Nesse texto, buscar-se-á realizar uma breve revisão histórica, que tomará como seu início o imediato pós-guerra e terminará na atualidade, para adequada compreensão da política externa brasileira do período recente, compreendendo o período de 1990, início do Pós-Guerra Fria e também começo de uma era de presidentes eleitos democraticamente, até os dias atuais. O recorte histórico foi definido pelo reconhecimento da especificidade histórica das relações internacionais da Guerra Fria, configurada na bipolaridade geopolítica e ideológica dos blocos liderados pelos EUA e pela URSS e sua influência no mundo. Findo esse período, entre 1989 e 1991, com a queda do muro de Berlim e o esfacelamento da URSS, as décadas seguintes assistirão, primeiramente nos anos 1990, ao triunfalismo liberal e sua utopia dos mercados autorregulados, do comércio livre e da cooperação entre as nações e, a partir dos anos 2000, ao retorno à velha geopolítica dos Estados Nacionais, com a volta da Rússia como ator relevante da cena internacional, a ascensão chinesa e o surgimento do grupo dos BRICS, com suas propostas, já em fase de desenvolvimento, de banco e fundo próprios e ambição de tornar-se uma alternativa às instituições ocidentais estabelecidas nos acordos do pós-guerra, em Bretton Woods.
A metodologia de análise é a da Economia Política Internacional. Nesta, busca-se articular as dimensões política e econômica lastreadas no conhecimento histórico. Nesse artigo, será feita uma periodização, que dividirá a história entre o imediato pós-guerra e os dias atuais, em cinco períodos. Nestes, tem-se como central o papel da potência hegemônica, os Estados Unidos, no sistema mundial. O primeiro abrange os anos entre 1945 e o início da década de 1970, período considerado como de hegemonia benevolente dos Estados Unidos na cena internacional; o segundo é o da década de 1970 e da chamada “crise de hegemonia” estadunidense; o terceiro período é o da década de 1980, os anos da “retomada da hegemonia” norte-americana; o quarto, a década de 1990, é o do fim da bipolaridade geopolítica global e auge da globalização e, finalmente, a partir da década de 2000, há, no quinto e último período, um acirramento da competição geopolítica e um posicionamento mais explicitamente imperial por parte da potência hegemônica.
PARA ENTENDER A ESTRUTURA DO SISTEMA INTERNACIONAL: DO IMEDIATO PÓS-GUERRA AOS DIAS ATUAIS
O período de reordenamento das relações internacionais após o fim da Segunda Guerra Mundial tem, nos Estados Unidos, o ator político e econômico mais poderoso e que se dispõe, por motivação geopolítica, a auxiliar na recuperação e no desenvolvimento econômico de seus aliados, o chamado “desenvolvimento a convite”,[1] um tipo de relacionamento especial que garantia vantagens a determinados países. No caso da exportadora Alemanha, por exemplo, manteve-se, até fins da década de 1960, taxa de câmbio entre dólar e marco na qual a moeda germânica estava bastante desvalorizada em relação à norte-americana, o que facilitou suas vendas aos EUA e foi importante para a recuperação do país.
Parte importante da nova ordem internacional foi a criação das instituições multilaterais (FMI, GATT, Banco Mundial), alicerçadas essencialmente no poder da nova potência global, os EUA. Na famosa reunião em Bretton Woods, Estados Unidos, foram criadas essas instituições, assim como o sistema de paridades cambiais que, em concepção keynesiana, pretendia conter os movimentos especulativos do capital de curto prazo e favorecer o crescimento econômico e o bem-estar social, com o objetivo central de se atingir o pleno emprego.
O sistema de paridades cambiais fixas (porém, ajustáveis) funcionou bem por aproximadamente vinte anos, mas em fins da década de 1960, o mercado financeiro, em busca de novas oportunidades de lucro, começou a especular contra as moedas dos países-membros desse sistema e, especialmente, contra o padrão dólar-ouro. As reservas em ouro norte-americanas eram a garantia última do sistema monetário-financeiro internacional. Como os custos de manutenção desse sistema estavam tornando-se demasiadamente altos para os Estados Unidos[2] e ameaçando suas reservas em ouro, o presidente Richard Nixon, em 1971, decretou unilateralmente o fim do padrão dólar-ouro e, a partir de então, tem-se um padrão monetário “dólar-flutuante”, baseado unicamente no poder da potência emissora no sistema internacional.
