BERLIM – Após oito semanas de negociações, a Alemanha tem um novo governo. Para o social-democrata Olaf Scholz, que sucede a Angela Merkel como chanceler, o muito aguardado acordo de coalizão pressagia nada menos que um revitalizado “Mitte progressista” ou um centro progressista – e uma Alemanha muito mais ousada.
O acordo de coalizão foi redigido a portas fechadas, com pouco vazamento de notícias. Contudo, é seguro presumir que forjá-lo não foi uma tarefa fácil. Esta é a primeira aliança de três partidos em nível nacional desde os anos 1950: os Social-Democratas de centro-esquerda, os Verdes e os Liberais Democratas Livres têm muito do que discordar.
Entretanto, a Alemanha está mais uma vez sendo golpeada pela COVID-19 – a quarta onda de uma pandemia que foi exacerbada pela complacência popular, pela ineficiência administrativa e por disputas entre governos estaduais e autoridades federais. Acrescente a isso uma perspectiva econômica cada vez mais sombria, uma iminente crise de migração e o fato de os negociadores saberem que estariam apresentando o acordo de coalizão a um público cansado e cauteloso.
Ainda assim, surpreendentemente, os líderes do partido produziram um documento nitidamente esperançoso. Isso está claro no título: Ouse Fazer Mais Progresso – uma alusão clara ao discurso do chanceler Willy Brandt em 1969 no parlamento da Alemanha, no qual ele exortou seus cidadãos a “ousarem mais democracia”. Porém, onde exatamente o novo governo da Alemanha espera fazer progressos?
No fronte doméstico, vários objetivos se destacam. O governo de Scholz buscará adotar uma abordagem mais flexível para frear a dívida, o que impede que as autoridades públicas façam empréstimos excessivos. Ele também promete modernizar o sistema de seguridade social, substituindo o impopular programa de desemprego e bem-estar Hartz-IV por um Bürgergeld (auxílio cidadão) menos rigoroso, que inclui incentivos para educação e treinamento. Ademais, propõe fortalecer os sistemas de apoio para famílias com crianças pequenas, aumentando o salário mínimo para 12 euros (13,50 dólares) por hora e alocando 1 bilhão de euros ao pagamento único para recompensar os profissionais de saúde por seus esforços durante a pandemia.
Também estão na agenda grandes reformas estruturais que incluem: a eliminação progressiva do carvão e o aumento da participação das energias renováveis de 45% para 80% até 2030; o investimento pesado em parcerias entre universidade-indústria para encorajar a inovação e apoiar startups; a introdução de grandes incentivos fiscais para empresas que investem em tecnologias e infraestrutura digitais; o aumento da participação das mulheres na tecnologia e a digitalização rápida da administração pública. O acordo de coalizão também compromete o novo governo a investir em transporte público negligenciado e a remover impedimentos administrativos que retardam a aquisição de licenças e aprovações.
Por último, mas não menos importante, os novos líderes da Alemanha prometem revisar a estrutura de imigração da Alemanha para tornar a cidadania ou a residência mais fácil de obter, trabalhar para tornar a habitação mais acessível, incluindo a expansão de habitações públicas, e legalizar a produção, venda e consumo de cannabis.
Além das fronteiras da Alemanha, o acordo de coalizão faz um compromisso claro e completo com o projeto europeu. Por instância, apela ao aprofundamento da União Econômica e Monetária e assinala uma maior flexibilidade na gestão do Pacto de Estabilidade e Crescimento da UEM. Ademais, expressa apoio ao sufrágio europeu uniforme, com um sistema vinculativo de candidatos principais (o processo Spitzenkandidaten) para selecionar o presidente da Comissão Europeia e enfatiza a necessidade de tornar mais fácil para a comissão agir decisivamente quando necessário – digamos, para proteger o Estado de direito nos países membros.
Do mesmo modo, o acordo de coalizão também expressa um compromisso claro com a OTAN, embora deixe em aberto algumas questões, como o compromisso do governo com a meta de gastos com defesa de 2% do PIB e questões relacionadas ao controle de armas nucleares.
Na política externa, a mudança mais notável diz respeito à China e à Rússia. Aparentemente, o mundo deve esperar que o novo governo da Alemanha substitua a estratégia de negócios de Merkel por uma abordagem mais assertiva aos regimes autoritários. O futuro do polêmico gasoduto Nord Stream II, que traria gás diretamente da Rússia, contornando a Ucrânia e a Bielo-Rússia, pode muito bem estar em jogo.
Na Alemanha, o acordo de coalizão teve uma recepção previsivelmente mista. Aqueles próximos aos três parceiros da coalizão em sua maioria o receberam bem, embora alguns nas periferias dos partidos expressaram maior desapontamento e até mesmo suspeita. Os Democratas-Cristãos, preparando-se para seu papel como o principal partido da oposição, criticaram-no severamente, enquanto a extrema direita Alternative für Deutschland e o esquerdista Die Linke o rejeitaram completamente.
Surpreendentemente, por outro lado, o público alemão recebeu bem o acordo – e o sentimento de esperança e renovação que o sustenta. Merkel era conhecida por seu estilo de liderança extremamente cauteloso, visto que durante seus 16 anos à frente do governo da Alemanha poucas reformas foram promulgadas – e menos ainda foram bem-sucedidas. No momento atual, os alemães parecem estar prontos para um governo mais pró-ativo.
Naturalmente, o acordo de coalizão é um documento político, não legal. No entanto, é bastante consequente, pois irá orientar os esforços do comitê de coalizão – um órgão informal que compreende os principais emissários dos partidos governantes, que assumiu imensa importância nas últimas décadas.
O papel do comitê de coalizão é garantir a implementação dos acordos, inclusive gerenciando as disputas e conflitos de interesse que surgem, e as tensões já estão surgindo. Por exemplo, o encorajado lobby ambientalista lamenta que, apesar da participação dos Verdes, o acordo seja insuficiente na política climática, e o lobby empresarial, representado pelos Democratas Livres, teme aumentos de impostos e duvida das projeções financeiras imprecisas subjacentes ao acordo.
Além disso, uma improvável aliança de sindicatos (que exija segurança no emprego, salários mais altos e pensões) e empresas (que aplauda a prudência fiscal de Scholz) desconfia de maior flexibilidade nas políticas orçamentárias da UE. Por fim, embora os estados apoiem a promessa do novo governo de uma reforma há muito esperada do complexo sistema federalista da Alemanha, alguns temem uma tomada de poder federal.
O ponto final, entretanto, é que a nova coalizão governante da Alemanha apresentou uma visão muito necessária para o país. Perceber tal fato, todavia, vai depender em grande parte da habilidade política do comitê da coalizão. Se a coalizão falhar, a Alemanha correrá o risco de voltar ao velho hábito de fazer pouco e tarde demais – um resultado que colocaria em risco sua posição na Europa e no mundo.
Foto: John Macdougall/ POOL
Helmut K. Anheier, professor adjunto de Bem-Estar Social na Escola de Relações Públicas Luskin da UCLA, é professor de sociologia na Escola de Governança Hertie em Berlim.
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