PARIS – Crises apresentam testes difíceis para governos. Em 2008, a maioria foi considerada incompetente quando o caos financeiro afundou o mundo desenvolvido. E, dentro de poucos anos, a maioria de suas lideranças tinha sido tirada do cargo à medida que a irritação pública chegou ao auge. Até aqui, governos estão respondendo de modo muito melhor ao rescaldo econômico do choque da covid-19. Mas será que os eleitores vão recompensá-los, ou será que a fúria popular irá mais uma vez consumir os sistemas democráticos? Nosso futuro político vai depender de como os eleitores avaliam o desempenho das lideranças nacionais.
Primeiramente, voltemos a 15 de setembro de 2008, quando o banco de investimento americano Lehman Brothers entrou com um pedido de concordata. O que se seguiu foi o caos financeiro, e a economia mergulhou em recessão. Governos se embananaram para limitar um estrago maior. A resposta econômica inicial foi hábil, mas uma nulidade em termos políticos; eles foram acusados de socorrer os banqueiros gananciosos que fracassaram em supervisionar anteriormente.
Foi quando aconeceram os grandes erros. Na Europa, eles começaram com uma resposta notavelmente incompetente à interrupção súbita de fluxos de capital para a Grécia, Irlanda e Portugal, que transformou pequenos problemas em um semidesastre para a eurozona. Então veio a consolidação fiscal prematura, que descarrilou a recuperação. A Europa sofreu uma recessão dupla, o desemprego disparou e o apoio aos governos murchou. Eles foram culpados por dormir no volante, agir com complacência e sem o mínimo de noção.
O resultado foi que, entre a primavera de 2008 e o ponto baixo do outono de 2013, a legitimidade das elites econômica e política sofreu imensamente. A confiança na União Europeia caiu 20 pontos percentuais. O apoio aos partidos menores subiu, enquanto os mais conhecidos foram varridos para longe.
Corta pra 2021 e o contraste é marcante. Apesar dos percalços iniciais com as máscaras faciais e os testes de covid-19, de modo geral os governos não estão perdendo a confiança de seus públicos. Eleitores em geral dão crédito a eles pela resposta rápida à crise de saúde, e mais ainda no front econômico. Lockdowns que salvaram vidas, planos de licença que mantiveram renda e a tácita mas geralmente infalível coordenação entre governos e bancos centrais, além de campanhas de vacinação competentes, têm resultado em apoio público significativo.
Apesar do medo, das dificuldades e desigualdades renovadas, a maior parte da população do mundo está hoje satisfeita com a resposta à pandemia. A confiança na UE está de volta aos níveis pré-crise financeira. Estes dados são tranquilizadores, porque sugerem que governos são punidos pelas políticas ruins e recompensados pelas boas. Em que pese todo som e fúria do debate político, parece que o que cientistas políticos chamam de legitimidade pelos resultados está viva e bem.
Mas há controvérsias. A primeira é que, em todas as 13 economias desenvolvidas estudadas pelo Pew Research Center tanto em 2020 quanto em 2021, os cidadãos – inclusive nada menos que 83% dos holandeses e 77% dos alemães que responderam à pesquisa – disseram que a pandemia vem tornando sua sociedade mais dividida.
A polarização entre os campos pró e antivacina é traumática, porque faz as pessoas se sentirem estranhas umas às outras, num momento em que a solidariedade deveria prevalecer. O fato de que essas linhas de demarcação em geral coincidem com a identificação com o partido político, como nos Estados Unidos e até certo ponto na Alemanha, é profundamente perturbador, porque indica uma incapacidade de concordar sobre evidências científicas. Os recentes confrontos violentos nos Países Baixos são um lembrete de que tais divisões podem piorar num piscar de olhos. Igualmente problemático é o fato de que, na França, a confiança nos cientistas vêm caindo de modo significativo.
O segundo porém é que as controvérsias de política econômica estão voltando à tona. Houve inicialmente um consenso robusto sobre o que fazer. Na Europa, um acordo para suspender as regras fiscais e de auxílio estatal foi alcançado sem grandes discussões, enquanto a decisão do Banco Central Europeu de lançar um programa dedicado de compra de ativos foi rápida e certeira.
Além disso, França e Alemanha concordaram em maio de 2020 em propor uma iniciativa fiscal inédita pela qual a UE lançaria títulos para financiar transferências para seus países-membros mais afetados, mais vulneráveis e menos afluentes. Um processo que normalmente levaria meses e acabaria em fracasso em vez disso durou apenas algumas semanas e resultou em acordo.
Só que essa harmonia está acabando. A inflação está nos holofotes. Lares de classe média do norte europeu estão cada vez mais preocupados que o BCE esteja colocando suas economias em risco, com o popular tabloide alemão Bild chamando a presidente francesa do banco, Christine Lagarde, de “Madame Inflação”.
O BCE continua confiante de que as pressões inflacionárias irão diminuir ao longo de 2022. Há bons argumentos em defesa deste ponto de vista, mas muitos na Alemanha têm medo – em alguns casos, pânico – da atual taxa de inflação anual de 4,5% de seu país. O presidente do Bundesbank, Jens Weidmann, alertou recentemente que “pode até ser que as taxas de inflação não caiam menos da meta (de 2% do BCE) no médio prazo”.
Se os surtos inflacionários atuais se mostrarem temporários, isso irá compensar os déficits passados na inflação relativa à meta do BCE, além de ajudar a corrigir os desequilíbrios competitivos restantes entre o norte e sul da Europa, onde os preços vêm subindo mais devagar. Porém, se os excessos inflacionários persistirem, o consenso de política econômica pandêmica vai vir abaixo e a irritação com o euro ressurgirá no norte.
Também na frente fiscal, o consenso pandêmico vem sofrendo erosão em meio a crescentes diferenças entre aqueles que alertam contra uma consolidação prematura e aqueles preocupados com uma dívida pública crescente. Esta é uma discussão perfeitamente legítima de se realizar. Mas, de novo, a questão é se os debates sobre políticas econômicas vão acabar alimentando disputas polarizadoras, justamente em um período em que a Europa precisa de um acordo sobre a reforma de seu pacto fiscal.
O legado de trauma compartilhado, medo persistente e divisões acentuadas no interior das sociedades europeias torna a fase atual perigosamente delicada, econômica e politicamente. Se for mal administrado, ele pode reabrir velhas feridas e estraçalhar a legitimidade recém-adquirida dos tomadores de decisões.
Nas crises, assim como nos conflitos militares, nunca se deve declarar vitória cedo demais. Afinal, vencer batalhas significa pouca coisa quando se chega ao fim do lado derrotado da guerra.
Tradução por Fabrício Calado Moreira
Foto: Envato
Jean Pisani-Ferry, pesquisador-sênior no think tank Bruegel, sediado em Bruxelas, e pesquisador-sênior não-residente no Instituto Peterson para Economias Internacionais, ocupa a cátedra Tommaso Padoa-Schioppa no European University Institute.
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