O Economista Pierre Salama, Professor da Universidade Paris 13 e diretor do Grupo de Pesquisa sobre Estado, Internacionalização de Técnicas e Desenvolvimento tem se dedicado nas últimas décadas a estudos sobre os movimentos do capital e as relações de trabalho. É também estudioso da economia da América Latina.
A seguir, uma entrevista abordando aspectos de seu livro mais recente “Contágio Viral, Contágio Econômico e Riscos Políticos na América Latina”.
1) No livro o Senhor caracteriza a integração da economia internacional nas últimas décadas como “hiperglobalização”. Esse período terminou? Como as economias avançadas em geral, e os EUA em particular, entendem que deve ser sua inserção econômica no mundo?
Acho que entramos em uma nova fase do comércio internacional e das relações entre os Estados-nação: crescimento mais moderado do comércio internacional, mais protecionismo, que pode ser resumido em uma expressão: da hiperglobalização do início do século à globalização. Na verdade, essa desaceleração começou um pouco antes do surgimento da pandemia. Tudo começou com a chegada de Trump ao poder nos Estados Unidos. Não que sua política em relação à China tenha sido eficaz (o déficit comercial com a China, ao contrário, aumentou apesar do aumento das taxas alfandegárias), mas esclareceu o que a ascensão da China desde sua entrada no OMC significou: perda relativa de liderança, mais vulnerabilidade e menos soberania, empregos mais precários e pouco aumento de renda para sessenta por cento dos empregados nos Estados Unidos e na Europa. A reviravolta na balança de poder em favor da China levou, assim, à modificação das regras do livre comércio porque a hiperglobalização foi uma fonte de desindustrialização em quase todos os países industrializados. A hiperglobalização não era mais identificada com um jogo ganha-ganha, como os livros-texto de economia internacional querem que você acredite. Dentro das nações, dos países industrializados, algumas regiões ganham (as grandes metrópoles), mas outras perdem (qualificadas como o cinturão da ferrugem) com todas as consequências sociais negativas que isso pode ter sobre o emprego e os salários (que foram negligenciados pelos democratas nos Estados Unidos ).
Com a pandemia, um segundo fator se impôs e precipitou esse movimento: a extrema dependência devido à quebra internacional da cadeia de valor. Essa extrema dependência de produtos estratégicos diz respeito tanto à indústria farmacêutica quanto à de produtos de alta tecnologia (semicondutores, por exemplo). No entanto, a pandemia não sinaliza o luto da globalização. Com a recuperação econômica, a globalização continuará, mas será mais controlada, regulada: indústrias estratégicas provavelmente serão realocadas mais em países avançados, mais precisamente em grupos de países (como está surgindo na Europa onde a soberania é cada vez mais regional, o que não é sem colocar problemas políticos com a ascensão do nacionalismo). Com as políticas econômicas, sociais e industriais seguidas durante a pandemia, pudemos observar que a fase neoliberal havia terminado e que o que estava sendo posto em prática era uma combinação de keynesianismo (estado desenvolvedor, protetor com desemprego parcial na Europa) e liberalismo (maior flexibilidade processos de emprego e de trabalho). As análises em termos de neoliberalismos tornaram-se obsoletas. Disso decorre a necessidade de repensar as categorias para analisar essa nova fase do capitalismo. É claro que na maioria das vezes a esquerda não renovou ou pouco renovou seus conceitos sobre questões sociais (como caracterizar classes sociais nos últimos 20 anos, políticas econômicas, etc.), privilegiando questões societárias (lutas contra a discriminação) que, embora legítimas, não podem fazer com que o primeiro seja “esquecido” ou subestimado.
2) O livro descreve como, diferentemente do que ocorreu na Ásia, a América Latina se desindustrializou nas últimas décadas. Como vê o futuro econômico da região? Como avalia as políticas para enfrentar a pandemia na região?