Há pouco mais de quarenta anos, portanto, o padrão monetário internacional é o “dólar-flutuante”. Uma das evidências da centralidade da moeda norte-americana dentre as demais está disponível para todos aqueles que acompanham o jornalismo econômico com frequência. Sempre está ressaltado na imprensa econômica que os movimentos da política monetária do Federal Reserve, o Banco Central dos EUA, têm grande influência sobre os movimentos dos demais bancos centrais. As ações dos outros bancos centrais sempre têm como referência principal a política monetária dos EUA, o principal mercado de capitais do mundo.
O que é mais importante destacar a respeito desse período da “hegemonia benevolente”[3] é o sucesso da recuperação econômica dos países aliados dos EUA e destruídos pela Segunda Guerra Mundial. Os anos de gestão econômica keynesiana da economia da tríade EUA, Europa Ocidental e Japão, entre o pós-guerra e o início da década de 1970, foram um período de prosperidade econômica sem precedentes. No entanto, já na segunda metade dos anos 1960, as primeiras fissuras no regime regulado de taxas de câmbio fixas começaram a aparecer. O desenvolvimento dos mercados financeiros, que buscavam maneiras de aumentar seus lucros especulativos e, portanto, brechas no sistema existente, o que aumentava a instabilidade, somado à posição crescentemente deficitária dos Estados Unidos, com os chamados “déficits gêmeos”, interno e externo, tornariam inviável o padrão dólar-ouro. A criação do padrão “dólar-flutuante” permitiu que a moeda norte-americana permanecesse central no sistema monetário-financeiro internacional, sem que se necessitasse mais da garantia das reservas em ouro dos EUA. O lastro do dólar passou a ser tão somente o poder de seu emissor no sistema internacional e não mais reservas em metal precioso. No novo padrão, o interesse dos EUA passa a estar identificado com a desregulamentação financeira e a liberdade dos movimentos de capital. A flexibilidade desse sistema de cotações que variam conforme a dinâmica de mercado e atratividade do seu vasto mercado financeiro vem garantindo aos EUA, com o dólar, a proeminência de detentor da moeda reserva do mundo, a mais utilizada nas transações comerciais e financeiras internacionais.
No segundo período destacado, o da “crise da hegemonia” norte-americana, que abrange a maior parte da década de 1970, há que se fazer algumas considerações em relação à denominada crise do hegemon. Por que a hegemonia dos Estados Unidos, estabelecida a partir da condição de vitorioso na Segunda Guerra Mundial, estava sendo questionada? Por uma série de fatores.
No âmbito financeiro, o abandono do padrão dólar-ouro, que emulava em grande medida o padrão dominante anterior, o libra-ouro, com a adoção do padrão dólar-flutuante e as consequências econômicas problemáticas nos primeiros anos (instabilidade cambial e inflação combinada com recessão, a estagflação, em vários países, inclusive nos EUA) fizeram com que se começasse a questionar a posição do dólar como moeda reserva. Em fins dos anos 1970, muitos europeus defenderam que os Direitos Especiais de Saque, do Fundo Monetário Internacional, substituíssem o dólar como moeda reserva global. Outra perturbação econômica importante e que abalou o status quo econômico foram os choques do preço do petróleo, que produziram inflação, escassez de combustíveis e o fim do domínio das “sete irmãs”, as grandes multinacionais de petróleo ocidentais.
No campo estratégico, a década de 1970 é o período de uma grande derrota militar estadunidense: a Guerra do Vietnã, que termina em 1975 com a vitória do Vietnã do Norte. Nesse período, recrudesceu a guerrilha de extrema esquerda na Europa Ocidental (Baader Meinhof, na Alemanha, e Brigate Rosse, na Itália) e outros movimentos de esquerda de contestação armada pelo mundo, especialmente na África e na América Latina. Em fins da década, os EUA perdem importante área de influência na Ásia com a revolução comandada pelos aiatolás, no Irã, e o governo Jimmy Carter enfrenta enorme desgaste interno e externo com a crise dos reféns, originada pela invasão da embaixada norte-americana em Teerã. Para completar o quadro de percepção de fragilidade dos Estados Unidos como potência hegemônica global, no ano de 1979, a União Soviética invade o Afeganistão.
