Irã, Impeachment, Iowa, e a desescalada no Oriente Médio, por Daniel Barreiros

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“O Irã nunca ganhou uma guerra, mas nunca perdeu uma negociação!”, tuitou Mr. Trump minutos depois dos mísseis tirarem a vida de Qasem Soleimani, o general / terrorista iraniano (epíteto que vai depender do gosto do freguês).

Reclinei-me na cadeira, pensativo. Naquele dia três de janeiro já estava bem evidente que Donny havia finalmente parado de dar murro em ponta de faca, e resolvido dar ouvidos às aves carniceiras que rondam a Casa Branca.

Havia uma espada de Dâmocles em forma de impeachment, bem angulada sobre seu pescoço nu, e em momentos como esse é bom que se tenha amigos, ou, pelo menos, que não se venha a bulir com gente estranha. Ficava claro também que ninguém menos que Pompeo tinha sido o porta-voz da “turma da guerra”, na falta de falcões de mais nobre estirpe como Bolton.

No ar também pairava a ideia, posteriormente ventilada, de que o POTUS não tinha a menor ideia de quem era o alvo, e de qual era a sua real relevância no tabuleiro do Oriente Médio. “É um prêmio maior que Bin Laden” alardearam alguns, e não se deve subestimar o comportamento de um ególatra: a cabeça de Osama decora o hall de entrada da residência de Mr. and Mrs. Obama, e o Tariff Man não podia exigir menos.

Barack, velho inimigo, povoa os pensamentos e a retórica de Donald Trump como numa ideia fixa, transtorno psicológico que, por tabela, parece também acometer o Messias, seus asseclas e simpatizantes (“e o PT?”, pergunta infeliz ainda a estragar o almoço de domingo). Quando se é lacaio, não se tem direito a ter as próprias doenças. 

Mas não estou aqui para falar do Messias, pois não vale uma missa, algo que já lhes confessei em minha mensagem anterior (1). Também não venho aqui levantar a suspeita de que haja algo de psiquiátrico na política externa norte-americana para o Oriente Médio. Venho aqui por causa desse tuite de três de janeiro, que me fez na hora crer que, após o ataque, Trump havia se escondido sob um cobertor curto que, quando cobre a cabeça, descobre o pé, ou vice-versa, dependendo do sentido do vetor.

Era cedo demais para sinalizar aos iranianos que a mesa de negociações estava posta. O golpe havia sido baixo demais, forte demais, desmoralizante demais. O Irã do drone americano derrubado, do apoio aos houthis e ao Hezbollah, havia sido humilhado por um relâmpago iluminando céu azul, sem aviso. E ninguém desiste de um espólio maior quando há muito mais a ser pilhado, enquanto o inimigo não sai das cordas. Ninguém, nem Mr. Trump, se as circunstâncias o permitissem.

Donny tocando a sineta e abrindo o pregão em ato contínuo a uma jogada violenta que colocou o Irã temporariamente de joelhos, era algo que parecia fruto de alguma dissonância cognitiva.

Mas decerto não o era, e esse é o assunto que lhes trago: a mão que bate é a que afaga, mas nessa brincadeira de querer agradar a gregos e troianos, Trump encara o risco de encarnar o pato: nada e voa, sem ser exímio em qualquer das duas proezas. 

A chave para entender o “morde e assopra” trumpista reside, a meu ver, na interseção entre três fatores, que resolvi chamar de “i x 3”: Irã, Impeachment e Iowa.

A contenção ao projeto de poder de Teerã no Oriente Médio faz parte do conjunto de prioridades da administração Trump, muito embora, como já apontei em outra ocasião, o método para administrar o problema seja objeto de disputa política nas altas esferas do poder norte-americano.

Parece nítido que paira sobre o presidente forte desconfiança a respeito de sua iniciativa de delegação a terceiros das responsabilidades de contenção ao Irã, bem como a respeito da negligência benigna em relação aos avanços de Moscou, e que por trás da decisão do assassinato de Soleimani existe, para além de um cálculo geopolítico, uma decisão de estabelecer um canal de comunicação com os críticos em nível interno.