Os países asiáticos não aplicaram o neoliberalismo dominante nos países avançados e nos países latino-americanos a partir da década de 1980. O estado em desenvolvimento na Ásia, a regulação, esteve presente mesmo que tenha evoluído ao longo do tempo. Os países avançados, com exceção da Alemanha, experimentaram um aumento dos serviços, em particular os serviços financeiros, e sobretudo uma desindustrialização acentuada e, em última análise, uma tendência de estagnação do seu crescimento econômico. Os países asiáticos, sejam dragões (Coreia do Sul, Taiwan, etc.), tigres (Tailândia, Vietnã, etc.), semicontinentes (China e Índia) experimentaram em sua maioria um aumento em sua indústria (exceto Índia) e um aceleração do seu crescimento econômico, à exceção do Japão. Os países latino-americanos estagnaram nos últimos quarenta anos, como analisamos em nosso livro, com momentos de altos e baixos (especialmente na Argentina) e acumularam atrasos cada vez mais significativos em relação a países como a Coreia do Sul, por exemplo, tanto no plano tecnológico, como no nível de sua mobilidade social.
A pandemia tem funcionado como um indicador das mazelas que sofrem os países latino-americanos (extrema concentração de renda e altíssimos níveis de pobreza, reprimarização, desindustrialização). Agravou a crise já presente nos principais países latino-americanos (Argentina, México), ou latente (Brasil). Também só as respostas estruturais que rompam com as do passado podem permitir a superação dos obstáculos ao desenvolvimento sustentável, à inclusão daqueles, em sua maioria, rejeitados no “banquete” da prosperidade. Não decidir e propor reformas é um pouco como colocar um “band-aid em uma perna de pau”, o que muitas vezes tem sido o caso, com exceção dos interlúdios em que governos populistas progressistas conseguiram melhorar o destino dos mais pobres, sem, contudo, empreender reformas radicais como a do sistema fiscal. São sete em número:
1) o crescimento da agricultura de exportação tem sido em detrimento dos agricultores. A exploração das minas foi realizada na maioria das vezes em detrimento das populações indígenas. A reprimarização foi realizada com desrespeito ao meio ambiente e à saúde dos camponeses, garimpeiros e populações vizinhas. Isso resultou em uma deterioração de sua saúde, na migração econômica forçada para as cidades. A imposição de padrões ambientais e seu respeito é cada vez mais uma necessidade de sobrevivência;
2) No contexto latino-americano de economias relativamente fechadas ao comércio internacional (com exceção do México), mas permeáveis a ele, o mercado interno desempenha um papel importante, é necessário aumentar o poder de compra do trabalho. Essa melhora no poder de compra pode impulsionar o mercado interno. Paradoxalmente, a justiça social encontra a eficiência econômica: mais empregos, menos informalidade. Mas esse aumento do poder de compra deve ser acompanhado de esforços em termos de produtividade do trabalho para melhorar a fraca competitividade industrial de que sofrem esses países;
3) Essa melhoria passa principalmente pela redução das desigualdades sociais graças a uma reforma tributária que deixa de ser regressiva e pode promover a solidariedade. Não é apenas uma necessidade ética, mas também econômica;
4) É necessário melhorar as capacidades do tecido industrial para responder ao aumento da procura, aumentando as despesas de pesquisa e desenvolvimento, melhorando substancialmente a produtividade do trabalho e a taxa de investimento no setor industrial, os serviços de alta tecnologia relacionados a ele, e assim permitir que as empresas produzam bens de alta tecnologia complexos em pé de igualdade com o que a Coréia do Sul fez e está fazendo;
5) uma política industrial agressiva que aposte nas indústrias do futuro, que permita o aumento da produtividade do trabalho e o aumento dos investimentos, condições necessárias para compatibilizar o aumento dos rendimentos do trabalho e a melhoria da competitividade;
6) desenvolver uma política de redistribuição em favor das categorias mais vulneráveis.
7) Finalmente, a escolha de uma taxa de câmbio desvalorizada é condição sine qua non para evitar os efeitos perversos que uma moeda valorizada acarreta no tecido industrial. No entanto, esta não é uma medida milagrosa em si. Para ser eficaz e permitir a reindustrialização, deve ser acompanhada de um conjunto de outras medidas, as que acabamos de referir.