A percepção desse quadro pelo establishment políticonorte-americano fez com que se tomasse a decisão, ainda no governo Carter, de se alterar radicalmente a política econômica e a política externa dos EUA. Tal mudança alterou dramaticamente a geopolítica e geoeconomia mundiais a partir da década de 1980. Essa diretriz foi seguida e aprofundada pelo presidente norte-americano seguinte, Ronald Reagan. Um duplo movimento para a reafirmação da hegemonia dos Estados Unidos no mundo. Conforme explicou Fiori, citando Maria da Conceição Tavares,
No campo geoeconômico, a diplomacia do dólar forte, ‘ao manter uma política monetária dura e forçar a sobrevalorização do dólar, a partir de 1979, permitiu que o FED retomasse na prática o controle de seus próprios bancos e do resto do sistema bancário privado internacional e articulasse em seu proveito os interesses do rebanho disperso. A partir daí, o sistema de crédito interbancário orientou-se decisivamente para os EUA e o sistema bancário ficou sob controle da política monetária do FED, que passou a ditar as regras do jogo mundial’. […] Paralelamente, no campo geopolítico, a administração Reagan deslancha uma ofensiva anticomunista, que começa no início dos anos 80, com anúncio do programa militar Guerra nas Estrelas e culmina com a decomposição da União Soviética – dois movimentos em pinça que, segundo M. C. Tavares, explicam, em última instância, a gigantesca concentração de poder econômico, militar e financeiro, que ocorreu nas duas últimas décadas do século XX. Ou seja, sua tese é de que a retomada da hegemonia americana e a nova financeirização capitalista são duas faces do mesmo processo, resultado das políticas do próprio governo norte-americano, amadurecidas na hora em que seu poder parecia entrar em decadência. Essa estratégia e suas políticas mudaram a face econômica e política do capitalismo contemporâneo: primeiro consolidou-se um novo sistema monetário internacional, baseado no dólar e sem qualquer padrão de referência; aos poucos, foram se definindo as regras e instituições de um novo regime de acumulação e de uma nova hierarquia político-militar mundial. (FIORI, 2001, p. 13-14).
Portanto, a elevação da taxa de juros provocada pelo Choque de Volcker (referência ao Secretário do Tesouro dos EUA na época, Paul Volcker) e o fim da política de distensão com a URSS que elevou os gastos militares, ambos ainda no fim do governo Carter (reorientação que foi insuficiente para impedir a derrota do Partido Democrata na eleição de 1980), formaram o duplo movimento que no governo Reagan intensificou-se e ganhou tons bem mais ideológicos. Como destacou Fiori, essas políticas, do ponto de vista dos interesses dos EUA, foram extremamente bem-sucedidas. A financeirização do capitalismo recolocou o dólar na condição de moeda reserva mundial e a corrida armamentista com a URSS, que fez com que esta não suportasse os novos investimentos que seriam necessários para concorrer com programas como “Guerra nas Estrelas” e passasse por um processo de desagregação, também levou à derrota do projeto socialista e os Estados Unidos à condição de superpotência única global.
A década de 1990, o quarto período mencionado, portanto, é a década da globalização, do triunfalismo liberal, da crença, após o fim dos regimes socialistas, de que o mundo chegou ao que o cientista político norte-americano Francis Fukuyama denominou de o fim da história, a era a partir da qual os mercados livres e as democracias liberais seriam o modelo político único para o mundo. Nesse período, os Estados Unidos experimentam o que alguns economistas chamaram de roaring nineties, período prolongado de crescimento econômico. A Ásia oriental, com fortes relações comerciais com os EUA, vive época de grande expansão, com exceção do ano que se seguiu à crise de 1997. O êxito de países asiáticos como Coreia do Sul, Taiwan e China está numa relação estreita e coordenada entre suas empresas e o Estado, sendo que os instrumentos e vantagens dadas por estes aos seus capitais nacionais são cruciais para se compreender o sucesso econômico relativo dessas nações. América Latina, África e Europa Ocidental não tiveram o mesmo desempenho, com baixas taxas de crescimento econômico e elevado desemprego. O ideário e as políticas liberais globalizantes tornam-se hegemônicos nesses espaços, com os efeitos deletérios mencionados. Não sem razão, a globalização é muito questionada nesses anos em que se passou a defender a prevalência dos mercados livres em detrimento da ação dos estados nacionais.
O caso das economias do Leste Europeu é ainda mais dramático. A transição selvagem para o capitalismo, sem, portanto, as instituições e a regulação adequada e a definição das áreas em que a presença direta do Estado se fazia necessária, antes da privatização acelerada do aparato estatal destes países, os fez passar por sérios problemas. No caso da Rússia, o liberalismo radical do presidente Boris Yeltsin teve como resultado uma queda do Produto Interno Bruto de mais de 30% na década de 1990, um caso não de recessão, mas de depressão econômica, comparável a países que viveram experiência de guerra.