É evidente que diante de uma decisão controversa dessa natureza, reforçar a legitimidade e o aspecto de “guerra justa” do ataque aéreo aparece como necessidade premente.

Pompeo desconsiderou taxativamente a alegação de Adil Abdul-Mahdi, primeiro-ministro iraquiano, de que a vítima estava em atividade diplomática no Iraque quando foi morta, insistindo em que um homem “com seu perfil” jamais estaria em missão de paz.

Esper alegou a existência de “evidências persuasivas” dos planos terroristas do militar iraniano a partir da “informação” de que Soleimani estaria no Iraque com o objetivo de se reunir com Abu Mahdi al-Muhandis, líder da milícia xiita Kata’ib, que também foi morto.

E, confrontado por jornalistas diante da absoluta inexistência de evidências dos planos malignos iranianos, Mr. T resolveu simplesmente deixar de lado o teatro à moda das “armas de destruição em massa” de G. W. Bush. Mandou todos os jornalistas às favas, dizendo que pouco importa se Soleimani representava uma ameaça ou não, para mais adiante voltar a falar em quatro embaixadas na mira do Irã, e ser desmentido pelos próprios agentes do serviço diplomático.

No final, quem aplaudiu foi Bibi Netanyahu, outro que está longe de seus melhores dias, congratulando Donny pela sua ação “rápida, firme e resoluta”. E quando é o Likud que se regozija, saibamos que os senhores da morte em Capitol Hill também o fazem, como partículas quanticamente emaranhadas.

Não se deve desconsiderar a importância da narrativa como uma demonstração voltada para aplacar o desconforto dos abutres.

Levantou-se ainda a hipótese de uma dimensão pessoal no abate de Soleimani, considerando a suposta “obsessão” de Pompeo pela figura do militar iraniano, que já duraria uma década, e a influência do Secretário de Estado sobre o presidente, mas essa me parece uma tese muito frágil. Os drones voaram sobre mais de uma cabeça naquele dia 3 de janeiro, e sabemos que Abdul Reza Shahlai, comandante da força de elite iraniana Quds em ação no Iêmen, também fora alvejado, embora tenha sobrevivido.

Em suma, a demonstração de força por parte dos Estados Unidos estava obviamente muito além das taras pessoais e dos alvos de oportunidade: foi orquestrada como oferenda aos deuses da guerra.

Mas ao mesmo tempo, Trump não pareceu disposto a ceder todos os anéis, e muito menos algum dos dedos. Rapidamente se aprumou com seu entourage para resistir nas trincheiras, e não fazer da concessão aos falcões uma guinada “estratégica” que lhe viesse a custar o controle da narrativa, que gira em torno da tríade “retirada-desescalar-delegar”.

Pompeo foi rápido em tirar proveito da oferenda aos deuses da guerra: afirmou que a morte de Soleimani era uma vitória dos EUA em sua iniciativa de impedir que Teerã se aproxime irrestritamente do Talibã. Lembremo-nos de que John Bolton foi porta-voz das objeções dos falcões em relação a aproximação entre os Estados Unidos e os insurgentes afegãos, sabotou as conversas com o Talibã em Camp David, e foi em seguida dispensado. No mesmo dia, o Secretário de Estado tornou a reforçar a mensagem, informando ser prioridade fazer com que o Talibã coopere com o governo afegão (e, por tabela, com os Estados Unidos) de modo a facilitar uma completa retirada das tropas americanas da região.

Ao mesmo tempo, Trump instava os países da OTAN a assumirem protagonismo (e, logo, responsabilidades) no manejo da geopolítica no Oriente Médio, sugestão que foi recebida com relativa moderação pelas lideranças da organização.