As medidas tomadas isoladamente umas das outras não são eficazes. O Brasil é prova disso: a queda drástica dos juros e a desvalorização de sua moeda não foram suficientes para reanimar a economia antes mesmo do surgimento da pandemia. São todas essas medidas que constituem uma ruptura. A crise provocada pela pandemia pode ajudar a promover essa ruptura, mas exige que projetos alternativos tenham o apoio de mobilizações massivas.
3) Quais as principais consequências econômicas e sociais da pandemia na América Latina?
Além da recuperação econômica em 2021 observada na maioria dos países da região, uma recuperação que já está perdendo força (em 2022 as perspectivas de crescimento são muito mais modestas), o que caracteriza esta crise é o aumento insustentável das desigualdades de renda, o aumento na pobreza e na extrema pobreza, até a fome, como já podemos ver, principalmente no Brasil. Os primeiros 15 anos dos anos 2000 viram um declínio mais ou menos pronunciado da pobreza na maioria dos países. Esta volta com força e a fome, que havia quase desaparecido, volta a surgir. A sociedade está cada vez menos inclusiva, a migração está se intensificando, especialmente da América Central e do México, e a violência que a acompanha está aumentando. Esta é uma verdadeira regressão social.
A hora das rupturas políticas está próxima. Estas podem ser de direita ou de esquerda, reacionárias ou progressistas. A ascensão das correntes evangélicas, do individualismo, as revelações da corrupção das elites (veja as revelações, depois dos “papéis panamá”, os “papéis pandora” em que Guedes, Macri e membros do governo de Peña Nieto são envolvidos), alimentam uma rejeição do Estado e abrem caminho para aventuras fascistas; inversamente, o aumento da pobreza, o desemprego, a incapacidade de estabelecer uma sociedade mais inclusiva podem novamente abrir caminho para um novo progressismo.
4) O advento de novas tecnologias (big data, robótica, inteligência artificial, biotecnologia, etc.) torna ainda maior o hiato entre a fronteira tecnológica e o nível de desenvolvimento tecnológico na América Latina. Tendo em conta as diferenças entre os países da AL e o papel atual essencialmente como provedora de matérias-primas, como imagina a região na divisão internacional do trabalho?
Francamente falando, a América Latina está mal quando se trata de novas tecnologias. Dedica entre 0,5% e 1% do PIB à pesquisa e desenvolvimento, enquanto a Coréia do Sul ou Israel, para falar de países pequenos, dedicam entre 4 e 5%… Consome novas tecnologias e muito, muito, muito pouco produz dessas tecnologias. Está, portanto, experimentando um aumento da dependência tecnológica dia após dia. As consequências sobre o emprego e o trabalho serão significativas: incapacidade de criar empregos suficientes para compensar os empregos destruídos pelo uso dessas tecnologias, acentuada bipolarização dos empregos entre trabalho qualificado e não qualificado, aumento relativamente muito maior dos não qualificados, uberização do trabalho com o desenvolvimento de empreendedores autônomos dependentes de plataforma e, finalmente, acentuação das desigualdades de renda do trabalho.
5) Os preços da energia subiram expressivamente. O barril de petróleo, que no início da pandemia, em abril de 2020, chegou a estar cotado abaixo de 20 dólares, está atualmente em torno de 120 dólares o barril. O consumo de combustíveis fósseis nos países desenvolvidos tem crescido, apesar das metas de redução das emissões de CO2. Como vê o problema da transição para a economia de baixo carbono e a dependência dos combustíveis fósseis explicitada na inflação atual?