Os anos 1990 também assistem ao surgimento de uma nova entidade política, a União Europeia, e também da primeira moeda compartilhada por vários países e com banco central único, o euro. Mas mais importante do que essa entidade supranacional, que inegavelmente foi um avanço sem precedentes em relação aos processos de integração regional, essa década assiste também ao ressurgimento da Alemanha como ator principal no cenário europeu, o que trouxe consequências para a região e para o sistema internacional. A Alemanha, livre dos constrangimentos do período da Guerra Fria, transformou o Leste Europeu em área de influência direta com o incremento do comércio e dos investimentos. Em relação à Rússia, aprofundou as relações, elevando as exportações de manufaturados e estabelecendo parcerias na área energética (a Rússia tornou-se o principal fornecedor de gás natural para a Alemanha e importante supridor também para várias outras nações europeias). Com o fim da Guerra Fria, a França vê o seu peso na Europa diminuir frente à ascensão alemã. A inexistência de um bloco rival em sua fronteira diminui a importância do aspecto estratégico (o que era importante para a França e seu arsenal nuclear, vantagem em relação à Alemanha sem a bomba) e aumenta a importância do aspecto econômico, no qual os alemães, com a reunificação, passam a contar com vantagem ainda maior. Especialistas no estudo da política externa alemã dizem que esta passou a exercer uma semi-hegemonia geoeconômica na União Europeia. O impasse na solução da crise da dívida de países da periferia europeia, como a Grécia, deve-se a uma visão do problema marcadamente nacional da questão (e que também não leva em conta os desequilíbrios provocados pela implantação do euro entre os países-membros) em detrimento de uma visão mais europeísta da questão, demandada por vários países e pela Comissão Europeia.
Após o fim da Guerra Fria, um dos discursos do auge da globalização, nos anos 1990, era o de que se iniciava um período em que predominaria a cooperação entre as nações. Para muitos, o período da presidência de Bill Clinton (1993-2001) foi indicativo de uma nova atitude da superpotência, agora unipolar, do planeta. Os EUA estariam concentrando-se em consolidar regimes internacionais como a OMC, no processo de integração de mercados, que levaria o mundo a um novo período de prosperidade. Contudo, em verdade, o que ocorreu, para além desse discurso ideologizado, foi um forte intervencionismo bélico por parte dos EUA. O analista Andrew Bacevich fez um levantamento de todas as intervenções norte-americanas na década de 1990 e concluiu que somando as feitas no Iraque, Somália, Sudão, Bósnia, Kuwait, Panamá, entre outras, tem-se um número maior do que todas as intervenções realizadas pelos Estados Unidos durante o período da Guerra Fria. Portanto, na época em que se propagandeavam as virtudes do comércio e do livre-mercado, a força das armas para a defesa dos seus interesses era exercida pela potência hegemônica com vigor. Uma Rússia enfraquecida viu a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) expandir-se para os países do Leste Europeu, ex-membros do Pacto de Varsóvia, apesar da oposição de franceses e alemães, que consideravam esse gesto uma provocação desnecessária aos russos, mas com decidida ação norte-americana. Na década de 1990, entre as potências, Estados Unidos, Alemanha e China ganham em termos relativos, enquanto Rússia, Japão, França e Grã-Bretanha perdem com a nova configuração de forças do mundo.
No quinto período, de 2000 até os dias atuais, a potência hegemônica precisa mostrar-se mais explicitamente imperial, novos e velhos atores aparecem para que o mundo retorne à velha geopolítica das nações, que parecia desacreditada. A Rússia, agora sob a presidência de Vladimir Putin é a velha grande potência que ressurge no cenário mundial, disposta a recuperar o status de ator importante da política mundial. Como exemplo disso, já no início de seu mandato, em 2000, Putin reformula a doutrina de segurança da Rússia. Esta enuncia que qualquer agressão militar à Rússia, de qualquer natureza, pode, a partir de então, ser respondida com armamento nuclear. O outro grande país do continente eurasiano, a China, país que experimentou o maior processo continuado de crescimento econômico acelerado da história, a partir de 1980, entra no rol das grandes potências, torna-se ator econômico de primeira grandeza e passa a contar também com o segundo maior orçamento militar do mundo. Como contraponto à expansão da OTAN, China e Rússia associam-se na Organização para a Cooperação de Xangai, em 2001, estrutura estratégica destes dois grandes atores como de outros asiáticos que constam como membros e observadores, dentre outras categorias.