E a tarefa de acenar aos falcões sem perder o controle da narrativa deixou espaço até para verdadeiras trapalhadas, como parece ter sido o caso da misteriosa “ordem de retirada” das tropas americanas do Iraque, cuja sequência um tanto estilizada aqui reconstituo:

1) o parlamento iraquiano vota pela retirada incondicional das tropas americanas do território nacional em função do ataque a Soleimani;

2) o Brigadeiro General William Seely (USMC), comandante da Iraq Task Force, envia carta ao governo iraquiano indicando a retirada das tropas americanas, com detalhes logísticos e procedimentais, cujo caráter oficial é inegável;

3) A notícia da carta se espalha e Esper refuta imediatamente qualquer decisão de retirada, visto que isso seria ceder aos iraquianos o controle do tempo (ou seja, se uma retirada fosse feita, seria no ritmo e nos termos de Washington, sem pressão de qualquer natureza);

4) Trump ameaça o Iraque com sanções caso a decisão do parlamento se transforme num rito de expulsão, reclamando o controle do tempo pelos Estados Unidos, mas deixando uma brecha simbólica ao condicionar a retirada à indenização dos gastos militares feitos em território iraquiano;

5) É confirmada não só a veracidade da carta enviada aos iraquianos, mas também o fato de que a mesma carta foi enviada duas vezes;

6) Trump alega que tudo não passou de um engano, e convida o governo iraquiano a estabelecer uma “parceria estratégica” com Washington, em substituição à retirada das tropas.

Essas idas e vindas, em clima de chanchada, deixaram no ar não apenas o despreparo, mas também o fato de que a aposta de Trump para lidar com a questão iraniana servindo a dois senhores (sendo um deles o seu próprio ego) não seria tarefa trivial.

A bem da verdade, Trump et caterva tiveram pressa para, desde o início da crise, montar a narrativa de que o Irã não tinha intenção de prosseguir com as retaliações. Não pretendo discutir aqui se o governo de Teerã foi ou não cauteloso no manejo da situação, mas sim, lançar luzes sobre o fato de que o governo americano insistiu, desde a primeira hora, na narrativa de que o Irã “já estava desescalando”, e que estaria pronto para negociar.

Foi o que fez Esper, em sete de janeiro: sem perder a chance de fazer bravata (“Os Estados Unidos não querem começar uma guerra, mas estão prontos para terminar uma!”) desejou que os iranianos estivessem dispostos a tratar de formas de relacionamentos “menos instáveis”.

Em suporte à interpretação trumpista, não tardou para que surgissem análises na mídia sugerindo que o número de mísseis disparados pelo Irã havia sido pequeno, consideradas as capacidades militares do país; que o alvo foi pessoal militar americano já em estado de alerta desde a morte de Soleimani (algo confirmado pelo próprio presidente); e que, se o Irã realmente desejasse escalar o conflito, teria atacado instalações diplomáticas em países da região, como Jordânia, Israel e Iraque, ou movido sua vingança contra os sauditas, na condição de proxy.

Surgiu então dúvida sobre se o Irã agiu propositalmente de modo a evitar baixas americanas, e ainda assim oferecer uma resposta simbólica a Washington.

Mike Pence contribui para essa narrativa em declaração à CBS em nove de janeiro, quando informou ao público que Teerã estaria “alertando todas as milícias” a não atacarem alvos americanos, e que isso, portanto, devia ser entendido como um sinal de “vitória” dos Estados Unidos.

Kelly Craft, embaixador norte-americano na ONU, fez movimento convergente no mesmo dia, informando às Nações Unidas que a administração Trump estaria preparada para se engajar em negociações “sem precondições” (as aspas são minhas, e propositais), de modo a concluir a crise.

Agora, lembremos que, desde três de janeiro, desde o tuíte que me provocou a escrever-lhes a presente mensagem, essa tônica já estava dada. Já havia àquela altura um copião de script redigido, e com ele a esperança de que, salvo pequenos acidentes, seria possível, ao final, dar aos anjos da morte seu quinhão, e ao mesmo tempo não perder o domínio da narrativa.  

E Trump parece mesmo crer que é preciso por as barbas de molho e apaziguar os anjos da morte, especialmente quando John Bolton decide, out of the blue, testemunhar no processo de impeachment, se devidamente intimado.

