Neste domingo, dia 18 de Outubro de 2020, deflagra-se um episódio histórico na América Latina: o Movimiento Al Socialismo vence o pleito à presidência do país um ano após o golpe de Estado organizado pela elite crucenha, policiais e a cúpula das Forças Armadas – e, como se veio a saber pelo próprio, patrocinado por Elon Musk, mega-empresário, considerado a quarta pessoa mais rica do mundo, interessado direto na exploração do lítio boliviano.
Este golpe envolveu também a mobilização de civis, evidentemente, sob a acusação de fraude eleitoral na vitória do então presidente e candidato Evo Morales. A fraude eleitoral nunca comprovada, e aventada pela OEA, foi o estopim para distúrbios na cidade de La Paz, contando com ataques a prédios públicos e ameaças a militantes e figuras públicas do MAS. A isto se somaram ofensas raciais e discurso de ódio contra indígenas, o que culminou na posse de Jeanine Áñez como presidente interina. Segundo a própria, tratava-se de “levar a Bíblia de volta ao Palácio”.
Resgatar este fato se faz interessante, pois o presidente eleito no último pleito, Luis Arce, ex-ministro nos governos de Evo Morales, teve votação ainda maior que a de Evo naquela ocasião, se considerada em termos percentuais
[o candidato Luís Arce teria feito, segundo resultado prévio
reconhecido por Áñez, 52%, enquanto Evo ficou abaixo dos 50% no
pleito anterior]
.
Diante deste fato, alguns comentaristas têm destacado a unidade da esquerda em torno do projeto eleitoral do MAS. Se é verdade que a esquerda não apresentou outro candidato, o dado em si não explica bem o tipo de relação que existe entre os movimentos sociais e a sigla, desde os anos 1990. O que se compreende como MAS hoje em dia foi fundado em meados da década de 1990 como “Instrumento Político pela Soberania dos Povos”, sob a ótica de que os movimentos sociais e suas respectivas organizações, que correspondiam aos povos originários indígenas da Bolívia, precisavam de um braço eleitoral, para fazerem a disputa política na esfera do Estado. Vale notar que, não se tratam de partidos políticos com atuação deslocada prioritariamente para a disputa institucional, mas precisamente o inverso: em termos gramscianos, como levar demandas elaboradas na esfera da sociedade civil para a sociedade política.
Dito isto, as divergências que possam existir entre estas organizações sociais, como a Central Obrera Boliviana [COB], a Central Sindical de las Trabajadoras e Trabajadores Unificada de los Campesinos de Bolivia [CSUTCB], a Confederación de los Ayllus y Markas del Quollasuyu [CONAMAQ], entre outras, bem como as nuances entre indianismo, katarismo, movimento cocalero, nunca foram subestimadas ou subtraídas no debate junto à população boliviana, mesmo quando apresentam momentos de convergência e unidade de luta.
Exatamente assim se deu no período de um ano de governo de Jeanine Áñez, marcado por prisões de opositores, ameaças a familiares de políticos masistas, e exílio de militantes. Enquanto a tática da cúpula masista se concentrava em marcar eleições, convictos da possibilidade de vitória, outros setores do movimento indígena e camponês exigiam a renúncia de Áñez. Esta tensão marcou os bloqueios de estrada e as marchas indígenas que se sucederam um mês antes das eleições. O governo golpista se recusava a realizar o processo eleitoral , e esta onda de protestos foi fundamental para o desenlace do resultado atual.
Na ocasião, o candidato Luis Arce, o vice David Choquehuanca e a cúpula do MAS pressionavam o governo por um acordo para a realização das eleições, enquanto as organizações sociais radicalizadas,- onde chamou atenção o retorno à cena política da tradicional liderança de Felipe Quispe, o “Mallku”- , diziam que uma eleição sob a liderança de Áñez não era confiável.
O resultado eleitoral, numa análise apressada, faria crer que então a cúpula do MAS teria razão nesta polêmica. Mas o quanto a realização dos bloqueios e marchas foi importante para a segurança das eleições e desestabilização do processo golpista? Evidentemente, não se trata de uma equação matemática. Mas se há um ensinamento que se pode extrair desta vitória histórica é que a política de esquerda se faz mais forte quando consegue conjugar as ações institucionais com as expectativas, desejos, e até mesmo, a política realizada no cotidiano da vida social.
A vitória do MAS na Bolívia, ou melhor colocada, dos indígenas e cocaleros bolivianos, em suas mais diversas nacionalidades, não pode de maneira alguma ser compreendida como a vitória de uma esquerda monolítica e pragmática. Muito pelo contrário, se trata de um sujeito contra-hegemônico marcado pela pluralidade, que se levantou contra o regime militar e o derrubou, contra o modelo neoliberal e fundou um novo Estado, e dá mostras de superar o processo golpista. Sempre é assim quando vão às marchas os indígenas urbanos de El Alto, os cocaleros do Chapare, os ayllus de Potosí e os indígenas do Oriente.
Foto: Festa da vitória do presidente eleito da Bolívia, Luís Arce”. Reprodução/ Twitter
Allysson Lemos. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.