Como colocado anteriormente, a hegemonia dos Estados Unidos no mundo assume caráter mais marcadamente imperial a partir do início do mandato de George W. Bush, em 2001. Os atentados ao World Trade Center, no dia 11 de setembro desse ano, serviram como justificativa para a Guerra ao Terror e a um belicismo agora sem disfarces. As invasões do Afeganistão e do Iraque e o apoio aos grupos opositores na Síria e na Líbia foram todos parte da estratégia norte-americana e da OTAN para o grande Oriente Médio, área que, nessa concepção, compreende do Marrocos ao Paquistão. Os neoconservadores que ascenderam ao poder com a vitória de Bush defendiam essa estratégia de agressivo intervencionismo com vistas aos planos, para o século que estava se iniciando, do novo século americano. Essas intervenções, diretas ou, já na gestão Obama, por via indireta, por meio de grupos armados opositores, revelaram-se um desastre para o equilíbrio do grande Oriente Médio dos norte-americanos. Afeganistão, Iraque, Síria e Líbia são hoje países destruídos fisicamente, com centenas de milhares de mortos, territorialmente fragmentados e em guerra civil. As divisões étnicas e religiosas acentuaram-se e a estabilidade política antes mantida pelas ditaduras laicas do Iraque, Síria e Líbia e pelo regime fundamentalista do Talibã, no Afeganistão, está longe de voltar a ser realidade nesses países. Os EUA posicionaram-se militarmente no Iraque e no Afeganistão e têm influência nos governos desses países. O preço para isso foi altíssimo para a região, que se tornou muito mais instável do que antes. E, por fim, o caos no Iraque e na Síria proporcionou o surgimento do grupo fundamentalista sunita Estado Islâmico, este, a despeito de estar recentemente perdendo terreno nesses países, tornou-se uma organização multinacional disposta a expandir seu território e influência e uma ameaça terrorista especialmente para a Europa, incluindo a Turquia e para os EUA, que se concretizou em uma série de atentados.
Portanto, para concluir essa parte, a estabilização do Oriente Médio, no que se destaca a resolução do conflito na Síria e a arbitragem da disputa regional entre Arábia Saudita e Irã; a disputa com a Rússia acerca da Ucrânia e nas tecnologias militares em geral; a ascensão da China como potência econômica e militar; e o excesso de capacidade produtiva mundial com fraca demanda são alguns dos principais desafios que se colocam à liderança global dos Estados Unidos.
A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA PÓS-GUERRA FRIA
E o lugar do Brasil no sistema? Como descrevê-lo? A partir dessa compreensão em linhas gerais da dinâmica do sistema mundial, em especial a partir da leitura dos movimentos da potência hegemônica ao longo do tempo, pode-se fazer uma análise a respeito do papel do Brasil. Não é o intuito desse artigo tratar da política externa brasileira a partir do pós-guerra, os últimos setenta anos, mas é possível dizer que o Brasil, na maior parte do tempo, foi um aliado e teve política externa em que os objetivos não se confrontavam com os dos Estados Unidos, com exceção de alguns anos como no período da Política Externa Independente, de Jânio Quadros e, especialmente, João Goulart, entre 1961 e 1964. Esta afetou os interesses de Washington, também afetados por decisões de política interna, levando ao apoio norte-americano ao golpe de 1964. Outro momento de afirmação nacional brasileira e certo grau de contestação à hegemonia dos EUA foi o do Pragmatismo Responsável, do general Ernesto Geisel, entre 1974 e 1979, no regime militar.
O Brasil, contudo, ao longo de sua história, na maior parte do tempo, teve papel coadjuvante nas Américas e não demonstrou intenção a qualquer projeto de expansão de poder nacional que contestasse a hegemonia dos Estados Unidos. Esteve inserido na estratégia de segurança norte-americana na Guerra Fria (assim como o restante da América Latina, com a exceção de Cuba após a revolução) e sempre foi área importante dos investimentos externos norte-americanos.