Bolton deixou claro que sua decisão não se deve apenas ao fato de ser ele cidadão de bem, homem de família e de costumes probos, mas sim, pela razão de ter sido, em um momento crítico, Assessor de Segurança Nacional da Presidência.

Claro, ele não seria chamado a testemunhar por outro motivo; contudo, evidenciar o óbvio, nesse caso, é prover informação. Bolton está sinalizando para o bom e para o mau entendedor que deseja ser visto como testemunha em primeira mão das ligações perigosas entre Trump e Zelensky, que levaram ao escândalo envolvendo o pedido de investigação dos negócios da família Biden na Ucrânia.

O Partido Democrata já havia buscado antes o testemunho de Bolton, mas havia desistido após se deparar com entraves jurídicos. A situação agora parece ser outra dada a disposição do testemunho, e com o partido assumindo o risco legal da intimação, crê-se que, caso os Republicanos no Senado tentem uma obstrução, levantarão a suspeita, em ano eleitoral, de que pretendem encobrir a conduta irregular do presidente.

Trump, nesse momento, conta com as manobras de Mitch McConnell, líder da maioria, que acredita ser capaz de deter o testemunho de Bolton amparado em questões processuais e, assim, salvar a candidatura republicana em 2020, mas fontes próximas ao presidente afirmam que ele está “aparentemente frustrado”.

A título de devaneio, parece-me restar a Trump, então, orar pela memória frágil de Bolton, homem de idade, que pode eventualmente esquecer-se de detalhes comprometedores, mesmo sob juramento. Quiçá isso ocorra se estiver ele animado por gestos apaziguadores do POTUS em relação à agenda suprapartidária e fundacional do império.

E em meio à tempestade perfeita, fevereiro se aproxima, e com ele, as primárias de Iowa, prova de fogo da popularidade dos candidatos às eleições presidenciais de novembro. Adianto que as notícias para Trump não são exatamente confortáveis.

Segundo os levantamentos feitos pelo Public Policy Polling (2) e pelo Emerson College (3), entre dezembro de 2019 e janeiro de 2020, Trump venceria todos os candidatos democratas no estado por ligeiríssima diferença, sujeita a alterações quando considerados a margem de erro e o número de indecisos.

Levantamento feito pelo influente site Politico em parceria com a Morning Consult indica que 70% dos eleitores norte-americanos não apoia o ataque que resultou na morte de Qasem Soleimani, porque acreditam que os Estados Unidos se tornaram mais vulneráveis e próximos de uma guerra, e entre os eleitores republicanos, esse total chega a 58% (4).

No geral, a condução da questão iraniana por Trump, incluindo a dimensão diplomática, é reprovada por 49% e aprovada por 42% segundo a pesquisa NPR/PBS/Marist Poll (5).

Dado o cenário, nenhuma das duas pontas nesse improviso de estratégia, ao estilo bad cop, good cop (esmurrando primeiro, fazendo perguntas depois), parece conquistar a maioria da atenção do eleitor, ainda que a conduta do presidente quando incluída a iniciativa de desescalar o conflito ganhe maior adesão. Mesmo assim é entre a cruz e a caldeirinha que parece repousar a reeleição de Trump, em meio à iniciativa de apaziguar os anjos da morte e ao mesmo tempo acreditar-se senhor do próprio nariz. Muito resta até novembro, e a história do tempo presente (e de curta duração) não raro nos pega de volteio com suas viradas dramáticas. A ver.

Foto: Shealah Craighead/ Casa Branca

Daniel Barreiros é Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Professor do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

  1. https://jornalggn.com.br/artigos/a-morte-de-qasem-suleimani-um-sacrificio-aos-deuses-americanos-da-guerra/
  2. https://www.publicpolicypolling.com/wp-content/uploads/2020/01/IowaJanuary2020.pdf
  3. http://emersonpolling.com/wp-content/uploads/sites/47/2019/12/IA-Final.xlsx
  4. https://www.politico.com/news/2020/01/08/republicans-trump-iran-strike-war-likely-095740
  5. http://maristpoll.marist.edu/npr-pbs-newshour-marist-poll-results-13/#sthash.kVzNP6xQ.dpbs

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