicalistas afirmam, inclusive com episódios violentos, que o Brexit mina a unidade interna da Grã-Bretanha ao deixar a Irlanda do Norte sob uma estrutura legal a parte.
O período de carência para implementação total do Protocolo expira em 1º de outubro. Contudo, o Reino Unido anunciou que o prorrogaria por um período ainda a ser determinado. Mesmo a UE tendo afirmado que Londres estava “legalmente obrigada” a cumpri-lo, sem qualquer renúncia, acabou aceitando a decisão britânica. A UE, no atual contexto de pandemia, considerou que seria melhor não entrar em conflito com os britânicos.
É que, na verdade, o Reino Unido sofre com o Brexit por motivos legais, tarifários e burocráticos. Muitas empresas estão pensando em se mudar para o continente, se já não o fizeram.
A falta de caminhoneiros qualificados no continente continua deixando as prateleiras dos supermercados vazias, até mesmo de alimentos básicos. Sem os trabalhadores agrícolas sazonais, há dificuldade tanto na colheita quanto no plantio – os ingleses já estão prevendo que conseguir o peru de Natal será um “pesadelo”.
As casas de repouso têm poucos funcionários, assim como os hotéis. Restaurantes de luxo começaram a disputar por chefs… Tendo jogado suas fichas no ‘relacionamento especial’ com os EUA, Boris Johnson deu as costas à Europa, mesmo o Reino Unido tendo deixado de figurar, pela primeira vez desde 1950, entre os 10 principais parceiros comerciais dos alemães.
Boris Johnson, o campeão do Brexit, garantiu que este seria um sucesso, prometendo que o Reino Unido “comeria e ficaria com o bolo” – algo como como comeria “pão e bolo”.
Em 2016, em entrevista à BBC, Boris Johnson afirmou que a economia britânica não seria afetada pelo Brexit, explicando: “Este país recebe cerca de um quinto da produção total de automóveis da Alemanha” e acrescentou “Você acha, de verdade, que os alemães vão ser loucos o bastante para permitir a imposição de tarifas? “
Tradução: Bruno Roberto Dammski
Foto: Dave Jenkins – InfoGibraltar
Andrés Ferrari Haines é professor Adjunto do Departamento de Economia e Relações Internacionais, Faculdade de Ciências Econômicas e do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-UFRGS). Integrante do Núcleo de Estudos dos BRICS (NEBRICS-UFRGA) e Poder Global e Geopolítica do Capitalismo (aferrari@ufrgs.br).