A década de 1990, tempos de globalização, assiste ao Brasil aderir às reformas liberalizantes, dentre estas a privatização de estatais, a abertura da conta de capital aos fluxos de capital estrangeiro (o que deu lastro ao programa anti-inflacionário do Plano Real), a abertura de setores estratégicos ao capital estrangeiro (energia elétrica, telecomunicações, petróleo), as reformas da previdência social e trabalhista. Mas a mudança mais importante deu-se no nível ideológico, como substrato essencial às alterações pretendidas: a crítica liberal ao Estado desenvolvimentista brasileiro. De acordo com o espírito do tempo, o Estado passa a ser visto como empecilho ao desenvolvimento e a maior parte de suas funções deve ser delegada ao mercado, este inerentemente visto como mais eficiente na execução da maior parte das antigas atribuições estatais.
Nos primeiros cinco anos da década de 1990, nos governos Fernando Collor de Mello e Itamar Franco, a agenda liberal avançou e ocorreu a primeira onda de privatizações de estatais, como, por exemplo, no setor siderúrgico. Houve também um importante ganho na política externa: a instituição do Mercosul pelo Tratado de Assunção, no ano de 1991, portanto ainda no governo Collor. A aproximação entre Brasil e Argentina nos governos Sarney e Alfonsín, ainda nos anos 1980, pondo termo a décadas de desconfiança e assentando-se em entendimentos sobre o uso pacífico de ambos da energia nuclear, teve continuidade nos governos de Collor e Menem, que selaram esse pacto regional envolvendo também Paraguai e Uruguai. Ainda que estivesse também no espírito do tempo da globalização liberal, esse acordo significou um importante passo à integração desses países e futura integração da América do Sul e, do ponto de vista brasileiro, a criação de uma área de projeção econômica e política.
O governo de Fernando Henrique Cardoso, iniciado em 1995, dá continuidade e aprofunda o projeto liberal. A abertura da conta de capital e às empresas estrangeiras em setores estratégicos, as privatizações e a busca da estabilização monetária constituíram os pilares da ação do governo na economia. Na política externa, FHC avaliava que a globalização era uma realidade inexorável na qual cabia ao Brasil se inserir ou ficar atrasado em relação aos que aderissem. O presidente sociólogo entendia que essa inserção poderia fazer o país colher os frutos da globalização. Nessa visão, o Brasil, para FHC, estava fraco para barganhar os termos de sua inserção e caberia ao país ingressar nos regimes internacionais, portanto, ter bom comportamento e aderir às normas de comércio, direitos humanos, meio ambiente e não proliferação nuclear. Essas ações somadas às políticas pró-mercado antes mencionadas dariam ao Brasil, nessa visão, o seu lugar na globalização.
A posse de Luís Inácio Lula da Silva, em 2003, marcou uma inflexão nos rumos da política externa brasileira. Lula e seu chanceler Celso Amorim (que ocupou o mesmo posto no governo Itamar Franco, o que fez a política externa de Itamar não ter o corte liberal que tinha sua política econômica) entendiam que a globalização é um processo conduzido pelas potências do norte e que deve ser negociado, estando o Brasil como um dos grandes países em desenvolvimento, em melhores condições para barganhar. A formação do grupo G-20 para as negociações da Rodada Doha de negociações da Organização Mundial de Comércio, a formação da União Sul-Americana (UNASUL), o apoio à criação da Celac, a aproximação com o continente africano e a criação da cúpula trienal América do Sul-Países Árabes são exemplos de iniciativas do governo brasileiro que não buscavam apenas adesão aos regimes internacionais definidos essencialmente por EUA e seus aliados europeus, mas, sim, a criação de acordos regionais entre países em desenvolvimento, que dessem alternativas e maiores possibilidades de negociação com os países ricos. Por isso, a criação do grupo BRICS, no final do segundo governo Lula, envolvendo as grandes potências do mundo em desenvolvimento, primeiramente Brasil, Rússia, Índia e China e posteriormente contando com a adesão da África do Sul, representando o continente africano. Esse grupo, inicialmente apenas uma reunião de cúpula entre os líderes desses países, ganhou maior grau de ambição após a Carta de Fortaleza, negociada em 2014 na capital cearense e que definiu a criação do Novo Banco de Desenvolvimento, conhecido como “Banco dos BRICS”, sediado em Xangai e pela criação do Acordo Contingente de Reservas, o “FMI dos BRICS”. Essas iniciativas elevaram o grupo dos BRICS a um projeto de contestação da ordem monetário-financeira internacional, representada pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial e expressaram a insatisfação desses países com a resistência dos EUA e da Europa em permitir reformas que alterassem a correlação de forças nessas instituições e espelhassem melhor o mundo de hoje.