Ao contrário das ideias recebidas ou disseminadas por muitos ecologistas, a transição energética será cara. É necessária, mas terá um custo significativo. O desmatamento da floresta amazônica, que vem se desenvolvendo nos últimos anos, fortemente incentivado pelo presidente Bolsonaro no Brasil, com o objetivo de aumentar as áreas destinadas à exportação agrícola e exploração de recursos minerais, não deixa de ter consequências. Agora sabemos que o ataque maciço à biodiversidade altera o equilíbrio. A menor biodiversidade aumenta a possibilidade de que espécies resistentes possam transmitir vírus para humanos, direta ou indiretamente, transmitindo-os a outras espécies em contato com humanos. É certo que não se trata aqui de afirmar que a responsabilidade direta pelo surgimento do SARS-COV-2, na origem da atual pandemia, está diretamente ligada ao desmatamento da floresta amazônica, mas de enfatizar as relações causais entre os danos à biodiversidade em muitos países e o aparecimento de vírus. A redução da biodiversidade e suas consequentes consequências nefastas sobre a natureza e sobre os seres humanos estão ligadas tanto aos novos modos de consumo quanto à globalização, cujo ritmo de crescimento acelerou até 2008. Esta multiplicação de epidemias está ligada à globalização comercial? Sim, mas não diretamente. Não foi a globalização que produziu a pandemia, ainda que tenha sua parcela de responsabilidade na degradação da natureza que acabou levando ao surgimento do novo vírus. A globalização, depois a hiperglobalização, levou a um aumento do comércio, estimulado pela redução significativa do custo do transporte marítimo, pelo surgimento da internet e pela possibilidade de otimizar não só a sua tributação, mas também os diversos códigos laborais existentes entre os países. A explosão do transporte marítimo e aéreo também tem um custo ambiental. A liberação de CO2 e o efeito estufa contribuem para o aquecimento global, que leva à degradação dos ecossistemas. Podemos, portanto, considerar que, direta e indiretamente, a globalização é um propagador de pandemias que podem, em parte, ser também a causa. É por isso que devemos repensar essa globalização, regulá-la em vez de fechar as economias e optar pelo decrescimento. A crise atual exige mudanças em nossas formas de produzir, consumir, comercializar, privilegiar o respeito à biodiversidade e, no caso do Brasil, preservar a grande floresta e outras regiões ameaçadas pela redução da biodiversidade em benefício das monoculturas. Em suma, regular nossas formas de produzir, consumir, pensar o comércio internacional. Regular, portanto, não significa proibir e pensar o futuro em termos de protecionismo e decrescimento. Regular significa controlar, o que não é a mesma coisa. Tudo isso tem e terá um custo econômico e social. As energias renováveis caras não podem substituir rapidamente a energia nuclear e os combustíveis fósseis, especialmente porque o consumo de eletricidade deve aumentar consideravelmente com o surgimento de carros elétricos e, no futuro, aviões à hidrogênio. Para além do aumento do custo das matérias-primas, setores inteiros do tecido industrial e dos serviços, fortes emissores de CO2 estão fadados ao desaparecimento, o que implicará um custo social para quem trabalha nestes setores e, portanto, uma preparação para a mobilidade. É aqui que a economia encontra a ecologia e a política…
No final das contas, apesar das nuvens escuras que surgem no horizonte, continuo otimista. O horizonte não é tão escuro como descrito acima. Já antes da pandemia, convulsões políticas estavam tomando forma em muitos países latino-americanos. Após a onda de direita, uma onda progressista começou a tomar forma a partir de inúmeras manifestações em vários países, no Chile, no Equador, onde a eleição de um presidente de origem indígena e iconoclasta esteve perto do sucesso, a eleição de um prefeito homossexual em Bogotá (Colômbia), a chegada ao poder de novos presidentes no México (López Obrador) e na Argentina (Fernandez) que, apesar das dificuldades encontradas, da ambiguidade de algumas de suas políticas e da fortíssima oposição dos mercados financeiros, abre caminho para esperanças de mudança estrutural. Ao final, a forte probabilidade de Lula ser eleito pela terceira vez para a presidência do Brasil pode ser uma oportunidade para definir políticas mais inclusivas.
Estamos no fim de uma era, a dos “monstros” (Gramsci) que já é ameaçadora, é claro, mas também a esperança de que apareçam as mobilizações sociais está se aproximando. No entanto, resta um grande esforço conceitual e organizacional a ser feito para que as utopias que promovemos sejam suficientemente mobilizadoras e abram espaço para os caminhos íngremes da esperança.
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Wagner Sousa é Doutor em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Editor de América Latina