Causou grande surpresa o discurso do secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, no último dia 23 de julho, pois recordou a época da Guerra Fria, ao insinuar uma tentativa de redefinição do conflito com a China equiparando-o ao vivido com a URSS.
Esse giro inesperado causou surpresa porque dá a entender que o governo Trump está deixando de lado o estilo de política externa transacional que vinha defendendo, rejeitando as posições tradicionais seguidas pelos EUA, para buscar resultados por meio de negociações específicas – seguindo o estilo que, no âmbito profissional, fizeram do presidente um empresário de sucesso. Ao solicitar a união das “nações do mundo amantes da liberdade” contra a China, Pompeo procurou dar ao conflito um conteúdo ideológico próprio da antiga disputa com a URSS, algo que estava até agora ausente.
Ao mesmo tempo, causou surpresa também o lugar escolhido para este pronunciamento, a biblioteca Richard Nixon, ou seja, que tem o nome do presidente que meio século atrás reestabeleceu as relações com a China. De fato, a eleição não foi casual. Pompeo fez referência a Nixon ao destacar que o atual líder chinês, Xi Jinping, não poderá seguir tiranizando a China e o mundo “a menos que permitamos”, o que se assemelha a afirmação de Nixon quando disse que “o mundo não estará seguro até que a China mude”.
Contudo, Pompeo aproveitou o local para subestimar o resultado desse giro histórico ao declarar que a abertura econômica chinesa nos últimos 50 anos não trouxe as mudanças “que o presidente Nixon esperava induzir” na China, pois esse presidente teria seguido uma política “bem intencionada, mas ingênua”. Para Pompeo foi um erro abrir-se a China em 1972. Assim, declarou que era a “hora de reconhecer que o esforço fracassou”, lembrando: “o presidente Nixon disse certa vez que temia ter criado um ‘Frankenstein’ abrindo o mundo ao Partido comunista chinês (…) e aqui estamos”.
Pompeo foi ainda mais longe em sua evocação das décadas da Guerra Fria, optando por seguir a linha mais combativa contra a URSS de outro ex-presidente estadunidense, Ronald Reagan. Segundo ele seus anos no exército, durante a Guerra Fria, lhe ensinaram que os comunistas sempre mentiam. Por isso, expôs que o novo mantra no trato com a China será “desconfiar e verificar”, remetendo ao lema “confiar, mas verificar” de Reagan, identificado como o que conduziu a URSS a sua queda. Igualmente, a denúncia dos comunistas soviéticos por Reagan como constituindo o “império do mal” também pareceu estar presente nas palavras de Pompeo ao pontuar que as ações do Partido Comunista chinês “são, hoje, o principal desafio no mundo livre”.
Segundo vários analistas, o objetivo principal de Trump é se recuperar na corrida presidencial contra Joe Biden para as eleições de 3 de novembro. Em meio a catástrofe humana e econômica ocasionada pelo impacto do COVID-19, a aposta de Trump parece ser unir o país contra a ameaça de um inimigo externo, trazendo, oxalá, reminiscências de momentos mais felizes e esperançosos aos seus compatriotas. Expressões de Pompeo como a que afirma ser possível defender a liberdade pelo “doce atrativo da própria liberdade”, claramente apelam a um período em que os estadunidenses se sentiam mais orgulhosos de si mesmos. Ao mesmo tempo, Pompeo também parece tentar resgatar o lugar de líder mundial dos EUA ao estilo da Guerra Fria ao afirmar que “… talvez seja a hora de uma nova ação para agrupar nações com ideias afins, de uma nova aliança pela democracia”.
Em uma nota editorial, o Washington Post foi bastante crítico a Pompeo. Começando pelo fechamento do consulado chinês de Houston, pois foi baseado na acusação de ser um ninho de atividades de espionagem sem oferecer evidências respaldem tal acusação. Além disso, questionou-o também por se justificar através da ideia de proteger “nossa economia e nossos empregos”, quando “muitas das outras medidas adotadas por Trump, desde impor tarifas ao comércio entre EUA e China até restringir os vistos de estudantes, prejudicaram a economia dos EUA e custaram empregos sem mudar o comportamento chinês”.