A década de 2000 foi, como já descrito nesse texto, de acirramento na disputa estratégica global. A hegemonia dos Estados Unidos passou a ser afirmada pelas armas de forma explícita, sem o discurso liberal globalista clintoniano dos anos 1990 e muitos outros atores, de maior e menor expressão, buscaram aumentar a sua capacidade bélica a partir dessa década. A prosperidade gerada pelo eixo comercial e financeiro Estados Unidos-China, entre 2002 e 2008, fortaleceu as finanças de muitos países da periferia e os permitiu, além de melhorar as condições de vida de suas populações, aumentar suas despesas com armamentos. O Brasil, em movimento também observado no restante da América do Sul, reformulou sua política de segurança com a elaboração da Estratégia Nacional de Defesa (END), de 2008, que enfatiza três setores estratégicos: nuclear, cibernético e espacial. A Estratégia Nacional de Defesa entende que essa é inseparável da Estratégia Nacional de Desenvolvimento. Além do fortalecimento das forças armadas do Brasil com a construção de navios e submarinos (inclusive com submarino nuclear, tecnologia detida por poucos países) e desenvolvimento e construção de seus próprios aviões caça (nesse caso em parceria com a Suécia), a END define a América do Sul, o Atlântico Sul, a África e a Antártida como entorno estratégico brasileiro e área de sua projeção de poder.
Como colocado, portanto, os governos Collor e os dois mandatos de FHC e o período de Temer foram a expressão de um projeto liberal de inserção do Brasil na globalização. Nos dois mandatos de Lula e nesses pouco mais de cinco anos da presidência de Dilma Rousseff, esta mesma inserção deu-se com mais ativismo por parte do Estado e a visão de que a globalização é um processo político assimétrico imposto pelas potências do norte e que, por isso, deve ser negociado. Seria uma posição extremamente simplista atribuir, por exemplo, ao governo FHC, uma postura de total adesão às políticas dos EUA, assim como ver no governo Lula o oposto. A diplomacia de FHC teve vários pontos de atrito com os norte-americanos, assim como Lula cooperou ativamente com os EUA em várias questões. Esses processos são bastante complexos e envolvem tomadas de posição que resultam em alianças e, às vezes, em confrontos. Mas, em linhas gerais, na essência das políticas, os anos após 1990 conformaram um projeto que entende dever o Brasil se inserir em uma ordem à qual pouco poderia questionar ou modificar enquanto que o projeto conformado de 2003 em diante defende que necessariamente o país deve propor a modificação dessa ordem para que a inserção se dê nos termos favoráveis ao desenvolvimento do país.
A inserção capitaneada por FHC, nos anos 1990, produziu um quadro de fragilização da posição externa do país, com os déficits acumulados pela abertura às importações e expressivo crescimento destas, sem contrapartida da elevação correspondente das exportações. A abertura da conta de capital com baixas reservas produziu tendência à instabilidade macroeconômica, especialmente quando das crises externas. A economia brasileira passou por novo processo de desnacionalização e o Estado perdeu relevância na formulação de estratégias de desenvolvimento. O bom comportamento diplomático brasileiro com a adesão aos regimes internacionais, embora possa ter se traduzido em alguns êxitos localizados, como, por exemplo, nas vitórias obtidas em disputas na Organização Mundial de Comércio, em geral, revelou-se insuficiente como estratégia para a inserção de um país com a dimensão territorial, populacional e nível de desenvolvimento que o Brasil possui necessita.
A partir de 2003, a estratégia definida pelo governo Lula para a inserção brasileira, com a compreensão de que a ordem internacional precisava ser contestada por um grande país emergente como o Brasil, ganhou forma na decisão de aproximação com os demais países do sul, como é comumente denominado o mundo em desenvolvimento, embora essa opção não tenha significado qualquer tipo de ruptura com o norte. As relações com o norte foram mantidas e buscou-se aproximações, como no caso da negociação entre Mercosul e União Europeia para um tratado de livre-comércio (que não se viabilizou naqueles anos, no entanto a sua busca demonstra não haver veto a acordos com o norte rico, desde que em termos aceitáveis). O ciclo de crescimento global entre 2002 e 2008, que fez especialmente da China um gigantesco importador de matérias-primas e elevou a níveis recordes os seus preços, estimulou grandes exportadores desses produtos, caso do Brasil, e possibilitou tanto as políticas internas de crescimento e redistribuição de renda como deu maior margem de manobra nas negociações externas. É um erro, contudo, dizer que o Brasil apenas aproveitou a alta das commodities da década de 2000. As reservas acumuladas por esse ciclo foram essenciais, mas sem as decisões políticas efetivas de distribuição de renda e aumento do investimento público no âmbito interno e as iniciativas de contestação da ordem e aumento do grau de autonomia externo, das quais uma das mais ousadas foi a criação de banco e fundo multilaterais no âmbito dos BRICS, os resultados não seriam os mesmos. Textos recentes discutem o impacto dessas iniciativas brasileiras na ordem global e os fortes indícios de ações de desestabilização promovidas pela potência hegemônica, no cerne da crise brasileira recente. Importante nesse processo foi o golpe de Estado que elevou Michel Temer à condição de presidente da república em 2016 e fizeram o Brasil retornar à condição de aliado dos EUA e, em boa medida, esvaziar as iniciativas brasileiras nos BRICS, assim como outras iniciativas de projeção de poder (como o fechamento de postos diplomáticos na África) dando ênfase à busca pela condição de membro pleno da OCDE. Tal adesismo aos Estados Unidos, de forma acentuada, bastante amadora e às vezes patética se conformou no governo de Jair Bolsonaro, que não demonstra ter compreensão clara dos interesses nacionais do Brasil e qualquer estratégia bem definida de inserção do Brasil no sistema internacional
Historicamente, os que ocuparam posições de grande potência e, no caso de Grã-Bretanha e Estados Unidos, potência hegemônica do sistema mundial, ao mesmo tempo em que articularam os instrumentos que possibilitaram sua ascensão na escala do poder global, bloquearam, de maneira mais ou menos ostensiva, rivais que ameaçassem suas posições de poder. Essa é uma realidade inexorável desse sistema interestatal capitalista: os Estados soberanos são competitivos e na anarquia sistêmica que predomina nas relações internacionais suas posições relativas mudam ao longo do tempo. E a mudança para outro patamar de poder e riqueza nesse sistema implica, necessariamente, que o Brasil tenha o seu projeto nacional e construa alianças alternativas com o intuito de maximizar as suas potencialidades, o que não se faz com a mera adesão e o bom comportamento respeitoso às regras das velhas potências.
Foto: Wilson Dias/ Agência Brasil
Wagner Sousa é Doutor em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Editor de América Latina.
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Woods ao padrão dólar flexível. In: FIORI, José Luis. O poder americano. Petrópolis:
Vozes, 2002.
[1] Nessa condição, situam-se os estados e as economias nacionais que adotam estratégias de integração direta, com relação às potencias líderes. Fala-se em “desenvolvimento a convite” ou “associado” para referir-se a esses países com acesso privilegiado aos mercados e aos capitais das grandes potências, obtidos em troca da submissão à sua política externa e à sua estratégia militar global. Como foi o caso do Canadá, Austrália e Nova Zelândia, antes e depois de sua independência, e também da Alemanha, Japão e Coreia, depois da Segunda Guerra Mundial, na condição de protetorados militares dos EUA (FIORI, 2014, p. 107).
[2] […] De um lado, o próprio sucesso da estratégia americana de reconstrução e desenvolvimento dos demais países capitalistas (inclusive aceitando desvalorizações cambiais de outros países) estava reduzindo progressivamente os superávits comerciais e de conta corrente americanos. Mas para manter o papel de moeda internacional do dólar, era necessário […] evitar déficits na conta corrente. Ao mesmo tempo, a maneira mais simples de melhorar a competitividade externa americana seria através de uma desvalorização do dólar. Mas como desvalorizar o dólar sem ameaçar o seu papel de moeda internacional? A Inglaterra à época do padrão ouro-libra havia enfrentado (e não conseguido resolver) problema semelhante, diante da dificuldade em conciliar o seu papel de moeda internacional (e a vantagem de não enfrentar restrição na balança de pagamentos) e, ao mesmo tempo, proteger sua competitividade real (SERRANO, 2004, p. 196-197).
[3] O que não significa que a potência hegemônica não tenha se envolvido em guerras no período, pelo contrário, envolveu-se nos conflitos da Guerra da Coreia e da Guerra do Vietnã. A “hegemonia benevolente” estava relacionada aos aliados mais próximos e essa mesma lógica fazia com que os Estados Unidos fossem mais tolerantes com os projetos desenvolvimentistas da periferia, como foi o caso do Brasil.