Já o colunista, Jackson Diehl, questionou esta semana a tentativa de Pompeo de obter a liderança global. Ele afirma que Trump teria motivos para unir vários países “contra o totalitarismo de alta tecnologia da China, seu mercantilismo desapiedado e a intimidação de críticos estrangeiros”, porém desperdiçou a oportunidade. Em particular, a postura afirmativa e mais beligerante da China no Mar do Sul, sua nova diplomacia combativa de “lobo guerreiro” e a recente disputa fronteiriça com a Índia facilitaram esse objetivo.
Para Diehl, a explicação desse fracasso do governo Trump se encontra, precisamente, na relação que Pompeo tenta criar entre a China atual e a URSS da Guerra Fria ao oferecer “como imagem do governo chinês um monolito comunista empenhado em dominar o mundo e os 40 anos de história do compromisso ocidental com isso como um erro desastroso”. Sob esse marco, os últimos países que se colocaram ao lado dos EUA foram Austrália e Reino Unido. Em contra partida, ainda que “muitos ocidentais estejam, agora, de acordo que o regime de Xi é uma ameaça”, para Diehl, “poucos aceitariam a tese de Pompeo de que a integração da China com a economia global deve ser lamentada e, muito menos, que deve revertida”.
Por isso, afirma que “não é estranho que a chanceler alemã, Angela Merkel, o primeiro ministro japonês, Shinzo Abe, e, inclusive, o líder indiano, Narendra Modi, tenham cuidadosamente se distanciado da nova Guerra Fria dos “trumpianos”. Isso também explica porque o próprio Trump acusa e ataca os países que deseja que se unam numa cruzada anti-China, por exemplo, ao afirmar “falsamente que o governo de Merkel foi ‘delinquente’ no pagamento de suas ‘tarifas’ a OTAN” ou ao ameaçar retirar as forças estadunidenses do Japão e da Coreia do Sul, como fez com Alemanha, ou ao levar a cabo “guerras tarifarias contra os três países, enquanto aposta em um acordo comercial com Xi para impulsionar as exportações agrícolas do centro-oeste de seu país antes das eleições”.
Em outras palavras, o giro ideológico expresso por Pompeo não significou abandonar a política externa transacional mediante a qual Trump prometeu que colocaria a “América em primeiro”, a leitura de Diehl é que o objetivo desse giro é conseguir votos para vencer Joe Biden.
Nesse contexto, Trump, com a escolha da Biblioteca Richard Nixon, também procurou conseguir de seu antecessor os efeitos da força política que ele conquistou, ao mesmo tempo em que recompunha os laços sino-estadunidenses, com a expressão “maioria silenciosa”. A partir dessa ideia, Nixon, em rede nacional, soube construir capital político em momentos em que não conseguiria fazê-lo, enquanto era acusado por movimentos pacifistas por causa da “saída honrosa” da Guerra do Vietnã que havia prometido em sua campanha eleitoral.
De modo semelhante Trump, por Twitter, assegurou que, por trás de todas as críticas que recebe pelas mortes ocasionadas pelo COVID-19 e pela disparada do desemprego, há uma “maioria silenciosa” que o fará ganhar as eleições…
Tradução: Bruno Roberto Dammski
Foto: Reprodução/ Richard Nixon Presidential Library
Andrés Ferrari Haines é professor Adjunto do Departamento de Economia e Relações Internacionais, Faculdade de Ciências Econômicas e do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-UFRGS). Integrante do Núcleo de Estudos dos BRICS (NEBRICS-UFRGA) e Poder Global e Geopolítica do Capitalismo (aferrari@ufrgs.br).
Matheus Ibelli Bianco é aluno de mestrado do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-UFRGS). Integrante do Núcleo de Estudos dos BRICS (NEBRICS-UFRGA) (matheusibellib@gmail.com).